sábado, 23 de junho de 2007

Indício de fé no sobressalto do olhar: Oppen


Mark Steinmetz, 2000


Psalm

Veritas sequitur…

In the small beauty of the forest
The wild deer bedding down—
That they are there!

Their eyes
Effortless, the soft lips
Nuzzle and the alien small teeth
Tear at the grass

The roots of it
Dangle from their mouths
Scattering earth in the strange woods.
They who are there.

Their paths
Nibbled thru the fields, the leaves that shade them
Hang in the distances
Of sun

The small nouns
Crying faith
In this in which the wild deer
Startle, and stare out.

George Oppen


Salmo

Veritas Sequitur…


Na pequena beleza da floresta
Os gamos selvagens pastando—
Que eles lá estão!

Os olhos
Fluidos, os lábios macios
Fossam e os pequenos inusitados dentes
Moem a relva

Cujas raízes
Pendem de suas bocas
Espalhando terra pelos bosques estranhos.
Eles, que lá estão.

Seus rastos
Esboçados pelos campos, as folhas que os abrigam
Oscilam em lapsos
De sol

Os pequenos nomes
Plangente fé
Nisso em que os gamos selvagens
Sobressaltam-se e observam.




Nota – tradução originalmente publicada em Inimigo Rumor n.5, dezembro 1998. Veritas sequitur, a epígrafe, alude à máxima de Santo Tomás: “Veritas sequitur esse rerum” [“a verdade segue a existência das coisas”]. A banal expressão “Nisso em que” [“This in which”], penúltimo verso, é título do terceiro livro de Oppen.

Dois poetas que são, dois rios, e pronto


Timothy O'Sullivan, 1873


Em meio a tanta mistificação, dois poetas do Nordeste: Joaquim Cardozo e Hindemburgo Dobal [H. Dobal]. Em verdade pertencem ao mundo antes de serem daqui. Tirem a prova. Seguem duas amostras. E são feitas de levedo e cinema. Poemas para rios: Persinunga, Parnaíba.



Os Dias

Sobre as águas de um rio onde vareiros

silenciaram suas mágoas.

Sobre outro rio cantado

por lavadeiras,

e o riozinho proclamado

pelos buritizeiros,

sobre os brejos sem nome

onde os riachos começam,

sobre todas as águas

o espírito perene.

Sobre o espírito das águas

que memoraram os dias,

sobre um rio perdido onde os bichos do mato

beberam o fim da tarde,

sobre um vale pastoral onde os rios pensam

sobre a música de vida

dos rios reduzidos a um nome

PARNAÍBA

sobre os rios plenos,

os dias consumidos.


H. Dobal



Cinematógrafo

E assim vos digo:
Foi no engenho Araçu que encontrei o Persinunga:
Colhi a rapidez das suas correntezas,
Apanhei todas as cotas do fundo do seu leito,
Detive o volume de suas águas cor-de-mel,
Liguei, amarrei muito bem as suas margens cobertas de ingazeiras.
Trouxe depois comigo todo o rio
Dentro da minha caderneta de campo
Que tenho ali guardada naquela escrivaninha.
Em tardes de verão, quando me regresso nas lembranças,
Faço correr o Persinunga. Liberto suas águas morenas,
E me contemplo nelas. Contemplo as esperanças de longe
Na paisagem de outros tempos;
E, molhada nessas águas-imagens, impercebida e rastejante,
Uma insinuação de presenças invencíveis se propaga.

Joaquim Cardozo

Pavana para um amante defunto: Bogan ou um relógio de cascas e raízes


Roy Lichtenstein, 1970




To a Dead Lover

The dark is thrown
Back from the brightness, like hair
Cast over a shoulder.
I am alone,

Four years older;
Like the chairs and the walls
Which I once watched brighten
With you beside me. I was to waken
Never like this, whatever came or was taken.

The stalk grows, the year beats on the wind.
Apples come, and the month for their fall.
The bark spreads, the roots tighten.
Though today be the last
Or tomorrow all,
You will not mind.

That I may not remember
Does not matter.
I shall not be with you again.
What we knew, even now
Must scatter
And be ruined, and blow
Like dust in the rain.

You have been dead a long season
And have less than desire
Who were lover with lover;
And I have life—that old reason
To wait for what comes,
To leave what is over.

Louise Bogan


Para um Amante Defunto

O breu é sacudido a partir
Do claro, feito cabelos
Sobre um ombro.
Estou só,

Quatro anos mais velha;
Como as cadeiras e as paredes
Que certa vez vi luzindo,
Você a meu lado. Para eu acordar
Nunca desse jeito, não importa o que veio ou foi desfeito.

O caule cresce, o ano pulsa ao vento.
Maçãs chegam, e o mês em suas quedas.
A casca espalha, as raízes apertam.
Embora hoje seja a última,
E amanhã todas,
Não é da tua conta.

Que posso não lembrar,
Não é da conta.
Não vou estar contigo de novo.
O que sabemos, mesmo agora
Deve espalhar
E puir, e vazar
Como areia ao vento.

Morreste já faz tempo
E tens menos de desejar
A amada do amado;
E eu tenho vida—esse velho motivo
De esperar pelo que vem,
Largar o que é passado.

Empatados a tanto mais: Louise Bogan


Joan Jonas, Double Lunar Dogs, 1984



Zone

We have struck the regions wherein we are keel or reef.
The wind breaks over us,
And against high sharp angles almost splits into words,
And these are of fear or grief.

Like a ship, we have struck expected latitudes
Of the universe, in March.
Through one short segment’s arch
Of the zodiac’s round
We pass,
Thinking: Now we hear
What we heard last year,
And bear the wind’s rude touch
And its ugly sound
Equally with so much
We have learned how to bear.

Louise Bogan


Zona

Atingimos as regiões onde somos quilha e coral.
O vento nos rebate,
E contra rijos ângulos agudos quase se parte em nomes,
Isso é de medo e pesar.

Como um navio, atingimos esperadas latitudes
Do universo, em março.
Por entre um miúdo arco segmentado
Do círculo zodiacal
Passamos,
Pensando: Agora ouvimos
O que ano passado ouvimos,
A suportar o rude apalpo do vento
E a fealdade de seu som
Empatada a tanto mais
Aprendemos a suportar.





Nota – quando estava traduzindo este poema pensei - e mais de uma vez - em Paul Celan. Em um poema chamado Corona, cuja tradução se encontra em Fortaleza Voadora n#1.