segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Ver, ser visto: Ruas de Fortaleza


Nigel Henderson, 1950

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Desterro, Medo e Rua em Fortaleza
–impressões apressadas após uma caminhada lenta

Estar na rua em Fortaleza, num bairro predominantemente residencial, é estar entregue à própria sorte. É viver o exílio e correr risco. Comprar um bilhete para Babilônia. Começar a escrever as Lamentações de Jeremias. Especialmente neste quadrante de final de ano, quando a sensação de ressaca coletiva se inercia pela tarde afora. E muita gente está fora da cidade. Em viagens longas anuais, ou em balneários das circunvizinhanças.
É inevitável que cada um se examine um pouco mais ao final do ano. Não só porque é o final do ano e, logo, é quase automático fazer revisões. Mas também porque se tem mais tempo para essas revisões. Para esses reexames de consciência. E é muito mais isso o que as pessoas temem do que a atmosfera e a decoração natalinas ou o raso fato de mais um ano se ter passado e a morte ficar mais próxima. Dimensionável. Ou coisa parecida.
Os muros cresceram. Às vezes se pode percorrer quadras inteiras sem topar com vivalma. Sobre os muros há cercas elétricas ou de arame farpado. Atrás deles, quase mais nada. Em certos casos, é impossível ver as casas que restaram, entre os vistosos condomínios que as sitiam. Mas ao que parece, elas ainda estão lá. Não foram reduzidas a uma abstração pela violência que seus próprios donos, ao abandonar as ruas, fizeram questão de sancionar. E as janelas que ainda se enxergam são precedidas por grades.
Se todas as grades que protegem e aprisionam os lares de Fortaleza fossem retiradas ao mesmo tempo e exportadas para a China, seria um negócio da China: algumas divisas a mais para o país e um paranóia a menos para todos nós. Toneladas de ferro e medo indo embora. E, então seria necessário só rebaixar os muros, para se ter casas de novo abrindo-se para fora. Para receber. Tê-las mais belas de novo. E de novo essa interação entre casa e rua - que as varandas antigas, que os antigos alpendres de casas rurais insinuam em tempos que se perdem muito além da Volta da Jurema. Mas que foram fruídos por gente como você ou eu. E, alguns, até parecidos conosco, porque tios-avós, bisavós, etc.
O divisável, aqui, é que, se não reocuparmos a rua, não a enxergarmos desde casa, se a abandonarmos à sua própria sorte, ela sempre se prestará melhor a ser via expressa para o crime, desde que não a vivenciamos em cotidiano, coletividade. Não a ocupamos, como espaço social. Desistir da rua, é assumir que se quer viver com medo. Que o saudável controle feito pelos próprios moradores, ao estar mais presentes nelas, passando por elas – dizendo “Bom dia”, “Boa tarde”, “Como vai” – se converte apenas em mais um caso de polícia. Não podemos nos eximir de também sermos responsáveis por elas. Porque por mais que não queiramos temos um pouco – ou muito – de polícia ou controle: ao observar e cuidar das crianças, por exemplo. Porque elas não sabem, num certo sentido o que fazem. Embora, em outros, claro, saibam muito mais que nós.
E, de resto, nunca se vê muito dos condomínios acorcundados em andares sobre andares. Quando se caminha pelas ruas, você segue excessivamente colado a eles para vê-los. Você é apenas um ponto ao pé do muro alto, com a invariável guarita encarapitada, se são mais recentes. Se tivesse de vê-los, de fato, teria de andar olhando para cima. Seria mais fácil levar vários tombos. E, lá de cima, você é visto como pouco mais que um ponto – com se vê um boneco de Forte Apache – que passa na calçada. Sequer se adivinha se você segue enxofrado ou alegre. Seu rosto é indivisável.
Mas ainda assim, você é visto. Em vislumbre passando abaixo de ficus, jambeiros, oitizeiros e acácias. E um dos problemas mora aqui. Você é visto, mas não vê quem te vê. É um problema por quê? Porque gera ainda mais predisposição à assistibilidade. Quem te vê através da vidraça da janela, vê como se vê alguém dentro da tela de plasma de uma TV. Alguém que sabe que está vendo, mas não é visto. É o olhar de quem consome imagens. As devora, em vez de incorporá-las à experiência sensível e à memória afetiva, por meio de interações interpessoais. As únicas que te possibilitam sentir o gesto, a hesitação, a euforia, a tristeza das pessoas. Especialmente no instante, em que a partir do que essas imagens sugerem, se é capaz de editar novas imagens. E não imagens quaisquer, cheias de dignidade, forma, sentidos.
O ponto, aqui é que os condomínios, como os shoppings, sempre se voltaram para dentro de si mesmos. E este é seu princípio básico. Um princípio tumular. Cova que se abre para consumo. Do mesmo feitio como teu corpo um dia será consumido pelos vermes. Ainda que, ao contrário dos sepulcros caiados do Evangelho, alguns dos shoppings possam ser horrendos, vistos de fora. Como o Iguatemi, por exemplo. Pense num único shopping em Fortaleza que se abra generosamente para a rua. Ou em cujo terraço, debruçado sobre a rua, se possa tomar um café apreciando o movimento das pessoas, a pulsação de uma cidade. O modo como as pessoas caminham, se esquivam umas das outras, se escoram nos muros e paredes nas paradas dos ônibus, com seus tédios, sonhos, irritações, pertinácias. O princípio do grande condomínio privado é o mesmo dos shoppings. Não enxergar as pessoas. Aprisionar a vida na gaiola do consumo. Eles nos protegem da violência mas também da poesia da ruas.

No caso dos shoppings, é algo que começa no estacionamento. Que tanto pode sugerir uma vasta planície, um cemitério, se a céu aberto. Ou uma catacumba romana, se subterrâneo ou empoleirado. O certo é que shopping rima com carro não com pedestres ou mesmo ciclistas. Eis porque, como comandam - não é de hoje - o comércio de varejo nos bairros mais afluentes, também decretam que o carro é o meio de transporte em Fortaleza. Sem concessões a pedestres ou ciclistas.
A base de tudo, então, no condomínio – como no shopping – assenta-se num dobrar-se para dentro do consumo e do prazer. Em tese, do vigésimo terceiro andar, pode-se ver muito mais cidade do que lá embaixo, andando pela rua. Mas essa paisagem é vista à distância. A uma distância segura de quem está sob o ar-condicionado, assistindo um blockbuster, navegando pelas virtualidades, ouvindo música, lendo algo, comendo sushi. Ou mesmo fazendo isso tudo ao mesmo tempo. Quem terá tempo para observar sua cidade? Para conhecer a fundo os entornos de sua morada? Para dizer um bom-dia? Para andar pelas ruas em gratuidade? Não para levar o cão para passear ou só para manter a forma. Numa situação dessas, de consumo e segurança, abastança e auto-suficiência privadas, o que sobra para ruas? Ser anti-ruas, muros, conveniência asfaltada para passar o carro por cima? Andar por Fortaleza durante os feriados de fim-de-ano é bom para quem gosta de estar sozinho. E, claro, a necessidade de solidão nem sempre é má. Muito ao contrário. Mas, por igual, isso não deveria ser norma para os demais dias do ano. Que são muitos. A maioria.
A rua é o local público por excelência. É o espaço da palavra, da convivência. A beleza, a sensualidade e a tolerância a atravessam de uma ponta a outra. Isso vale para uma aldeia siciliana tanto quanto para um interior qualquer do Ceará. O convívio social medra melhor nesses espaços. Não nos espaços dos shoppings, que, do íntimo de sua uterinidade, lhes são alérgicos. Pois, como sabemos, a lógica do shopping é dar lucro. Ponto.
Em sua antípoda, a rua, quando bem tratada, estende um tapete vermelho para o bem-estar público ou salubridade de memória. Ao contrário do Shopping, seu equivalente a céu-aberto, uma praça – quase não as temos – ou mesmo um parque, nada mais são que uma rua alargada. Eis porque o nome "largo" ser sinônimo de "praça". Sem conversa e gesto ou rua, uma cidade se torna amorfa. Apenas uma coleção de fragmentos rejuntados pela pressa do carro. A praça, rua alargada, é bom espaço para se estar consigo em meio aos outros pelo que resguarda de saudável e eventual. Pelo que rasga para a memória de sonhos, devaneios e frustrações passadas. Ao contrário do shopping - espaço encontrável e padronizado por todo planeta - tem horizonte e alma. Gera lembranças. Aquelas lembranças vívidas, fundas, que só surgem da convivialidade. Do decurso dos tempos longos. Da feira, que esteve na raiz de tantas cidades, pelo Ceará e pelo Nordeste afora. Uma encruzilhada aprazível, onde as reminiscências te dizem: "Bom dia"! As que precisam ser engatadas a outras, relacionadas, para que tenhamos a dimensão real de onde estamos pisando, de como somos. De onde viemos. De como sentimos. Do que queremos. De que estofo são feitos nossos sonhos. 
E, claro, a vida também se faz de encontros. Especialmente dos que ocorrem na casualidade das esquinas. Entre gente de diferentes opiniões, classes, visões políticas, orientações sexuais, etnias, culturas, jargões, idiomas, etc. 
Das interseções dessas ruas, que ora seguem vazias.

28.12.08



O que há por trás de certos nomes?


David Bomberg, 1919



Quem sair por último, apaga a luz


Por pressões de grupos diversos, hoje em dia é cada vez mais comum – a tendência é que seja a norma – encontrar nos livros em inglês as siglas: BCE e ACE. Elas são as abreviações de “before the common era” e “after the common era” [respectivamente, antes e depois da “era comum”]. Por pressões de outros grupos religiosos não cristãos, especialmente judaicos, islâmicos e também dos defensores de um laicismo mais radical, essas abreviaturas pretendem substituir as tradicionais BC e AC (ou seja, antes e depois de Cristo [em português a.C. e d.C.]). Quer dizer, mesmo com esse negócio de "era comum", Cristo ainda está na base da datação, mas não deve ser mencionado – para não aborrecer a fé alheia ou passar por cima dos direitos de expressão dos outros: judeus, islâmicos, militantes laicos e ateus.

Ora, tudo parece simples, claro. E democrático. Mas não é tão simples. Nem tão claro assim.

Imagine que você seja judeu. E, como judeu tenha consciência de o quanto os judeus sofreram perseguições numa Europa cristã. E que, por ser cristã, paradoxalmente, também tinha algo de judia, já que a Bíblia cristã – ao contrário do Corão, p. ex. – incorpora os livros sagrados judaicos. Durante séculos e séculos, escritores, artistas, estudiosos, poetas, cientistas e filósofos judeus, como você, grafaram antes e depois de Cristo para datar a história. O próprio Marx fez isso, assim como Freud ou Simmel. E, de repente, por um golpe de politicorretismo, se tivesse que abolir isso. Em nome de um capricho de duvidosa tendência...

Vamos pensar algo análogo. Mas mais concreto. Vamos imaginar que além de judeu, você fosse de Belém do Pará. Que, como você sabe, tem esse nome em homenagem à outra Belém (Bethlehem), na Palestina, cidade natal de Jesus. E que, portanto, a cidade, por ser fundada por cristãos, recebeu este nome. Mas, então, para não achacar a população não cristã – os muçulmanos, umbandistas, judeus, agnósticos e ateus – de Belém se resolvesse trocar o nome da cidade. Afinal, é um nome expressamente cristão. Será que você, mesmo sendo judeu – e mesmo não qualquer judeu, mas um judeu ortodoxo – concordaria com a mudança de nome da sua cidade? Será que o nome não tem nenhuma importância simbólica para você, é mera convenção?

E que tal imaginar Belém sem a festa do Círio. Que convenhamos é expressamente cristã, embora, por razões óbvias seja mais do que cristã. Seja uma festa de Belém. Será que você, judeu, gostaria que se extinguissem festa, procissão e tradição do Círio?

Ora, chegamos ao ponto. As palavras só tem força se esteadas na história. Retire a história debaixo delas, e você lhes retira o próprio alicerce. O perigo, aqui, é o de surgirem propostas reformistas análogas às de Hitler ou de Stálin. Ah, vamos mudar o nome das cidades. São Petersburgo, por exemplo, agora será Leningrado. Ou seja, se retira um nome de santo e se põe o de um carniceiro.

De fato, por alguns anos foi Leningrado. Veja que nome tem hoje Leningrado? O povo russo é apegadíssimo às suas tradições. Não poderia ser diferente com a quantidade de escritores estupendos que produziram: de Pushkin a Brodsky passando por Pasternak, Akhmatova, Maiakóvski , Tchekov, Tolstói, Dostoiévski...

Pense se você sentir-se-ia ou não confortável se sua cidade mudasse de nome. Em vez de São Paulo – como se chama desde a origem, há quase cinco séculos, porque foi fundada por jesuítas – que mudasse, então, por um decreto da Câmara de Vereadores, digamos, para Lulópolis.

Ora, isso aconteceu a três por quatro com os Bairros de Fortaleza. Por exemplo, um bairro chamado Água Fria mudou por decreto de vereadores boçais para Edson Queiroz. O problema é que um nome de lugar, um topônimo, um marco, tem uma história atrás de si. A Cidade dos Funcionários, por exemplo, tem esse nome porque originalmente foi um local onde muitos funcionários do Banco do Brasil compraram terrenos e construíram suas casas.

Do outro lado da cidade, a oeste, o Terminal Rodoviário de Antônio Bezerra é conhecido por todos os fortalezenses, numa decisiva e unânime informalidade, como Rodoviária dos Pobres. O nome indica a origem modesta do povoado de Antônio Bezerra, depois assimilado pela expansão urbana de Fortaleza. Ainda que o Brasil se torne um país riquíssimo e, digamos, por uma ironia histórica dessas para valer, o Bairro de Antônio Bezerra se converta num afluente centro de finanças e serviços, ainda assim seria interessante indicar a origem do bairro pelo peculiar nome de seu terminal rodoviário.

Mas parece que tem gente que não gosta dessas coisas de história, memória, nomes... Ou de lembrá-las.

Quem sair por último, apaga a luz!




Excessos de auto-consciência, nos levam para onde?


Ruskin Spear, 1961



Et Vanitas Vanitatum


A questão é: os perigos do excesso de auto-consciência.

O que é gerado a partir daí? Apenas niilismo? Ou também esperança?

Quando falo, aqui, em esperança, obviamente não me remeto à babaquice de frases feitas ou à sentimentalidade abstrata que o termo evoca. Mas à capacidade de empatizar com outras pessoas: algo cada vez mais raro, neste mundo que nos confina dentro das fronteiras estreitas de nossos próprios crânios. E cola a esses crânios extensões mínimas como aparelhos celulares ou ipods que nos distanciam ainda mais dos que estão à volta. E os colam para que sigamos em comodidade consumindo ainda mais: músicas, imagens, palavras ou até a conversa dos outros. Quer dizer conversando ao telefone móvel estamos consumindo uma oferta que nos é disponibilizada pelas tecnologias digitais analâmbricas.

O certo é que auto-consciência está longe de ser uma panacéia. É apenas um dom que uns têm – e cultivam – mais que outros. Há, por exemplo, pessoas tão pouco conscientes de si, que sequer se dão conta do modo como o espaço de seu próprio corpo afeta o espaço dos que estão á volta.

Ocorre com um conhecido meu, professor universitário, que, se ele segue conversando durante um passeio a pé, sua tendência é a de ou comprimir o interlocutor contra a parede ou jogá-lo à coxia, para além do meio-fio. Então é sempre providencial você armar uma leve cotovelada. Embora a cotovelada só alivie a situação por algum tempo. Ao que parece, ele próprio não se dá conta das escalas ou do espaço que ocupa no mundo. Ou do modo como dirige a palavra ao outro, que invariavelmente implica numa incômoda, desnecessária proximidade corporal. Como se necessariamente algo íntimo ou importante se tornasse mais íntimo ou mais importante por essa régua de espaço físico mal calculado.

É tipo conversar com gente que cospe em você o tempo todo. E não se dá conta disso.

Ora, a medida em poesia é semelhante. É como se você, de modo automático, estivesse movendo-se sempre em harmonia com a escala de seu espaço. Que não é a mesma, digamos, com sua namorada ou em uma conversa formal com o Diretor do Centro de Humanidades.

É claro que é saudável possuir certo grau de auto-consciência.

O problema é que isso está longe de evitar que você dê com os burros n'água ou cometa uma porrada de injustiça nas situações as mais diversas possíveis ao longo de uma vida. E as vidas, mesmo as breves, são feitas de muitos dias e envolvem as situações mais bizarras possíveis e imagináveis entre céu e terra.

Há certos momentos, que você precisa agir como num estalo de dedos, por puro faro e intuição.

E, logo, auto-consciência está longe de ser a panacéia para os teus males. Mas este blogue, apesar de se ter esforçado nos últimos tempos, ainda não é de auto-ajuda, caro leitor.

Et vanitas vanitatum.



domingo, 28 de dezembro de 2008

Herdeiros da razão, da ciência do rap e do Programa do Faustão


Paul Graham, Retrato da Televisão, 1991



De uma conversa sobre religião


Uma leitora de Afetivagem me propôs, por imeio, a seguinte questão:
"Ao que tudo indica, não se pode levar a sério a religião depois que a razão provou que a Terra é redonda, não é o centro do Universo e que nenhum monoteísmo detém o monopólio da verdade. Depois que a Revolução Francesa acabou com o direito divino dos soberanos e instaurou a perspectiva da liberdade, da igualdade e da fraternidade, como se pode entrever a religião como um valor para os próximos séculos?"

Minha resposta:

Hoje em dia todos os que professam, propagam ou versam sobre um valor religioso sério parecem fazê-lo iniciando seu discurso com um perorado pedido de desculpas, ou com cautela tal por não ferir suscetibilidades, que a desconfiança que nos passa: seu pai, se cristão, deve ter condenado centenas às fogueiras da Inquisição e infernizado a vida de albigenses e cripto-judeus, e passado sífilis para toda uma tribo no Peru; se judeu, deve ter matado três mil filisteus com uma queixada de jumento ou solicitado aos romanos a crucifixão de centenas de heréticos cristãos, ou os apedrejado fora dos muros da cidade, ou ainda mandado erguer um muro que confina os palestinos ao lado de lá.

E, no entanto, o quanto tudo isso - à exceção do último item - soa café pequeno diante dos crimes monstruosos praticados pelos estados modernos laicos. A diferença é que um cientista político – seja de direita, seja de esquerda – nunca começa seu discurso pedindo desculpas. Ele avança pelas fronteiras da linguagem tão absoluto e ímpar quanto os Luíses franceses palmilhavam os jardins de Versalhes, com suas fontes e faisões. La Raison? C'est Moi. Ele é o herdeiro do grande Iluminismo. Da ciência; da razão; da bomba; dos campos de extermínio e do rap; do consumo e do Programa do Faustão.

Perguntar se a religião estará em falta nos próximos séculos já é, em si, um sintoma da escassez dela no presente. A religião era antigamente chamada de “lei”. Os mandamentos eram um código moral, de conduta. A serem levados a sério. Como hoje pretendemos levar a sério não fumar dentro do avião ou não dirigir alcoolizado. É claro que esta norma ainda não está no Levítico, ou nos livros sapienciais bíblicos: “não dirigireis sob o efeito da ebriedade!”. Ou quem sabe: “se mais de um cântaro pequeno de vinho tomardes, não tomeis por igual as rédeas de vossas carroças". Ou ainda: "Lembra-te de teu próximo nas longas horas em que a cabine seguir pressurizada, pois estarás mais próximo do Reino dos Céus".

Mas, voltando à pergunta, a primeira coisa a se questionar nela é seu centro tonal: que religião, em termos concretos? Se for a judaico-cristã, sem dúvida. Mas esta já vem murchando há cinco séculos. Tanto que, ao que tudo indica, a pergunta refere-se a ela sem nomeá-la. Se for a islâmica, do contrário: pode ser que o final mesmo deste século se depare com um antigo sonho muçulmano: unificar a Europa sob Alá. Como, de resto, já há povos não árabes – iranianos, paquistaneses, hindus, malaios, indonésios, turcos, albaneses, africanos de diversas etnias sub-saarianas, entre outros – que têm como sagrados os livros árabes e seus sítios de peregrinação: Meca, Medina e Jerusalém. Ou seja, pelo andar do Volkswagen, não é de espantar se daqui a uns cem anos catedrais góticas, como, digamos, as de Colônia ou de São Tiago de Compostela, se hajam convertido em mesquitas. E, dessa vez, sem ser pela via das armas. Nunca foi tão fácil propagar-se. Os povos islâmicos, afinal, têm um valor. Crêem nele. Coisa que os judeus e principalmente os cristãos perderam ou se confundiram a respeito, não é de hoje.


Uma cantiga de viúvo: Hardy


A. Archipenko, Mulher penteando o cabelo, 1915





The Voice


Woman much missed, how you call to me, call to me,

Saying that now you are not as you were

When you had changed from the one who was all to me,

But as at first, when our day was fair.


Can it be you that I hear? Let me view you then,

Standing as when I drew near to the town

Where you would wait for me: yes, as I knew you then,

Even to the original air-blue gown!


Or is it only the breeze, in its listlessness

Travelling across the wet mead to me here,

You being ever dissolved to wan wistlessness,

Heard no more again far or near?


Thus I; faltering forward,

Leaves around me falling,

Wind oozing thin through the thorn from norward,

And the woman calling.


Thomas Hardy



A Voz


Mulher mais prezada, como me chamas, me chamas

A dizer que agora não és mais o que eras,

Quando deixaste de ser aquela que me era toda a gama,

Como no início, em nossa primavera.


Será que é a ti que escuto? Deixa-me ver-te, então,

Alerta como quando eu me acercava da cidade

Onde esperavas por mim: sim, como eu te sabia então,

Envolta no liso vestido de azul claridade.


Ou será apenas a brisa, passando em surdez

Pela planície úmida até chegar a mim,

Tu para sempre diluída em murcha lividez,

Não mais escutas, sussurro ou clarim?


E, então, eu; avulso adiante,

Folhas sobre mim tombando,

O terral coando-se fino pelo espinheiro oscilante,

E a mulher chamando.







O tipo do estofo de que são feitos os sonhos: Shakespeare


John Everett Millais, Ophelia, 1852




'Our revels now are ended'

Our revels now are ended. These our actors,
As I foretold you, were all spirits, and
Are melted into air, into thin air:
And like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capp'd tow'rs, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Yea, all which it inherit, shall dissolve,
And, like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dreams are made on; and our little life
Is rounded with a sleep.

[The Tempest Act 4, scene 1, 148–158]

William Shakespeare


'Nossos jogos ora cessaram'

Nossos jogos ora cessaram. E os atores,
Como vos pressagiei, eram só espíritos, e
Dissiparam-se no ar, no fino ar:
E como a fábrica sem alicerces desta visão,
As torres com nuvens acima, esplêndidos palácios,
Solenes templos, o próprio globo em si,
Sim, tudo que ele lega, deve dissolver-se,
E, desta insubstancial pompa diluída,
Não resta caibro. Somos o tipo de estofo
De que são feitos os sonhos; e nossa breve vida
É limitada por um sono.

[A Tempestade, Ato 4, Cena 1, 148-158]

Me estiveste emprestado, e eu te pago: Jonson


William Lindsay Windus, Estudo Para um Garoto Morto, o Filho do Artista, 1860




On My First Sonne


Farewell, thou child of my right hand, and joy;

My sinne was too much hope of thee, lov'd boy,

Seven yeeres tho'wert lent to me, and I thee pay,

Exacted by thy fate, on the just day.

O, could I loose all father, now. For why

Will man lament the state he should envie?

To have so soone scap'd worlds, and fleshes rage,

And, if no other miserie, yet age?

Rest in soft peace, and, ask'd, say, here doth lye

Ben Johnson his best piece of poetry.

For whose sake, hence-forth all his vowes be such

As what he loves may never like too much.


Ben Jonson



De Meu Primogênito


Adeus, então, filho de minha destra e ledo afago;

Meu pecado: pôr tanta esperança em ti, querido,

Sete anos me estiveste emprestado, e eu te pago,

Expropriado de teu destino, no dia aferido.

Ah, pudesse, ora, desatar todo o pai. Como pois

Dever-se-ia lamentar o estado em afinidade?

Tão cedo escapado do mundo, e da carne feroz,

E, sem outra mazela, a não ser a da idade?

Descansa em santa paz, e, se indagado, diz

Que contigo jaz o melhor poema que já fiz.

Resta a sina de quem para diante os votos serão tais

Que o que quer que ame, jamais amará demais.




sábado, 27 de dezembro de 2008

Senão a que no coração ardia: San Juan de la Cruz


William Roberts, circa 1926




La noche oscura


Canciones del alma que se goza de haber llegado al

alto estado de la perfección, que es la unión con Dios,

por el camino de la negación espiritual.



En una noche oscura,

con ansias en amores inflamada,

(¡oh dichosa ventura!)

salí sin ser notada,

estando ya mi casa sosegada.


A oscuras y segura,

por la secreta escala disfrazada,

(¡oh dichosa ventura!)

a oscuras y en celada,

estando ya mi casa sosegada.


En la noche dichosa,

en secreto, que nadie me veía,

ni yo miraba cosa,

sin otra luz ni guía

sino la que en el corazón ardía.


Aquésta me guïaba

más cierta que la luz del mediodía,

adonde me esperaba

quien yo bien me sabía,

en parte donde nadie parecía.


¡Oh noche que me guiaste!,

¡oh noche amable más que el alborada!,

¡oh noche que juntaste

amado con amada,

amada en el amado transformada!


En mi pecho florido,

que entero para él solo se guardaba,

allí quedó dormido,

y yo le regalaba,

y el ventalle de cedros aire daba.


El aire de la almena,

cuando yo sus cabellos esparcía,

con su mano serena

en mi cuello hería,

y todos mis sentidos suspendía.


Quedéme y olvidéme,

el rostro recliné sobre el amado,

cesó todo, y dejéme,

dejando mi cuidado

entre las azucenas olvidado.


San Juan de la Cruz



A Noite Escura


Canções da alma que se compraz de haver chegado ao

alto estado da perfeição, que é a união com Deus,

pelo caminho da negação espiritual.


Em uma noite escura,

com ânsias em amores inflamada,

(ah, ditosa ventura!)

saí sem ser notada,

estando já minha casa sossegada.


Às escuras e segura,

pela secreta escada disfarçada,

(ah, ditosa ventura!)

às escuras e na calada,

estando já minha casa sossegada.


Na noite ditosa,

num segredo, que ninguém me via

e eu não enxergava coisa,

sem outra luz ou guia,

senão a que no coração ardia.


A luz que me guiava

mais certa que a luz do meio-dia,

aonde me esperava

quem eu bem o sabia,

no ermo onde ninguém aparecia.


Ah, noite que me guiaste!

Ah, noite amável mais que alvorada!

ah, noite que juntaste

amado com amada,

amada no amado transformada!


No meu peito florido,

que inteiro só para ele se guardava,

ali quedou dormido,

e eu lhe regalava,

e aroma de cedros ares dava.


Os ares da ameia,

quando seus cabelos afagava,

com uma mão que semeia

em meu colo uma cava,

e todos meus sentidos superava.


Quedei-me e olvidei-me,

o rosto reclinei sobre o amado,

tudo cessou, e deixei-me,

legando meu cuidado

entre as açucenas exilado.




Nota - os dois poemas de São João da Cruz (1542-1591), a "Noite Escura da Alma" e o "Cântico Espirirual", em sua aparente - e especiosa - simplicidade contam entre as mais elevadas realizações poéticas do Ocidente. Baseiam-se no 'Cântico dos Cânticos" e se completam com extensos comentários em prosa. O pequeno reformador da ordem carmelita - ao que tudo indica não media mais que um metro e meio - foi junto com Santa Teresa D'Ávila uma das mais pungentes figuras místicas do início da modernidade européia. O apelo de seus poemas é imenso. Inclusive entre poetas não ortodoxamente católicos, como o judeu-americano George Oppen ou o galês Dylan Thomas, que dele tomou de empréstimo o mote para o seu mais conhecido poema. Para ler o poema de Dylan Thomas, clique AQUI.


Melhor vassalo não há: o Poema do Cid

Detalhe de um manuscrito do Poema do Cid, 1344









'Mio Cid Ruy Díaz por Burgos entró'

3
Mio Cid Ruy Díaz por Burgos entró,
en su compaña sessaenta pendones.
Exiéndole ver mugieres e varones,
burgeses e burgesas por la finiestra son,
plorando de los ojos, tanto avién el dolor.
de las sus bocas todos diziían uns razón:
-!Dios, qué buen vasallo, si oviesse buen señor!



[Fragmento del Poema del Mío Cid, anónimo, séc. XII]






'Meu Cid Ruy Diaz por Burgos entrou'

3
Meu Cid Ruy Díaz por Burgos entrou,
na sua companhia sessenta pendões.
Vieram-no ver mulheres e varões,
Burgueses e burguesas à janela se postam,
rasando os olhos, da mesma pungente dor.
De suas bocas escapa a contestação:
–Deus, que bom vassalo para tão mau senhor!



[Fragmento do Poema de Meu Cid, anônimo, séc. XII]





Nota – o Poema do Cid [como geralmente é chamado] consiste no grande épico á base da língua castelhana. E também a fonte do realismo que carateriza a literatura espanhola em largos traços. E faz, por ilustração, João Cabral reconhecer no espanhol um idioma “concreto”, como o inglês [não no sentido da poesia concreta, mas no sentido da objetivação do mundo pela palavra]. A ambos, Cabral contrapunha o francês e o português, como idiomas “abstratos”, menos marcados por essa presentificação do mundo exterior pela palavra. João Cabral costumava comparar esse épico com um roteiro de um filme pela precisão de detalhes narrativos. E isso é fato. Aprendi, em parte a escrever roteiros lendo e relendo este poema. Você lê o poema e “vê” os acontecidos. Tenho cinco diferentes edições anotadas do Poema do Cid. Uma delas com tradução em prosa para o inglês. Outra com tradução em verso para o espanhol moderno. Pode-se sentir, aliás, que em certos aspectos a linguagem do poema está mais rente ao português contemporâneo que ao espanhol. Volta e meia retorno a esse poema. Como quando se precisa de alimento ou vitamina. E saio sempre mais estaminado. O carinho que tenho por ele também se estende a óbvias razões pessoais. Ao fato de vir dele não só o meu próprio nome, pois Ruy não é mais que o apelido medieval de Rodrigo [em tempos idos Roiigo, de onde a abreviação Roi, depois Ruy], mas também o nome de meu irmão mais novo, que se chama Cid [que é simplesmente a abreviação do árabe Said=Senhor]. O nome de El Cid [ou O Senhor], protagonista do épico, era Rodrigo Diaz de Bivar [ou Vivar se quiserem]. Ruy Diaz de Vivar era um cavaleiro que caiu em desgraça junto ao rei de Castela, apesar de suas façanhas diversas combatendo os mouros e bons serviços prestados à sua majestade. Passou larga parte de sua vida no exílio. Castigo imposto por Alfonso VI, em meados do sec. XII. É essa falta de reconhecimento por parte do rei o que os habitantes da velha cidade de Burgos, no norte de Castela, quase na fronteira asturiana, lamentam quando o Cid e seus cavaleiros adentram a cidade no início mesmo do poema [3ª estrofe]. No entanto, apesar dela, o cavaleiro de Bivar – que lembra um pouco o perfil do Heitor da Ilíada: bravo guerreiro, mas pai dedicado e carinhoso – não mede esforços não só para alargar as fronteiras de Castela, mas também para recuperar sua honra enxovalhada. É claro que há muita vontade coletiva em torno da figura, a ponto de mitificá-la. Ao que parece, na realidade, o Cid chegou, num determinado momento, a tecer alianças com taifas muçulmanas e combater as tropas do rei. Mas isto é verdade histórica. E o poema não é propriamente a expressão da história tal como aconteceu. Mas como todo um povo gostaria que tivesse acontecido. Também há algo nesse apego Ibérico que remete para a família de meu pai, os Carvalho, que se espalharam pelo norte do Ceará (o epicentro é a velha e, hoje, decadente cidade de Granja) e oeste do Piauí. Suspeito que tenham sido gente da judiaria [ou seja, da comunidade de judeus-lusitanos] próxima a Braga, no norte de Portugal. E, portanto, cristãos conversos [cristãos-novos ou marranos] como tantas famílias pelo Nordeste afora. É o que faz sentir-me também nessa compositividade do judaísmo. Ou entrevê-lo como algo irmão, próximo. A ser tido em conta, por fraternidade e laço histórico.



Este pressentimento indefinido: Milano


Michael Andrews, Um homem que subitamente caiu de amores, 1952



'O amor de agora é o mesmo amor de outrora'


O amor de agora é o mesmo amor de outrora

Em que concentro o espírito abstraído,

Um sentimento que não tem sentido,

Uma parte de mim que se evapora.

Amor que me alimenta e me devora,

E este pressentimento indefinido

Que me causa a impressão de andar perdido

Em busca de outrem pela vida afora.

Assim percorro uma existência incerta

Como quem sonha, noutro mundo acorda,

E em sua treva um ser de luz desperta.

E sinto, como o céu visto do inferno,

Na vida que contenho mas transborda,

Qualquer coisa de agora mas de eterno.


Dante Milano



Nota – este soneto de Dante Milano é a prova mais cabal de que se pode escrever um soneto sem violar a necessidade e o desejo de uma expressão nova. Bebe tão obviamente em Dante, via Camões, e, no entanto, é mais preciso do que a vanguarda praticada sem radicação. Sem o enraizamento no local, de que nos falam autores como Simone Weil. Para mim, tem um significado especial. Na última apresentação de minha banda, em 1997, li este poema num intervalo entre uma e outra música. [A canção que veio a seguir, ainda lembro, era o “Tema de Vila Sésamo”, de Marcos e Paulo Sérgio Valle. De resto, tão bom quanto tudo que a dupla escreveu para a televisão. Quem não é imediatamente transportado para o começo da década de 70 ao ouvir o tema do Esporte Espetacular?] Creio que o poema toca na mesma exasperação de Drummond quando aborda a questão do momento e da essência [“Cansei de ser moderno, agora quero ser eterno”]. Porém o faz com ainda mais grandeza de forma. Sem dúvida, um dos sonetos do séc. XX para se trazer de cor, no lado esquerdo. Como a estrela do xerife fictício que todos somos. A estrela da manhã. Ou da manha de priorizar o que clama por prioridade.



sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Oráculo Manual e Arte da Prudência: Gracián


Ivor Abrahams,
1977



'Saber con
recta intención'

16. Saber con recta intención. Aseguran fecundidad de aciertos. Monstruosa violencia fue siempre un buen entendimiento casado con una mala voluntad. La intención malévola es un veneno de las perfecciones y, ayudada del saber, malea con mayor sutileza. Infeliz eminencia la que se emplea en la ruindad. Ciencia sin seso, locura doble.

Baltasar Gracián


'Saber com reta
intenção'

16. Saber com reta intenção. Asseguram fecundidade de acertos. Monstruosa violência foi sempre um bom entendimento casado com uma má vontade. A intenção malévola é um veneno às perfeições e, ajudada pelo saber, perverte com maior sutileza. Infeliz capacidade a que se emprega na ruindade. Ciência sem siso, loucura dupla.




Nota - Balasar Gracián (1601-1658) é o duplo de Vieira (1608-1697). Em tudo e por tudo. Enquanto Vieira viveu na periferia do Império Ibérico, convivendo com índios, negros, crioulos, a fronteira e a colonização, Gracián esteve no vero centro de poder desse mesmo Império à época da Contra-Reforma. Enquanto o estilo de Vieira é uma espécie de pororoca verbal - mas de fluxo admirável, a ponto de Fernando Pessoa chamá-lo de "o Imperador da Língua" - o de Gracián é puro desejo de criptograma e arte da epigramia. Gracián é a compensação dialética de Vieira. Uma pena que no Brasil tanto tempo seja gasto analisando filmes de Peter Greenway como índices de barroco. E, no entanto, não se leia nem Vieira, por um lado, nem muito menos Gracián, por outro. Afinal, culturalmente eles estão mais rentes a nós que Greenway. Certa feita, precisava investigar algo em um dos Sermões de Vieira e dirigi-me à biblioteca da universidade onde, então, lecionava. Demorei algum tempo nessa deliciosa tarefa. Localizei o Sermão que desejava - era o que se refere às três cegueiras. Mas o que me espantou, de fato: todos os volumes que consultei, bem como o que tomei emprestado não eram retirados em empréstimo há mais de uma década. Enquanto isso, os professores enchiam a cabeça da garotada de Barthes e Mcluhan. Os livros desse jesuíta - como os de Vieira - contêm tanta sabedoria, que trouxeram problemas diversos para ele (inclusive com a Inquisição, como os de Vieira). E podem ser lidos, como se lê esses manuais de sabedoria confucionistas orientais. Mas com uma vantagem. Por não passarem por um processo de tradução - inclusive cultural - mais drástico estão mais abertos a nosso entendimento. E a sugerir algo mais verdadeiro, por menos exótico e radicado no contínuo e na consequência históricos.



Humor, TV e Tiras de Sandálias


Eduardo Paolozzi, 1971



A TV e Eu no Escuro do Cinema

De início era sair bocejando diante da TV, à noite, e invocar a frase de Flann O'Brien: “mais um dia se foi, e nenhuma piada”. Depois de uns tempos, no entanto, se podia pensar quase com o ator Stephen Fry: “é fácil zombar de algumas coisas... Mas, de outro modo, sempre acho difícil satirizar algo de valor”.

Para minha geração, aí pelo final dos 80 e início dos 90, assistir programas cômicos como TV Pirata ou o começo mesmo de Casseta & Planeta – aí à altura em que eles mantinham um jornal impresso ou pouco depois disso – era uma espécie de vingança sobre a própria idiotia da televisão. Havia muito neles – em sua comicidade cheia de referências, citações – do deboche esgrimido pelo grupo inglês Monty Python. O próprio sucedâneo deles em carne e osso, na vida real, que levava o nome de “Circo Voador” – e movia-se de uma a outra cidade brasileira, promovendo performances de teatro e, sobretudo, de música – era uma expressa homenagem ao grupo inglês, cujo nome completo é Monty Python Flying Circus.

Estiveram, ambos, TV Pirata e Cassete & Planeta, entre os primeiros programas cujo eixo girava em torno de um deboche explícito e incessante da linguagem das telenovelas, dos telejornais, dos anúncios. Do comportamento padrão da TV. O problema é que num estalar de dedos a televisão absorveu esse senso de auto-deboche. Chupou-o como um daqueles fios de macarrão rebeldes para dentro de sua boca onívora. Passou a língua sobre os lábios untados de extrato de tomate. E seguiu adiante sem usar guardanapo. O tempo na TV é ouro. É federal.

Ou seja, o deboche em si estava longe de arranhar a linguagem televisiva. Do contrário. Rapidamente se foi constituindo em apenas mais um estratagema do qual ela podia, eventualmente, lançar mão. Especialmente quando sua credibilidade era posta em xeque. Um tanto como se lança mão de uma boa piada - uma protocolar, uma de português - para, em tese, desanuviar um ambiente tenso. De rescaldo, esse deboche que, de início soava saudável, tornou-se apenas mais um forte alimento de idiotia na TV, vazando para "a vida real". Foi mais ou menos por essa época que lancei mão de meu controle-remoto. E apaguei a televisão da minha "vida real".

Não foi um ato heróico. Foi apenas uma tentativa de sobrevivência.

Tive mais tempo para ler e instrospectar. Para aprender a ser menos espectador. Embora não creia que a televisão tenha me passado algo intrinsecamente mau. De qualquer modo, cedo me vacinei contra os excessos do consumo e da piada pronta. Embora reconheça as boas coisas que a TV me ofertou. E entre as quais, não incluira nenhum desses dois programas de humor mais "irônico" ou auto-referencial.

Novelas como Saramandaia, o Bem Amado ou Gabriela. Especiais como Quincas Berro d'Água ou O Caso do Zé Bigorna. Alguns filmes de antologia, como o Love Streams de Cassavetes, vistos, de início, na TV. Programas humorísticos como Chico City ou Os Trapalhões. O primeiro Sítio do Pica-Pau Amarelo ou a versão brasileira de Vila Sésamo. E, falando em versão brasileira, a imensa admiração (e gratidão) que tenho pelos dubladores dos maravilhosos desenhos animados e de algumas grandes séries norte-americanas vistos na infância e na adolescência. Penso-me como tradutor, tentando achar a voz que esses dubladores achavam com espantosa verissimilitude e talento.

Mas sobretudo sinto falta de um sentido gregário, análogo ao do cinema, que a televisão detinha mais ao seu início. O de congregar até mesmo os vizinhos do quarteirão para assisti-la. O de juntar a família, os amigos. E, claro, há o futebol. E as longas noites solitárias de uma insônia precoce que me assalta desde os quinze anos e foi, em parte, minorada pela TV.

Por esses bons serviços prestados, só posso ser grato à televisão, apesar de ter rompido com ela faz tempo. Há pelo menos uma década não acompanho telenovelas, por exemplo. Ou assisto programas regulares, à exceção de, volta e meia, mesas redondas sobre futebol. Embora não deboche desses programas regulares. Das telenovelas, por exemplo. E sobretudo do que as pessoas fazem deles. Apenas sinto que não tenho mais estômago. E que eles ficaram piores em vários aspectos. A TV aberta da década de 70, com todas as objeções possíveis de serem feitas a ela, era uma televisão mais refinada. E, sejamos sinceros, por, de início, ser quase uma televisão para uma elite.

Fenômeno análogo ocorreu com o canal de filmes Telecine, por exemplo. Que em seu início possuía uma grade de programação danada de interessante. Mas aí já são outras praias, distantes do imenso poder hipnótico que a TV aberta detinha nos anos 70. Quando, no início da década, ela sequer era 24hs. E ficávamos babando pela abertura da programação, às onze da manhã, quando, ao som de "Catavento" (Milton Nascimento), a retransmissora local da Globo destacava toda a programação do dia. Era uma TV com hora marcada para começar. E para acabar. Saía do ar por volta das duas da manhã.

Verdade que, às vezes, em doces sonhos, ainda a levo ao cinema. E sempre escolho uma daquelas cadeiras mais altas ao fundo – pois só freqüentamos multiplex. E, com um saco de pipocas do tamanho do Maracanã na mão esquerda, ponho a direita em seu ombro – cada vez mais delgado – e ficamos, como dois namorados, mais entretidos um com o outro do que com o que segue na tela. Quando menos se espera, há pipocas no chão. Mas a TV é emotiva e chora muito nos filmes. Mesmo nos de ação ou naqueles documentários sobre as migrações do ganzo cinza para o Alasca. Então, tenho sempre de levar um lenço branco, pristino, recém-engomado no bolso.

Isso de lenço, no entanto, é cena dos próximos capítulos.




Nota – uma das melhores cenas que já vi na TV foi circunstância de sua precariedade e incipiência. Havia um garoto-propaganda, na TV Ceará, no início dos 70, que era conhecido simplesmente como Toinho. Toinho era, na verdade, o anti-garoto-propaganda: baixinho, gordinho, cara de povão reforçada por um indefectível bigode escovinha. Mas era falante, exaltado, um truão nato. Daquela mesma escola do Rádio que ainda hoje encontra descendentes em gente como Sebastião Belmino ou a turma de Nas Garras da Patrulha. Pode-se até imaginar como Toinho começou na TV: "o comercial da Sapataria Esmeralda precisa ir ao ar! Como? Não tem ninguém? Chama aquele controlador de áudio metido a engraçado". Ora, àquela altura do circo, alguns comerciais eram feitos ao vivo. Ao anunciar uma marca de sandálias do tipo Havaianas, nos moldes de então – não soltam as tiras, não tem cheiro – Toinho pareceu crer tanto em sua afirmativa que mandou ver no repuxo das tiras. Resultado: elas se soltaram. Imediatamente, o câmera, atento à situação, rapidamente moveu o plano americano de um Toninho atônito, com as sandálias esfoladas nas mãos, e buscou o assoalho do estúdio. E houve alguns segundos de silêncio pontuado por rumores tácitos fora de campo e aquele assoalho mal varrido. E também algo parecido com alguém tentando abafar a gargalhada. E então se passou para o anúncio seguinte. Foi um lindo momento. Mais didático e pós-moderno que todas as momices, trocadilhos e gags dos programas cômicos posteriores. Ou do que as teorias lidas sobre comunicação de massas por ocasião do mestrado. E, dizem, nunca se venderam tantos pares de sandálias em Fortaleza quanto por aqueles dias.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Ho-ho-ho: A Christmas Tale


[s/i/c]



Os Relógios do Natal

Só uns poucos anos atrás ganhei, de uma prima bem-humorada, uma fornida caneca de chope – que até hoje guardo, com carinho. Verdade que, pensando bem, a tenho utilizado com mais parcimônia de uns anos para cá. Neste 2008, da mesma prima espirituosa, recebi um belo porta-retratos e um álbum. Para pôr as fotos.

Sinal dos tempos.



Uma farsa vicentina


Marcel Marien, La Putain R., 1966



Quem tem euros [farsa em meio-ato]


Dois caminhoneiros portugueses de meia-idade, acabam de sair à rua de um restaurante, na Varjota, onde haviam jantado:


Caminhoneiro 1

Qual o ponto g da Varjota, meu bom gajo?


Caminhoneiro 2

Ao sul do Papicu. Mas o preço é um ultrajo.


Caminhoneiro 1

Pregunta a rapariga se temos um desconto!


Caminhoneiro 2

Diga lá, moça, quanto? Oitenta e cinco contos?


Caminhoneiro 1

E ora diz-me que fiado só no dia de São Nunca.


Caminhoneiro 2

E inda temos a pagar a diária da espelunca.


Caminhoneiro 1

Claro está, claro está, temos cá um problema.


Caminhomeiro 2

Grave não há de ser: vamos a Praia d'Iracema.





Só o realismo resguarda a empatia dos perigos do cinismo e das ironias ocas


Francis Bacon, 1949



Para passear por fora do próprio crânio

The most obvious, ubiquitous, important realities are often the ones that are the hardest to see and talk about. [David Foster Wallace]

Os perigos de pensar que o estético é auto-suficiente é também o perigo de desistir da perspectiva realista em arte.
É o momento terrível de se pensar que se perdeu de uma vez e para sempre as chaves de decifração do mundo. A possibilidade de contato com ele. É contra isto que se insurgiu a mente brilhante de, digamos, um David Foster Wallace. Ele percebeu algo contra o qual se insurgir em sinceridade: o cinismo e a hipocrisia contida na estética de alguns dos prosadores pós-modernos que vieram antes dele, por mais brilhantes que fossem enquanto escritores dotados de uma técnica: Pynchon, DeLillo, Coover, Burroughs, Gaddis, Barth.
O experimentalismo em arte não pode se auto-nutrir. Ou ser feito deixando os outros de fora. Os outros estão no mundo, concretamente. Ainda não existe um corpo virtual. Não se pode escolher uma outra humanidade, virtual, para conviver com ela nos termos ideais que se deseja por capricho ou volubilidade.
Ora, deixar os outros de fora, equivale a deixar o mundo de fora. A se estar completamente vedado dentro de si mesmo. Sem um canal de comunicação com a realidade que passe pelo mínimo poro do corpo. O que sai do devaneio narcisista, do fechar-se-sobre-si a partir de referências livrescas ou profusocitações, de alguns, é apenas ruído. Narcisismo inconsistente, vanguarda árida, dandismo inconseqüente. Mas não arte. Ou sequer pensamento estruturado em honestidade.
Esses prosadores pós-modernos, de início, tinham uma missão que parecia de todo razoável. Sua missão era a de denunciar que o modo realista como a literatura estava tentando traduzir o mundo, à altura dos turbulentos anos 60, era equívoco – porque suas convenções já estavam desgastadas, rotas, cansadas, convencionadas e aclichesadas demais – para dar conta do mundo. Então, era necessário apontar essas fissuras e debilidades. Ou o modo como elas eram tomadas em naturalidade. Mais ou menos como o cinema de montagem “invisível” hollywoodiano foi denunciado pela perspicácia dos “jovens turcos” franceses, do cinema-novo.
O que tornava o realismo clássico – bisneto de Flaubert, neto de Joyce e Hemingway, filho de Bellow – inviável para a época, era que a própria realidade já nem de perto era a mesma dos tempos desses heróis do modernismo. As sentenças criptográficas de Pynchon; os artefatos auto-canibais de Coover; as intrusões narrativas de Barth, o cinismo programado de Borroughs, tudo isso se arregimentava para estilhaçar a hipocrisia de uma sociedade pós-industrial complexa, monstruosa, excessivamente afeita ao consumo, à abundância, ao mesmo tempo que desprovida de qualquer idéia de sacrifício por parte do indivíduo. O ponto é que ao desenvolver tal projeto, essa geração de escritores conseguiu apenas legar a seus leitores e epígonos hábitos de escrita e normas estilísticas como um valor em si. Ou seja, a segunda parte do caminho, o reencontro com o mundo, restou secundarizada e amesquinhada no processo. Ou simplesmente não existiu.
Portanto, esses prosadores, de meados dos 60 aos 90, se empenharam mais em denunciar a má representação do mundo por uma realismo cansado – tarefa negativa – do que em achar uma alternativa possível para essa representação. E, assim, a meio-caminho ficaram presos, siderados pela própria perspicácia de sua denúncia. Deslumbrados com suas habilidades de artesãos da denúncia. Como artesãos eles agiram, malcomparando, como carrapatos: sugaram o sangue do cavalo que parasitavam – e que se chamava realidade – mas foram incapazes de plantar seu próprio de comer no solo dessa realidade-cavalo. O mundo foi abandonado em favor de um universo estético fechado, repleto de devastadoras ironias e cinismos sem referencialidade. Uma grande farra estética. Vigorosas demonstrações de virtuosismo, como naqueles longos solos de guitarra onde, por vezes, há mais datilografia veloz que propriamente melodia, paixão, engenho e algum sentimento humano: seja suave, seja sonoro e furioso.
Esse louvor da arte como um valor em si (no fundo, aurático, religioso – e logo, idólatra –) é a mesma pasmaceira que se nota em alguns artistas por toda parte hoje em dia. [E, inclusive, claro, também aqui pelo Brasil, em diversas áreas: poesia, audiovisual, dança, artes plásticas, etc.]. Artistas que, cheios de ilusão – e não de fantasia radicada no real – entendem que o pequeno mundo que constroem dá conta de ler as realidades que estão lá fora. Ou ainda pior, estão convictos: é impossível lê-la.
O ponto, aqui, é que as obras gestadas por esses artistas sequer se põem a serviço de apaziguar o espírito do próprio artista que, mesmo sem nelas acreditar, necessita continuar elaborando-as “daquela” maneira niilista para não se ver face a face com sua própria hipocrisia ou mediocridade. A renúncia ao realismo – a um realismo complexo, sopesado, buscado, de nova estirpe – conforma também um auto-consumo da própria arte como uma sorte de droga em nada diferente do tabaco, do álcool, da maconha, da cocaína, da heroína, do blogue como purgação do tédio, do fumo de mascar, das horas na academia esculpindo o corpo, das telenovelas ou das bandas de forró que soam uníssonas.
Dependência que vive de si. Para si. Que causa paralisia. Que é vício, não virtude. Engessa. Mesmo quando se pensa estar produzindo feito um escravo de Jó. Essa dependência torna o artista incapaz de saltar para fora de seu ciclo auto-semovente. De seu umbigo repleno de hedonismos, bocejos, ironias e pseudo-sofisticações. Artefatos exóticos, esquisitos – supostamente bebidos em fontes da cosmópolis, porque alavancados pela internet –, mas formalmente ocos é o que surge desse deplorável mundo novo em que o artista posta em segundo plano o que é necessário em favor do como é necessário.
Uma perspectiva maneirista, fechada sobre si mesma. Tumular. É nessa perspectiva, amaneirada, afrancesada nas idéias, muito afeita a sofisticar coisas simples, que muitos optamos por viver. Dos nacos de uma linguagem prolixa, que, apesar de criar conceitos em espantosa voragem, não resiste quando é torcida pelos dedos ásperos do cotidiano – como se torce café num daqueles velhos panos enodoados pelo uso. Aqueles que por mais que se lave, ainda se fica com impressão de que a alma dos grãos de café nele restam como por um golpe de inércia ou pela misericórdia do ato enquanto rotina inescapável.
Porém há mais dignidade nesse pano enodoado pela necessidade de se fazer, diariamente, com paciência e método, com experiência, uma boa medida de café, forte e aromático – para se saborear melhor a manhã antes de se lançar à rotina dos dias – do que nessas trívias espúrias de tornar a arte o lenitivo químico da vez: tolas instalações de panos ou lençóis pendendo de um varal, por exemplo.
A questão aqui é que o varal da instalação não resguarda um segundo moral do varal real, em que a lavadeira estende com mãos rachadas a sua roupa recém-lavada. Porque são precisamente as ranhuras nas mãos rudes da lavadeira, grossas como uma casca, o que empresta dignidade ao lençol que a brisa agita, feito uma bandeira branca sopre o capim da várzea à volta da lagoa. É o costume, a rotina desse estendimento o que não vaza para a instalação. O gesto do costumeiro. O relógio das tarefas longas e pacientes, onde o amor reside de modo tão pouco atraente. Porque as verdadeiras formas do amor nada tem de glamour. Pois, sendo as mais belas, conseguem ser também as mais úteis.
E, portanto, são essas as mãos que sempre ficam do lado de fora das instalações. Justo as que mais precisariam ser internalizadas, porque conhecem seus assuntos desde dentro, a ponto de serem só um com eles. E, logo, a instalação se situa milhas náuticas de distância de qualquer possibilidade de interação com a história e com o passado comum. Afinal, “o mundo não pode ser representado ou revelado”.
E é pensando por aqui que também se pode divisar: não se pode assumir o mundo como capricho. Com o espírito do volúvel. Do tipo, resolução repentina: agora vou inovar. Ou isso é ingênuo demais, ou embute má-fé. Má-fé consciente ou sub-reptícia. Mas mesmo quando sub-reptícia, ela se vai explicitando, ao longo das horas, dos dias, dos anos. As possibilidades de uma inovação verdadeira, em arte, sabemos, são escassíssimas. E radicam também num mapeamento do local. O local aqui no sentido mais prosaico: os vizinhos, o boteco, a rua, o bairro, a cidade, as palavras que te cercam.
Toda a vontade legítima de inovação aponta para um ângulo inevitável: a superação do que já foi feito. Ora, superar o que já foi feito, ou, no mínimo, expressar-se com a unicidade de uma voz achada, requer horas queimando pestanas e apurando o que de melhor já foi gestado, imitado, jogado, brincado, citado, digerido, variado, tresvariado, dissonado, etc. E isso vinculando a área específica em que se age com o contexto amplo, macro, do atual, da circunstância. Mas, aqui, pelo menos, há duas coisas: 1. a necessidade de se aprender com o passado – única possibilidade real de se estar no presente de modo alerta, à altura do presente e 2. ascese (que, originalmente em grego quer dizer “exercício” e, portanto, rotina, esforço continuado e também atenção – no sentido de concentração extrema, extática: êxtase).
A raiz da palavra ascese não indica apenas o esforço do místico para se lavar das impurezas do mundo, mas, indo bem mais longe, um exercício capaz de tornar esse mundo mais cômodo e habitável. Fruível. Também para os outros. O custo disso está encascado na mão da lavadeira. Mas é só por conta dessa casca que o mundo torna-se um lugar menos insalubre para os que virão depois de nós. Sobre esse segundo ponto, o da ascese, Auden nos diz que “rotina num jovem é sinal de [boa] ambição”. Sobre o primeiro argumento, o da necessidade da memória e do passado – de onde se decalca, entre outras, toda a obra de Benjamin – há a afirmação de outro mestre alemão, Karl Kraus: “o historiador é como se fosse um profeta olhando para trás” (e quem aqui não lembra, é quase automático, do Agelus Novus benjaminiano?). Mas claro, só após esse exercício das articulações do pescoço, do olhar para trás sem virar estátua de sal, é que se pode divisar melhor os próprios dias que correm. Os dias em que moramos, no dizer de Larkin.
George Oppen, escritor acima de qualquer suspeita – pois passou quase 25 anos sem escrever poesia porque havia coisas “mais importantes” onde empregar as mãos – é um testemunho disso. Quando o poeta Richard Wilbur insinua que é preciso afastar-se da esfera do discurso – ou seja ocupar-se com experiências que nada tem a ver ortodoxamente com a área lingüística, da poesia, para poder retornar à poesia com a precisão do artesão – ele está também indicando que não se pode escrever a não ser a partir de experiências sedimentadas com o mesmo vagar com que os detritos, os pequenos seixos, o cascalho, as cracas, ostras, algas, sargaços, restolhos e restos de mariscos se deitam no leito de um rio, ao longo de anos, décadas, séculos – tempos sem tempos – conformando o próprio leito do rio. Tornando-se um com ele. Em causalidade e tempo longo. Ao mesmo tempo ele e sua memória. Eis a imagem para o artista e sua arte.
Na escrita – ou em qualquer outra linguagem – se dá o mesmo. E esse sedimento de experiência, essa crosta do já vivido, é tão preciosa quanto a própria vida do artista, porque assenta nas suas reminiscências. Cair na ilusão de uma arte que sai de tua cachola sem relacionar-se com a concretude – inclusive material, apalpável, farejável, degustável, visível, memorável – do mundo é conversa para um rebanho de búfalos cochilar, mesmo se com os cascos afundados na lama mais densa dos charcos e igarapés – com vivazes vitórias régias e profusos aguapés – da Ilha de Marajó. Tentar tornar arte e memória, arte e história compatíveis é uma das poucas tarefas que restam a um escritor, a um artista. Foge da gratuidade de uma arte que se compraz apenas de virtuosismos irônicos e jogos de estilo.
O resto, é recepção acrítica de teorias da recepção, classes de redação criativa, escombros do politicamente correto e as prolixas lições pós-modernistas à francesa.