sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Algo que está algures entre o que se pensa e o que se diz: MacCaig


Pablo Picasso, 1931



Incident

I look across the table and think
(fiery with love)
Ask me, go on, ask me
to do something impossible,
something freakishly useless,
something unimaginable and inimitable

Like making a finger break into blossom
or walking for half an hour in twenty minutes
or remembering tomorrow.

I will you to ask it.
But all you say is
Will you give me a cigarette?
And I smile and,
returning to the marvelous world
of possibility
I give you one
with a hand that trembles
with a human trembling.
Norman MacCaig


Incidente

Olhei ao longo da mesa e pensei
(ardendo de amor)
Me pede, vamos, pede
para eu fazer algo impossível,
algo inútil de tão bizarro,
algo inimaginável, inimitável

como fazer um dedo abrir-se em flor
ou caminhar meia hora em vinte minutos
ou lembrar de amanhã.

Queria que você pedisse.
Mas tudo que você diz é
Você vai me dar um cigarro?

E eu sorrio e,
de volta ao maravilhoso mundo
da possibilidade
lhe passo um
com uma mão que treme
com um tremor humano.



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Da prece pouco proveitosa: Wright


David Smith, 1950



Confession to J. Edgar Hoover

Hiding in the church of an abandoned stone,
A Negro soldier
Is flipping the pages of the Articles of War,
That he can't read.

Our father,
Last evening I devoured the wing
Of a cloud.

And, in the city, I sneaked down
To pray with a sick tree.

I labor to die, father,

I ride the great stones,
I hide under stars and maples,
And yet I cannot find my own face.

In the mountains of blast furnaces,
The trees turn their backs on me.

Father, the dark moths
Crouch at the sills of the earth, waiting.

And I am afraid of my own prayers.
Father, forgive me.
I did not know what I was doing.

James Wright


Confissão a J. Edgar Hoover

Escondendo-se numa igreja de lápide esquecida,
Um soldado negro
Folheia as páginas da Articles of War,
Que não sabe ler.

Pai nosso,
Ontem à noite devorei a asa
De uma nuvem.
E, na cidade, esquivei-me
Para rezar com a árvore enferma.

Trabalho até morrer, pai,
Removo as grandes lousas,
Escondo-me sob as estrelas e os bordos,
E ainda assim não encontro meu rosto.
Na serra, fornalhas e fuligem,
As árvores me dão as costas.

Pai, as traças negras
Agacham-se nas soleiras da terra, em espera.

E temo minhas próprias preces.
Pai, perdoa-me.
Eu não sabia o que estava fazendo.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Bossanovando os documentos


Hélio Oiticica, 1957



Na ausência da trindade, vamos contar anedotas


Acabo de assistir Coisa Mais Linda – História e Casos da Bossa Nova no Canal Brasil. Não vi esse filme quando passou no cinema. O documentário é muito limpo. Joga com espaços assépticos e registros ao vivo. E os alterna com imagens de arquivo. A fórmula nada tem de nova. Mas alguns espaços, apesar de maltratados, ainda guardam charme. Como o Teatro de Arena da antiga Faculdade de Arquitetura, por exemplo. O teatro foi erguido no pátio de um claustro.
É, aliás, nele que se dá uma das tomadas mais belas do filme. Nela se vê Menescal cantarolando ao violão. Até aí, nada de excepcional. Menescal nunca foi propriamente um cantor. Mas, atrás dele há um arco, algo colonial, e, atrás do arco, um pouco à penumbra, na parede a meio, um painel de azulejos com padrões geométricos. Belos azulejos clássicos - ou seria melhor dizer barrocos? Com o perdão da redundância: azuis.
Digo isto, porque chega a ser extemporânea a discussão sobre se a bossa nova bebeu mais no samba, no jazz ou nos compositores impressionistas franceses. Sem dúvida, o samba vem como o ancestral mais determinante. Tanto assim que, num paradoxo, o próprio “criador” da célebre batida, João Gilberto, jamais aceitou o rótulo de bossa-nova. João entende que a música que faz começa com “s” e termina com “a”, tem sua raiz na África, mas medrou na Bahia e no Rio. Agora, mesmo que o jazz ou Debussy tivessem marcado a bossa-nova mais do que o samba – o que seria completamente impossível – ainda assim a bossa-nova valeria a pena.
Há no documentário a presença de grandes músicos. É bom ver Johnny Alf, Alaíde Costa, o Tamba Trio, Leny Andrade, Sérgio Ricardo e Joyce em ação. Ou João Donato, acompanhado por um exultante Robertinho Silva na bateria, num dos melhores momentos musicais do filme.
Mas não deixa de ser curioso, no entanto, que esta celebração do gênero se preencha, sobretudo, pelo que ela não mostra. Pela ausência. Uma espécie de ausência onipresente. Falo da trindade máxima da Bossa Nova, de seu alto clero: Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto. Afinal, todos falam deles. E toda conversa se não começa neles, neles termina. Coisa Mais Linda põe em campo, digamos, o "médio clero", cuja reza, ainda assim, claro, é interessante de ouvir. Especialmente a de Carlos Lyra, esse grande melodista. Mesmo que as anedotas e os casos não tragam algo de propriamente novo.
Vinícius e Tom já morreram há muitos anos, embora eles assombrem o documentário ao serem tratados com tamanha reverência pelos dois co-produtores do mesmo: Lyra e Menescal. Aliás, Tom chega a aparecer em filme de arquivo, conversando com Gerry Mulligan, cantando com Sinatra. Mas Vinícius, não. Talvez porque o documentário sobre o poeta ainda esteja muito recente.
Bem outro é o caso de João, que também aparece em arquivo. João Gilberto está vivinho da silva. Mas João sempre apontou para o essencial: a figura pública de João sempre foi sua música. As entrevistas de João sempre foram suas magníficas performances. Ele sempre soube distinguir perfeitamente entre arte e relações públicas. O que depõe por João é sua artesania, sua técnica. Somente. Elas são a figura pública João Gilberto. Ao contrário de quase todos os outros, o estilo de João é que faz seu Big Brother, jamais sua presença física. Ou sua fala - que só há nas letras de música. Nós não o vemos gastando-se em programas de entrevistas, em clipes, promovendo seus discos. Sequer em produções sofisticados, como o Ensaio, de Faro. Em vinte anos, numa única exceção, ele fez um especial para a Globo uns poucos anos antes da morte de Tom. De resto, o depoimento de João Gilberto a seu público sempre foi o mesmo: música.
Digo isto, porque há uma síntese nessa trindade da bossa-nova. Vinícius era o carioca mais escorreito. Jobim nasceu no Rio, sem dúvida, mas sua família é gaúcha, e ele herdou algo desse temperamento do Sul – ainda que musicalmente, a exemplo de seu ídolo, Villa-Lobos – estivesse mais perto dos sertões aqui de cima. E João, o de Juazeiro da Bahia, quase de Canudos, é o Nordeste em estado puro. Portanto, se o pai é carioca e o filho é assim meio gaúcho, o espírito santo é da Bahia para cima. O mais certo é que os três são cosmopolitíssimos. E João até morou na Cidade do México, por conta de sua admiração pelo bolero e por Lucho Gatica.
Deixando a geografia de lado, não deixa de ser extremamente difícil fazer um documentário sobre bossa-nova pondo tão em campo figuras de fundo e deixando de lado quem realmente importa.
Talvez, por isso mesmo, a ressalva esteja no próprio título: "história e casos da bossa-nova". A desculpa vai um pouco por: “nós, que contamos os casos, contamos sobre Vinícius, Tom e João, que são, de fato, a história da bossa-nova com 'h' maiúsculo".
Bom, mas falei dos azulejos na parede, porque há na bossa-nova um quê de brasilidade e de feminino que é muito comovente. Os azulejos são ladrilhos delgados e têm algo de femino em sua esguia elegância. São frágeis, se isolados. Mas, em painel, atravessam séculos como testemunha de uma arte da mestiçagem e do compósito que já nos foi prometida desde a cultura mourisca. Na verdade, os azulejos são azuis por uma ilusão de ótica. Eles são, de fato, morenos - esse adjetivo que o politicamente correto faz força para nos roubar. A curiosa analogia entre os bossa-novistas e os trovadores provençais, no que diz respeito ao papel sobressalente da mulher, feita por Carlos Lyra, é tão instigante quanto pouco provável.
De resto, só os incautos se deixam apanhar pelas boutades de Menescal. Pois é mais ou menos óbvio que Bôscoli não fez a letra d'O Barquinho relembrando os trancos de um motor que falhava. Ou pode-se duvidar que a razão de a bossa-nova desenvolver um estilo vocal tão em sussurro deveu-se à exigüidade dos apartamentos em Copacabana.
Algumas das imagens mais emocionantes no documentário, no entanto, vêm das latas de arquivo. Como as raras tomadas em que vemos Silvinha Telles. Mas, ainda assim, o travo amargo que fica na boca é o de perceber que o país em que vivemos hoje é uma espécie de desvio descomunal, que passa bem longe da “coisa mais linda” e dos sonhos dessa geração ilustre.
Falo dos azulejos, porque é impossível pensar num ícone que remeta tão expressamente à nossa arquitetura colonial. E, portanto, a um forte senso de tradição. Ora, que me perdoe José Ramos Tinhorão – que, de resto, é um historiador muito agradável de se ler, munido de um conhecimento de causa de se tirar um ou mais chapéus – mas a bossa-nova não é mais do que azulejos postos em música.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Assim como o son ou a rumba guardam algo


Jean Epstein, Coeur fidèle, 1923



Alguma inteligente mimese


"Todos os tiranos são o mesmo tirano, embora não pareçam iguais. Castro, com sua barba de maranhas e seu nariz romano, é capaz de produzir uma poção de carisma tóxico à segunda potência: os que bebem suas palavras se intoxicam para sempre. É Circe de uniforme que transforma em porcos seus amantes.”

[Cabrera Infante, in Mea Cuba]


Nota - este trecho de Mea Cuba me foi relembrado num texto de Elias Pinto, blog de minha amiga Cris Moreno, jornalista de Belém. Cabrera Infante morreu em seu frio exílio londrino em 2005. Seu senso de humor guardava algo de brasileiro, assim com o son ou a rumba guardam algo de samba ou de choro. Esse humor está exemplarmente em dia no seu livro de memórias, Havana para um Infante Defunto [La Habana para un Infante Difunto, 1979] publicado aqui pela Companhia das Letras. Infante era apaixonado por filmes, escrevia críticas e chegou a dirigir o Instituto do Cinema de seu país, antes de se desentender com o regime em 1965. Sua obra maior é o romance Três Tristes Tigres, em que estiliza as nuanças dos falares de Cuba.

Um ente imune ao tato deste mundo: Wordsworth


André Masson, 1941



CLXXX 'A slumber did my spirit seal'


A slumber did my spirit seal,
I had no human fears:
She seemed a thing that could not feel
The touch of earthly years.


No motion has she now, no force;
She neither hears nor sees;
Rolled round in earth's diurnal course,
With rocks, and stones, and trees.

William Wordsworth



CLXXX 'Um sono selou meu ânimo'


Um sono selou meu ânimo
Não tive medos humanos:
Ela era um ente imune
Ao toque dos térreos anos.

Já nem força tem, imóvel,
Ela não ouve ou vê;
O diuturno curso a envolve
Em seixo, e rocha, e ipê.


Bairros & depósitos de Fortaleza


Paula Gavin, 2007


Entre sábado passado e a Praia do Futuro
Pode-se concordar com o Professor Antônio Lemenhe, quanto a vislumbrar o bairro como o núcleo inicial do qual partir para traçar um mínimo de planejamento urbano. Um tal que dê conta das demandas extremas de uma cidade com as dimensões e os problemas de Fortaleza. E, mesmo, num plano mais sutil, essa progressiva despersonalização dos bairros fortalezenses é, de fato, preocupante.
O lugar de um homem é sua cidade. Mas é antes sua rua e seu bairro. Mora-se num bairro, antes de se morar numa cidade. É no bairro onde, efetivamente, se tem vizinhos e amigos. E é lá onde se sai para comprar pão ou jornal. E é lá onde se bate um racha. Ou se tem ilusões amorosas. Onde se corta o cabelo. Ou se toma um trago. Ou se vai à missa. Ou onde se cria uma teia de conversas, afetos, presenças, procuras.
Lembro, que muito do que se produzia na década de oitenta em termos de música, em Fortaleza, era bastante decalcado dessa instância do conviver no bairro. Dessa geografia do bairro. Por exemplo, o Grupo Budega era formado, em predominância, pela turma que cresceu na Nova Aldeota e na Varjota. Enquanto o Latim em Pó era da turma da Aldeota Velha e da Piedade. Daí que o pessoal do Budega tenha se conhecido no Colégio Santo Inácio. Ao passo que a turma do Latim era do Cearense.
Uma cidade é tão mais forte culturalmente quanto ela possibilita essa diversidade entre bairros. Essa especificidade para cada bairro. Afinal, um bairro só se forma pela convivência. E isso leva tempo. Sem história, um bairro é apenas um depósito de gente. E é nisso que os bairros fortalezenses estão se transformando. Grandes empórios de consumo e tédio.
Um bairro é algo mais vivo. Não é só um lugar. Um bairro é um lugar com pessoas. Com pessoas concretas. E, no entanto, não só com as que moram nele atualmente. Mas também todas – indistintamente – que já passaram por ele, com suas angústias e sonhos, contam. Por curto ou longo tempo. E é destes que estamos abrindo mão. Destes que já passaram. E porque o fortalezense não se dá conta de que o presente não é um valor absoluto. O presente em si, de fato, vale bem pouco. É, quando muito, uma estreita faixa espremida entre sábado passado e a Praia do Futuro.
Logo, se o bairro é algo concreto, isso se deve a seu passado – algo que decreta suas possibilidades de futuro. Ao acúmulo de todas histórias que passaram por ele ao longo do tempo. À soma das esperanças e frustrações de todos os que, um dia, o habitaram. E dito, de novo: bairro não é apenas um lugar. É a parte desse lugar que está no primeiro coração das pessoas.
Fortaleza é tanto mais gostável quanto mais possível dimensionar isto. É a maneira como certas pessoas olham e falam de seus locais, de seus espaços, de seus bairros, que acaba por traduzir o que realmente se passa neles. O que eles representam. E o que Fortaleza, de fato, é. É por isso que Fortaleza seria infinitamente mais pobre sem o considerável número de alusões concretas a bairros ou locais da cidade feitas por artistas, historiadores, jornalistas, etc. E essas referências, claro, também se encontram não no ar, mas na impressão que as pessoas colhem, como flores podem ser colhidas. E, de fato, Fortaleza seria bem mais mesquinha sem qualquer pequeno mapa do tempo, de Belchior. Ou sem o Mucuripe, dele e de Fagner. Sem a Maraponga de Ricardo Bezerra. Ou sem a Gentilândia de Airton Monte. Sem a Aldeota, de Ednardo e tantos outros. Ou sem a Praia de Iracema de Luís Assunção, Alano de Freitas, Baleia e toda a melhor boemia. Sem o Bairro de Fátima de Ethel de Paula. Ou sem o antigo Outeiro de Herman Lima. Sem o Pici de Rachel de Queiroz. Ou sem o Sabiaguaba dos irmãos Albano. Sem o Benfica de Adolfo Caminha. Ou sem o colecionismo zeloso de Nirez e Christiano Câmara. Sem a geografia estética de Girão. Ou sem a belle-époque de Rogério da Ponte. É dessa sorte de antologia de olhares, a partir de diversos tempos e propósitos, que se faz uma cidade. E é nela que Fortaleza pulsa seu coração mais secreto.
No momento, é o Mucuripe que está ameaçado. O Mucuripe já foi bem enxovalhado também. Mas trata-se de uma região de grande relevância histórica para Fortaleza. Especialmente por haver sido e, em parte ainda o ser, uma região de pescadores. Uma colônia de pescadores que foi tangida da beira da praia, pela ganância dos especuladores, para as encostas do Castelo Encantado. E, no entanto, os pescadores continuam trabalhando lá, e há uma pequena capela nas redondezas. No dia em que passarem um espigão por cima daquela capela, na verdade o estarão passando por cima dos corpos daqueles pescadores e de suas famílias. E os que já morreram, vão morrer uma segunda vez. E o Mucuripe se povoará de visagens. Pois todos sabemos que foi no Mucuripe – e por causa dos pescadores – que se fez o mais belo ensaio fotográfico jamais realizado no Ceará. E onde também um gringo registrou imagens em filme que só em sonho. O Mucuripe já possuía uma densa carga alegórica no Iracema, de Alencar. É preciso tomar conta do Mucuripe. Discuti-lo. Opinar sobre seu futuro. Saber sobre seu passado. Esculpi-lo. E com paciência. Caso contrário, José de Alencar, Chico Albuquerque, Orson Welles, e tantos outros, mas sobretudo os velhos pescadores não vão descansar em paz.
Se hoje o Mucuripe é esse cartão-postal, com sua bela enseada, barcos oscilando leve, e hotéis cinco estrelas farejando em volta, isso se deve à intrepidez desses velhos pescadores, antes de mais ninguém. E seria justo que, depois de tanta violência e destruição, depois de tanta hipocrisia, se preservasse ao máximo os vestígios da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes do bairro.
É bem bonito mas meio gratuito que pensadores fortes como Deleuze, Negri ou Andrew Benjamin advoguem desenraizamentos mundo afora. Eles escreveram – ou escrevem – seus ensaios aboletados em prédios de apartamento de duzentos anos. É, no mínimo, reconfortante. Mas o Ceará não tem prédios de duzentos anos. E, difícil, para nós, na mais brutal margem, é entrever vestígios mínimos de passado nos serem surrupiados a todo instante.
Fortaleza não precisa de mais feridas. Ela já vem agonizando faz tempo. Mas essa última medida da Câmara de Vereadores, franqueando o uso e a ocupação do solo – de lambuja – aos especuladores, nos enxovalha a todos. Entre mortos e feridos, nenhum final feliz com a ganância desses edis mal escolhidos. Que se anote e divulgue o nome de todos quantos votaram essa nova lei de uso do solo. E que não sejam reeleitos. Que sua memória seja amaldiçoada e se passe cal por cima de seus nomes.
Está mais do que na hora de tentar salvar o que ainda pode ser salvo dentro de nosso escasso patrimônio histórico. E o Mucuripe, farol da cidade, já esteve conosco tempo demais para que, de repente, sem qualquer forma de resistência, o entreguemos de mão beijada a um punhado de lobistas ávidos.
É desesperador pensar que apenas na imaginação - que só entre sábado passado e a Praia do Futuro - temos espaço para estar e lembrar de Fortaleza, ainda quando passamos por ela. Para apreciá-la do mirante da memória, dos lugares da reminiscência, se faz necessário algo menos abstrato, porque a beleza também habita a matéria. E há muito pouco de paisagem e história para se deixar aos que ainda virão. Ou, como quer Creeley, "o local não é um lugar. Mas um lugar em uma determinada pessoa. A parte desse lugar para onde se é impelido ou trazido pelo amor. Pare dele dar testemunho."


Nota - artigo originalmente publicado no jornal O Povo.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Ainda as estatuetas


Bernard Tschumi, Cinematic Beams, 1992



Os americanos estão se lixando para o Oscar


Só para respaldar o segundo comentário da postagem anterior:


"LOS ANGELES (Reuters) - A 80a cerimônia do Oscar, dominada por astros europeus e filmes de fraca bilheteria, pode ter batido um recorde negativo de audiência televisiva nos Estados Unidos, segundo dados preliminares da Nielsen Media Research, divulgados na segunda-feira.

[...]

As cifras nacionais devem ser divulgadas ainda na segunda-feira.

O número preliminar fica abaixo do de 2003, considerado o Oscar menos visto desde que a festa começou a ser transmitida pela TV, em 1953. Realizada logo depois do início da ocupação militar dos EUA no Iraque, aquela cerimônia deu média de apenas 25,5 pontos. A média nacional foi de 20,4 pontos." [Fonte: UOL]

domingo, 24 de fevereiro de 2008

De uma breve leitura domingueira do Diário só para Júlia Lopes


Robert Gober, 1992


Oscar, feiras, zagueiras, mutirões & o jargão jurídico


De uma rápida leitura do Diário do Nordeste de hoje [24.02.08]. Tomei como eixo de leitura, o segundo caderno [Caderno 3], e alguns artigos da seção de Opinião:

Meia-volante ou quarta zagueira?
[http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=514619]
O Jogada informa da convocação de Jana Cavalcanti, atleta cearense, para a seleção brasileira de futebol feminino sub-20. Mas sequer indica a posição em que a garota joga. Já imaginaram a grita geral que seria a omissão da informação se se tratasse de um garoto? Goleira, meia-volante ou quarta zagueira? Até para a gente se habituar ao nome das posições no feminino teria sido boa a informação.
Todos juntos, vamos
É um tanto engraçado que a cerimônia do Oscar tenha virado algo semelhante à Copa do Mundo. Mobilização nacional. Mas daí a dizer que “uma pesquisa da agência E-Poll/Reuters indica a flagrante torcida do público americano pelo filme Juno”, é colorir além da conta a expressão [Caderno 3]. Ou seja, é atribuir aos americanos uma postura bem nossa: adotar um filme como se fosse a seleção de futebol do país. Talvez mais imparcial fosse dizer que a pesquisa indica a “preferência” do público americano. Afinal, claro, os americanos não se reúnem em torno de um churrasco e põem bandeirolas na rua para apoiar a escolha de um dos filmes americanos. No caso deles, os filmes não-americanos que concorrem aos prêmios é que são a exceção.
A pátria de claquetes
Este ano, aliás, a frustração da galera de não ver um filme brasileiro concorrendo ao Oscar foi agradavelmente compensada com o Urso de Ouro atribuído a Tropa de Elite. E a galera já sonha com bicampeonato. Essa mistura de pátria de chuteiras com pátria de claquetes, de resto, é precisamente o tom com que o tema do Oscar é tratado aqui ["Brasil versus Oscar"]: fonte de orgulho nacional. Só que no caso do autor da matéria, ele não toma nenhuma distância, assume a patriotada na íntegra. E, notem, o texto dele está até divertido – apesar de ele vestir a camisa do torcedor de Oscar e dar bem pouca bola para uma postura mais isenta e crítica. Mas, às vezes, tem de ser esse vai ou racha, mesmo.
A Feira dos Malandros
Há um primor de eufemismo no editorial de hoje, que versa sobre o abandono das praças: “na Praça da Lagoinha, prospera de modo notório a Feira dos Malandros, onde objetos de procedência duvidosa são comercializados abertamente”. É preciso ser muito elegante para não falar em repasse de objetos roubados numa feira que, como o próprio nome indica, é de malandros. Taí, gostei. Resta saber se o consumidor da feira, que compra os objetos que são “comercializados abertamente”, também pode entrar na categoria de malandro. E, além disso, que medidas os poderes constituídos tomam para previnir ou fiscalizar essa comercialização aberta de objetos suspeitos de serem roubados.
O mutirão dos ladrões
Não é propriamente um equívoco, é mais a força da expressão, como no caso da “torcida” americana pelo Oscar. Porém, neste artigo sobre a Ronda do Quarteirão, a frase soa torta por uma razão: desvirtuar um termo que tem uma conotação bastante positiva e preciosa: “contudo, é preciso atentar que os ladrões estão fazendo até mesmo mutirões, principalmente nos chamados pontos críticos”. Convenhamos, o mutirão é um esforço coletivo que tem como alcance final um benefício à comunidade. O mesmo benefício que o articulista, em um tom, de resto, discutível, acredita que o eleitor usufruirá ao priorizar a segurança: “os eleitores devem só votar em quem oferece mais segurança, com base na mudança dos sistemas carcerário e penal”. Pode-se perguntar, apenas com base nesta mudança? Ou ainda: com a preocupação justificada pela segurança, sim, mas por que apenas com ela? E educação, e saúde, e transporte, e beleza, e o próprio sistema de eleições - que poderia ser distrital e de voto não obrigatório? Claro, segurança é uma das prioridades máximas de momento, mas, nos sentimos até mais seguros quando não se mixa alhos com bugalhos. Inclusive no precioso plano das idéias. E não se pode entregar uma idéia tão bonita quanto a de mutirão assim de mão beijada para os bandidos.
Qual a razão de não interpor o seu recurso adesivo?
Até que ponto o jargão de determinada classe profissional pode ser publicado no jornal impunemente, sem que seja minimamente filtrado para o entendimento de um maior número de mortais? Não falo isto em relação ao jornal como um todo. Pois ele é plural. Mas, os artigos da seção de opinião, por exemplo, pretendem alcançar um público mais amplo. Ainda que de longa educação formal ou acostumado a debater e medir idéias. Quer dizer, mais amplo, aqui, em termos das vivências profissionais de cada leitor, e não da educação formal deles. Pois os leitores que se dirigem à opinião possuem, em geral, mais anos de banco escolar ou mais horas de leituras. Ou, no mínimo de debate, de convivialidade pública. De outro modo, voltando ao jargão, é notória a verbosidade e o empolamento presentes no campo jurídico. Dizem que isso resulta de mais uma astúcia que as elites tecem, ao modo de trunfo. Uma reserva de poder. De qualquer maneira, um exemplo de artigo inadequado – por estar mais próximo de uma revista acadêmica que de uma seção de opinião – é este "Recurso Adesivo", escrito por um juiz que também é professor universitário: “se a parte obteve uma procedência parcial do seu direito e quer vê-lo logo executado (satisfeito), mas é surpreendida, posteriormente, pelo recurso principal da outra parte, qual a razão de não interpor o seu recurso adesivo, se os autos já irão mesmo para a Turma Recursal com o recurso principal da outra parte? Onde haver incompatibilidade? Qual o prejuízo que o adesivo causará ao processo? Incompatibilidade não se presume.” Perfeitamente claro, Meritíssimo. Eu também não quero interpor o meu recurso a alguém, especialmente se não estiver apaixonado. E depois, quem é que advinha mesmo as incompatibilidades conjugais? Além disso, também concordo que se deveria colar o adesivo, não no processo dela, mas no “vrido” do carro. E quanto à essa Turma Recursal, já encontrei mesmo com esse bando de bonequeiros lá pelo Arlindo.
Até a próxima!

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Quando é preferível ir direto à fonte: titereiros e apresentadores de talk-show


Hans Richter, Dreams That Money Can Buy, 1946


Da arte de transformar bonecos em humanos e vice-versa

O parente mais próximo do apresentador de talk-show na fauna comunicativa do passado é o titereiro. Mas por uma razão inversa. O titereiro punha bem às claras a regra do seu jogo. Ele nunca escondeu que comandava bonecos. E, quando também ventríloquo, lhes emprestava a voz. Não raro, no entanto, a assistência o esquecia, tal a perícia com que ele conseguia dar vida a um ser inanimado. Tal o modo como determinado boneco assumia uma personalidade vibrante, própria. O titereiro animava o jogo todo, mas era invisível. E, portanto, imprevisível. A tarefa do apresentador de talk-show é inversa. É vampiresca. Ele está sempre ali. Às vezes em close. A câmera quer comer seu rosto e nos mostra até a verruga que está começando a despontar, no pescoço. Ao contrário do bonequeiro medieval, ele toma seres de carne e osso e os transforma em títeres. Em zumbis, que nada mais fazem do que reproduzir mecanicamente aquilo que o próprio apresentador deseja que eles digam, façam, sintam ou sejam. É claro, nem sempre conseguem. Um amigo me disse, certa vez, que a "a literatura e a filosofia estão cheias de autores maus que escrevem para parecer bons, para se assear nos leitores, e, por conseguinte, produzem típicas aberrações." O caso é bem esse com os apresentadores de talk-show: eles se asseiam nos entrevistados e nos espectadores. Os titereiros pegavam aberrações e as humanizavam. Os apresentadores de talk-show pegam humanos e os transformam em aberrações.

Nada mais sem graça do que talk-shows. E justamente porque eles querem extrair do entrevistado até a mínima gota de graça no menor tempo possível. O problema é que essa graça é aferida pelo humor do apresentador e pelo tempo de edição frenética da TV. Se o entrevistado é maior do que eles, bajulam-no. Mesmo se essa maioridade se der pelos quinze minutos de fama da vez. Se é menor, tratam de amesquinhá-lo ainda mais, com requinte e variações. O certo é que dificilmente o espectador sai mais do que com ego – o imenso ego do apresentador – após a assistência de qualquer um deles: Ophra Winfrey, David Letterman, Marília Gabriela, Soares... Marília Gabriela faz anos que entrevista ela própria. Rigorosamente. Seu número poderia ser intitulado “A Volta ao Umbigo em Oitenta Programas”. Não só entrevista a si, mas o faz munida de um fervoroso patrulhamento do qual não se pode divergir por um segundo sob pena de ferozes ressalvas e censuras. O que ela defende é dogma. E seu ideal é que todos fossem "independentes" (seja lá o que isso quer dizer), divorciados, adpetos das cirurgias plásticas, a favor do aborto, afro-brasileiros, bissexuais (ao menos em intenção), espiritualistas (mas sem filiação religiosa), vagamente de esquerda, complacentes com os do Nordeste, defensores dos direitos humanos acima de tudo, dados à esoteria em moda, anti-católicos; fizessem análise; criassem os filhos "sem traumas" (acaso os tivessem); cuidassem zelosamente do corpo; andassem predominantemente de alto astral; "amassem o teatro"; não tivessem câncer; copiassem toscamente as últimas ondas comportamentais euro-americanas; criassem gatos; fossem ao supermercado com a mesma sacola; soubessem seus respectivos ascendentes; praticassem pilates; se devotassem a um certo consumismo básico; e também à busca do "seu espaço" a qualquer preço. Afinal, "você tem que ser você" -- seja lá o que isso significa desmembrado dos deveres que se tem para com os outros. Os muitos, variados outros. E que nem sempre praticam pilates. Seja porque não tem tempo, dinheiro ou disposição, seja porque preferem pescar, namorar ou olhar a rua pela janela com indiferença. Talvez este "você tem que ser você" funcione no mundo da publicidade, onde "um pneu é um pneu". Ou no mundo das citações, onde uma "rosa é uma rosa". Ou até no mundo deste texto. Ora, os outros - os muitos variados outros - e você são mais do que pneus, citações e textos. E vivem num mundo real. Mesmo que num país de ressalvas e auto-complacência. E, por um paradoxo histórico - que chega a ser deslavadamente cômico - Gabriela e Soares exercem uma função muito próxima de uma ferrenha e ortodoxa censura.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Poucos cigarros, muito trabalho e poucas cigarras, os males do Brasil não são


Sergio Berizzi, Cesare Butté e Dario Montagni, 1956


Fé e Lavanda

Elvira Lobato é uma jornalista que ousou mexer num vespeiro. Deu-nos uma reportagem detalhada sobre os vínculos de integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus com paraísos fiscais. Inclusive com a participação de doleiros.

Por conta disso, está sendo acusada de difamação em diferentes comarcas brasileiras. Como a repórter não pode estar presente a todas as audiências simultaneamente, acaba prejudicada. Foi a tática de vingança utilizada pela cúpula da Universal. Enquanto isso, eles tiram ouro do nariz. E dos dentes dos fiéis.

Ouvi de uma fonte ligada às favelas: a Rede Record ofereceu verbas dez vezes mais polpudas que a Globo, para ser parceira na organização e divulgação de um evento esportivo ligado às comunidades. Só para se dimensionar o quanto o marketing cultural é filtrado por uma noção – um tanto quanto fajuta – de justiça social.

É, pode-se suspeitar que haja vínculos – ao menos de trégua – entre as redes do narcotráfico e as redes dos supostos neo-pescadores de homens. Afinal, o destino do dinheiro, num e noutro caso, é a lavanderia.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

De um surrealismo mais denso que o europeu: Stevens


Francis Alÿs, 2008



The Emperor of Ice-Cream

Call the roller of big cigars,
The muscular one, and bid him whip
In kitchen cups concupiscent curds.
Let the wenches dawdle in such dress
As they are used to wear, and let the boys
Bring flowers in last month's newspapers.
Let be be finale of seem.
The only emperor is the emperor of ice-cream.

Take from the dresser of deal,
Lacking the three glass knobs, that sheet
On which she embroidered fantails once
And spread it so as to cover her face.
If her horny feet protrude, they come
To show how cold she is, and dumb.
Let the lamp affix its beam.
The only emperor is the emperor of ice-cream.

Wallace Stevens


O Imperador do Sorvete

Chame o enrolador de charutos,
O musculoso, e requeira que ele bata
Nos copos da copa coágulos concupiscentes.
Que as donzelas afrouxem-se nesses vestidos
Como de uso delas, e os rapazes
Tragam flores em jornais do mês passado.
Que ser e parecer formem o mesmo tapete.
O único imperador é o imperador do sorvete.

Tome do criado-mudo de pinho,
Faltando as três alças de vidro, aquele pano
No qual certa vez ela bordou cacatuas
E desdobre-o de modo a cobrir-lhe o rosto.
Se os calosos pés distenderem-se, são
A mostra de quão fria ela está, e estulta.
Que a lâmpada destile o filete.
O único imperador é o imperador do sorvete.

Uma receita de omelete: Pound


Herbert Bayer, 1942



Statement of Being

I am a grave poetic hen
That lays poetic eggs
And to enhance my temperament
A little quiet begs.

We make the yolk philosophy,
True beauty the albumen.
And then gum on a shell of form
To make the screed sound human.

Ezra Pound

Razão de Ser

Sou uma grave poedeira com prole
Que põe poéticos rebentos
E para realçar minha índole
Faço baixo os requerimentos.

Convertemos a gema em filosofia,
Em beleza real o albume;
E batemos na terrina da forma
Até a arenga soar como homem.

A sensualidade espiritual do mundo: Williams


Catherine Murphy, 1979



Blizzard

Snow falls:
years of anger following
hours that float idly down --
the blizzard
drifts its weight
deeper and deeper for three days
or sixty years, eh? Then
the sun! a clutter of
yellow and blue flakes --
Hairy looking trees stand out
in long alleys
over a wild solitude.
The man turns and there --
his solitary track stretched out
upon the world.


Williams Carlos Williams


Nevasca

A neve cai:
anos de ódio no seguir
de horas boiando ociosas abaixo –
a nevasca
deriva seu peso
fundo e mais fundo por três dias
ou sessenta anos, hã? E então
o sol! Um cacho de
flocos amarelos e azuis –
Árvores hirsutas seguem-se
em longas aléias
sobre uma solidão selvagem.
O homem dobra e ali –
sua trilha solitária dilata-se
sobre o mundo.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Obliquidade de discurso sacia sede de malícia: Eliot


Stephen Shore, 1974


Conversation Galante

I OBSERVE: “Our sentimental friend the moon!
Or possibly (fantastic, I confess)
It may be Prester John’s balloon
Or an old battered lantern hung aloft
To light poor travellers to their distress.”
She then: “How you digress!”

And I then: “Someone frames upon the keys
That exquisite nocturne, with which we explain
The night and moonshine; music which we seize
To body forth our own vacuity.”
She then: “Does this refer to me?”
“Oh no, it is I who am inane.”

“You, madam, are the eternal humorist,
The eternal enemy of the absolute,
Giving our vagrant moods the slightest twist!
With your air indifferent and imperious
At a stroke our mad poetics to confute—”
And—“Are we then so serious?”

T. S. Eliot


Palestra Galante

Observei: “Nossa amiga lua, dada à emoção!
Ou quem sabe (em fantasia, confesso)
Pode ser o balão do Preste João
Ou uma velha lanterna puída em decesso
A lumiar pobres viajantes até o iníquo.”
E ela: “como és oblíquo”!

E eu : “Alguém sobre as teclas emoldura
Esse noturno exótico, com o qual se explica
A noite e o luar; música com que se procura
Compensar nossa própria trica.”
E ela: “Isso me diz respeito?”
“Ah, não, eu é que sou estreito”.

“Você, senhora, é a satirista perene
A perene inimiga do absoluto,
Dando corda à nossa tristeza indene!
Com seu ar indiferente e astuto
Num só golpe refuta nossos versos deletérios ―”
E―“Somos assim tão sérios?”

O refresco que causa suco de malagueta nas partes alheias


Ellsworth Kelly, 1951


Faça o que eu digo, mas não implique se meu brinquedo se dá às suas custas

Uma excrescência na legislação de incentivo à cultura permite que se deduza do imposto de renda camarotes comprados para um evento musical privado, aqui em Fortaleza. Ora, sabe-se que todos os mega-eventos do gênero – Ceará Music, Verão Vida & Arte ou Feira da Música – trazem atrações de fora do estado a peso de ouro. No entanto, as migalhas ficam para os músicos locais, que recebem parcos cachês. Quando recebem. Até quando? Em parte, claro, a responsabilidade por esse estado de coisas passa pela classe artística de Fortaleza, incapaz de se organizar para reverter o panorama. Enquanto isso, os que poderiam pagar ingresso por um evento assim – e isso inclui alguns de nossos “expontes” da esquerda – balançam o esqueleto às custas dos esqueletos dos demais contribuintes. Eis a perfeita tradução de “esquerda festiva”.

Uma ligeira desproporção na periodização histórica


Ingo Maurer, 1992


Cabral e a fiação elétrico-subterrânea

Hoje, em um editorial de O Povo ["Da Fiação nas Cidades"]:
[http://www.opovo.com.br/opovo/opiniao/766309.html]
"A fiação elétrico-telefônica subterrânea no Brasil só foi introduzida em termos de grande porte com a construção de Brasília, inaugurada em 1960. O que pode ser considerado relativamente recente, levando em conta os 508 anos da existência do País desde a chegada de Pedro Álvares Cabral".

sábado, 16 de fevereiro de 2008

A permuta adjetiva: Creeley


Pablo Picasso, 1919


Don’t sign anything

Riding the horse as was my wont,
there was a bunch of cows in a field

The horse
chased

them. I likewise, uneasy
accompanist.

To wit, the Chinese proverb goes:
if you lie in a field

and fall asleep,
you will be found in a field

asleep.

Robert Creeley


Não assine qualquer coisa

Andando a cavalo como de costume,
havia um rebanho de vacas num campo.

O cavalo
perseguiu-

as. Eu também, um inquieto
escorte.

Meia palavra, e o provérbio chinês diz:
se você deita num campo

e adormece,
será encontrado num campo

adormecido.



De como poluição visual só começou a existir quando São Paulo descobriu a pólvora


Fernand Léger, 1919


A VIOLÊNCIA ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM A VÊ
Nosso atestado de meta-província

Em 1997, eu morava em São Paulo. E sentia um mal-estar danado ao passar por uma avenida que seguia após a Marginal Pinheiros, nas cercanias do Campo Belo, no rumo do Aeroporto de Congonhas. Eram painéis ciclópicos, intervalados, que entravam pelos olhos e ecoavam, doíam na cabeça. A impressão que se tinha: se todos os celulares e as turbinas dos aviões, nos imensos painéis, funcionassem ao mesmo tempo, bairros inteiros seriam acordados. Eram ainda mais épicos do que o famoso outdoor do Dr. T. J. Eckleburg, de que nos fala Scott-Fitzgerald no Gatsby: "os olhos do Dr. T. J. Eckleburg são azuis e gigantescos -- suas retinas medem uma jarda de altura".
Por essa mesma época, fiz amizade com Steve Hoffman, um americano boa praça, que estagiava na Escola Paulista de Medicina. Hoffman, num feriado, seguiu para Buenos Aires. Alguns dias depois que retornou, nos encontramos:
---“Que tal Buenos Aires?”, perguntei.
---“Bom, pelo menos eu limpei a vista”, ele disse .
Cinco anos depois, ciceroneando uma família chilena em férias aqui pelo Forte, eles mal podiam crer no que viam, quando passamos, certa tarde abafada, pela Av. Gomes de Matos. De repente, o mormaço ficou ainda mais sólido. De fato, a entropia visual por ali chega a desconcertar até mesmo o fortalezense já meio sedado, viciado, tonto de mal enxergar a própria paisagem.
Belo, belo. E, no entanto, só nos primeiros dias deste 2008, quase um ano depois de São Paulo haver discutido e sancionado a lei que começa a regular a poluição visual, é que os jornais fortalezenses têm destacado a necessidade de se tomar medidas emergenciais por aqui. Tanta defasagem, tamanho retardo, apenas repassam a medida de o quanto somos uma colônia dentro de outra. Uma meta-província.
Tenho tudo que não quero, não tenho nada que quero. Até quando teremos de esperar que os outros varram seu terreiro para ciscar o nosso, minha Bela?

O que sai nos segundos cadernos vale os primeiros leitores?


Timo Sarpaneva, 1951


UMA ENTREVISTA INSOSSA, UMA AUTO-RESENHA, UM HAMLET SONEGADO
O PAÍS PEGA NO TRANCO, DEPOIS DO CARNAVAL
O Brasil começa a funcionar aos poucos depois do carnaval. E, até o motor pegar meio no tranco, há um período de calmaria, que quase confina com a calmaria que supostamente teria motivado o seu descobrimento. Isso talvez explique, em parte, a anodinia dos segundos cadernos deste sábado. Vou tomar como parâmetro o Vida & Arte de hoje, 16.02.08: uma morna entrevista com a insossa Maria Adelaide Amaral; a desastrada resenha de uma nova tradução de Bouvard e Pécuchet; e uma matéria sobre o lançamento do novo livro do teatrólogo Oswald Barroso são os destaques à la carte.
ESCRITOR BRASILEIRO NUNCA SE INSINUA PARA SER MINISSERIADO
[http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/766161.html]
Na abertura da entrevista [“Sobre Afetos e Reencontros”], somos informados que Maria Adelaide Amaral era “simpatizante de esquerda”. Aliás, quem é de direita, neste país em que todos são de esquerda? Procura-se. Ser de direita hoje no Brasil é fazer parte da dissidência, uma vez que a briga maior é para se comprovar que se é mais de esquerda do que o outro. Desse jeito, aqueles caras que sempre foram do contra vão acabar se endireitando. Mas o pior é que o resultado prático de tanta esquerda na inteligência brasileira tem sido, quase sempre, um redondo zero... à esquerda, naturalmente. Mas voltemos à entrevista, ela tem uma razão promocional de ser: o lançamento de uma série televisiva baseada em romance da própria Sra. Amaral. O livro, Aos Meus Amigos, de 1992, pretende ser uma espécie de balanço geracional. Daquela mesma geração chata, que se pensava heróica, e ainda hoje vive a enfatizar que foi torturada e censurada. E, no entanto, a oposição que essa tal geração "de luta" fez ao regime de exceção foi bem mais branda que a da sua equivalente argentina. No romance minisseriado da vez eles se encontram já mais maduros, em 1989, às vésperas da eleição presidencial que guindaria Collor ao poder. De resto, não foi a Sra. Amaral quem pensou em adaptar o romance para minissérie, é claro. Esse tipo de iniciativa nunca parte dos autores, pois os escritores brasileiros são muito blasés e bem de vida para precisar ganhar dinheiro com televisão. Faz parte do show ou do clichê atribuir a um terceiro a idéia da adaptação. A rigor, só existe um mercenário na literatura brasileira: Paulo Coelho. O resto rasga dinheiro. Bom, o tema central do romance da Sra. Amaral e da correspondente minissérie é a amizade. Os protagonistas são inspirados nos amigos da Sra. Amaral. De resto, a Sra. Amaral nos faz uma confissão surpreendente: “os amigos têm sido o esteio da minha vida afetiva e profissional. Devo muito a eles na alegria e na dor, na saúde e na doença”. Ora, que depoimento mais original! Quando se chega a este ponto da entrevista, se você não abrir um bocejo, há algo errado com o seu tédio. Consulte-se. Ainda assim, quem ler rápido quase que pode concluir que a Sra. Amaral optou por casar-se com seus amigos. A chatice, na entrevista, não provem de um mau texto, mas de um assunto que não ajuda em nada. É, parece que até as reuniões de pauta são afetadas pela ressaca do carnaval.
FLAUBERT E PRESSA NÃO COMBINAM
[http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/766167.html]
Com certeza, Flaubert, que é convenientemente identificado como “autor francês”, escreveu Bouvard e Pécuchet para ganhar esta resenha em O Povo [“Manual da Tolice Humana”]. E não para mofar da vontade de erudição-em-pouco-tempo-e-espaço do homem moderno. Inclusive, do jornalista moderno. Bouvard e Pécuchet é a sátira rematada de qualquer ofício que cava às pressas nos veios da tradição. Seus protagonistas têm algo daquele diretor de arte que precisa fazer o anúncio em uma hora e quarenta, e aí lança mão da reprodução de uma pintura que levou meses, anos para ser concluída. E a pintura não é mais que um detalhe na sua arte final. Ou então do jornalista que tem de consultar às pressas a Barsa para poder escrever a resenha de um clássico da literatura francesa. Enfim, para aqueles pseudo-eruditos que têm na Wikipédia sua fonte única, seu livro de cabeceira. Mas, tornando à resenha, logo de início ficamos sabendo que “a história de Bouvard e Pécuchet ficou pronta, mas não escrita totalmente”[sic]. Mais adiante, a resenhista nos informa que “é inegável a sensação de incômodo ao ler este livro de Flaubert”. Por que será? Apesar de incomodada a resenhista, no entanto, é prescritiva, imperativa. Nos fala de um prefácio que deve ser ignorado pelo leitor até que ele conclua a leitura da obra. Ainda que ela não explique as razões para transformar o prefácio em pósfácio. De outro modo, um aspecto crucial quase não é tocado na resenha: o humor abrasivo de Flaubert em Bouvard e Pécuchet. Também não mencionado pela ilustre resenhista é o nome do profissional que teve de trabalhar meses a fio para que ela pudesse escrever a resenha em uma hora: o tradutor. E em nenhum momento se analisa a qualidade da tradução, meio como se tomasse por garantido que o texto lido por ela, resenhista, é o original, em francês. Talvez se houvesse mais de uma hora para a escrita, a história da resenha pudesse ser outra. Mas por enquanto ainda não se inventou uma resenha pré-escrita, do tipo que se pudesse pôr no processador de texto, como num forno microondas. Por enquanto, a tecnologia só permite isto a lazanhas pré-cozidas. O que é uma lástima, pois, caso contrário, quanto tempo seria economizado. E, a exemplo de Bouvard e Pécuchet, talvez a resenha pudesse ser "completada mesmo que não totalmente escrita". É preciso ganhar tempo. Ganhar tempo. Os resenhistas têm razão. O mesmo tempo que tanto Bouvard quanto Pécuchet queriam abreviar com seus manuais, os resenhistas querem abreviar com suas resenhas. Mas se a resenha tivesse sido escrita com mais tempo, nós, leitores de O Povo, quem sabe, também pudéssemos passar sem frases como: “a edição traz ainda os fragmentos para um segundo volume planejando por Flauber e o Dicionário das Idéias Feitas que também iria fazer parte do volume que nunca chegou a ser executado” [sic]. É, Flaubert e pressa não combinam. Ora, foi justo para rir da pressa em adquirir conhecimentos – e que sempre resulta em grotescas superficialidades e asneiras – que Flaubert escreveu Bouvard e Pécuchet. Mas tem gente excessivamente preocupada em resenhar rapidamente o livro de Flaubert e aplicar sobre ele os conceitos do manual da redação. Aliás, manual tem tudo a ver com Bouvard e com Pécuchet, as personagens. Mas nada a ver com Flaubert.
DORMIR, TALVEZ SONHAR
[http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/766165.html]
O novo livro do teatrólogo Oswald Barroso se chama Dormir, Talvez Sonhar. O título refere-se ao solilóquio do Hamlet: “to sleep, perchance to dream”. É o trecho que começa com o célebre “Ser ou não ser” [Ato III, Cena 1]. Em nenhum momento, da matéria [“Sonhar, Talvez Dormir?”], no entanto, se entre nesse mérito. Sequer quando o jornalista investiga o título de Dormir, Talvez Sonhar: "e esse título, Oswald, pode ser entendido como um malicioso convite às novas gerações?” - indaga candidamente o autor da matéria. Não há qualquer menção ao procedimento de citação, ao fragmento de Hamlet escolhida para título por Barroso. Ora, isso surrupia ao leitor algumas possibilidades. No mínimo é uma informação tão importante quanto sonegada. Mas a indagação final do autor da matéria não deixa de depor contra ele próprio. De fato há no título de Oswald Barroso um malicioso convite que parece seguir em imperativo às novas gerações: leiam!
Pois é, eis uma pequena amostra do jornalismo cultural que nos cai nas mãos, madrugada após outra. O mundo anda muito violento e feio lá fora. Porém, ao nos deparararmos com essas calamitosas tentativas de resenha; pautas insossas, ditadas pela TV; e omissões por puro desconhecimento de causa; chega-se à conclusão que até mesmo nas páginas de cultura dos jornais o panorama não é lá muito diverso. Oxalá com o avançar do ano as pautas se tornem menos cinzas. E as idéias menos mesquinhas.

Até a vista!

Nota --- começo, a partir de hoje, a fazer um resumo comentado do que sai publicado nos jornais. Em especial, nos segundos cadernos ou nos suplementos de cultura.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A velha conversa anti-cartesiana entre rosa e cravo: cummings


Alberto Giacometti, O Casal, 1929


may i touch

may i touch said he
how much said she
a lot said he)
why not said she

let's go said he
not too far said she
what's too far said he
where you are said she)

may i stay said he
(which way said she
like this said he
if you kiss said she

may i move said he
it is love said she)
if you're willing said he
(but you're killing said she

but it's life said he
but your wife said she
now said he
ow said she

(tiptop said he
don't stop said she
oh nn said he
go slow said she

(cccome? said he
ummm said she
you're divine!said he
(you are Mine said she

e.e. cummings


vou pegar

vou pegar, disse ele
em que lugar, disse ela
num milhão, disse ele)
por que não, disse ela

vamos lá, disse ele
devagar, disse ela
o que é devagar, disse ele
onde você está, disse ela)

estou a fim, disse ele
(como assim, disse ela
vai encarar, disse ele
se beijar, disse ela

dá pra pôr, disse ele
então é amor, disse ela)
se ‘cê acata, disse ele
(mas ‘cê me mata, disse ela

a vida quer , disse ele
mas, e sua mulher, disse ela
ah, vai, disse ele)
ai, ai disse ela

(tão, tão, disse ele
pára não, disse ela
ai, ui, disse ele)
diminui, disse ela

gozou, disse ele
ou, oooou, disse ela
você é o céu, disse ele
(você é meu, disse ela)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A sabedoria de sancionar a existência passa por acreditar nas possibilidades dela: Lobato


Gerrit Rietveld, 1923


Uma corda de despertador em moto perpétuo
Relendo O Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato

O Pica-Pau Amarelo ocupa um lugar axial na obra de Lobato. É seu livro mais ousado. E boa parte dos avos dessa ousadia vai pela desfaçatez do bem-vindo malabarismo mediante o qual Lobato inscreve o Brasil na tradição do Ocidente. Ou mais, faz esta tradição dobrar-se a certo impulso compósito. Entre outras coisas, o que ele faz é embaralhar as fronteiras entre colonizados e metropolitanos. Entre Europa e América. Entre "primeiro" e "terceiro" mundos - ainda que estes conceitos não existissem em 1939, quando o livro foi escrito.
É claro, que essa empresa não se deu sem astúcia, sem auto-afirmação. Dessas que quase não encontram paralelo na depressão brasileira e geral em que vivemos. A porta-voz mais dileta desse atrevimento é o próprio atrevimento em forma de gente: Emília.
A migração do mundo do faz-de-conta para o sítio de Dona Benta é um golpe de mestre. Num passe de mágica, todo o imaginário dos contos infantis europeus – mitologia grega incluída – se muda para um sítio no interior do Brasil. E dessa improvável aclimação resultam episódios tão atrevidos quanto aquele em que Tia Nastácia se apropria do escudo de Dom Quixote para usá-lo na cozinha como gamela, enchendo-o de lingüiças e salmoura. Ou então, de um outro em que Emília propõe a troca do bodoque de Pedrinho pelo arco e as setas de Cupido.
Mas a coisa não fica aí, já que a ave fênix abriga-se no galinheiro do sítio e o Pequeno Polegar – o primeiro sem-teto da literatura para crianças no Brasil – ocupa ilegalmente um ninho de joão-de-barro. As ilustrações do haitiano André Leblanc para as edições mais antigas são um primor. E qualquer série televisiva que se preze deveria partir delas como sugestão de direção de arte.
Naturalmente O Pica-pau Amarelo concentra uma modalidade de antologia. Nos episódios todos os grandes personagens do universo infantil trocam figuras com crianças brasileiras e a coisa dá samba. Essas crianças são Pedrinho e Narizinho, personagens vívidas, mas a rigor, não muito mais que um aval para que os jovens leitores neles se projetem. Sintam-se presentes aos sucessos. Aliás, a meio livro, um bando deles visita o sítio e brinca de ser seus personagens numa atrevida meta-referencialidade.
E há Dona Benta, que autoriza a coisa toda como uma legisladora jovial e curiosa. Ela é também uma mulher culta, uma leitora ávida o suficiente para autorizar a imaginação dos netos. Mas, ao contrário de Platão na República, Dona Benta escancara as porteiras do sítio para a poesia. Seu interlocutor mais pontual é o Visconde, a própria encarnação da teoria. E por isto mesmo – e um tanto ironicamente – sempre enviado em missões arriscadíssimas. Algo de contornável, pois quando eventualmente o ilustre sabugo sai meio estropiado delas, é sempre possível refazê-lo. Talvez do mesmo modo como uma teoria pode ser revista, emendada. O Visconde e as teorias são feitos da mesma matéria – estofo de sonhos. Lobato era um escritor, mas também um homem prático e um tanto desconfiado dos excessos teóricos: “os sábios são criaturas indecisas, não resolvem nada” – diz, a certa altura, Dona Benta.
Agora, os personagens do sítio que valem mesmo por dias de sol são Emília e Tia Nastácia. Brilhantes ambas.
Tia Nastácia, negra e analfabeta, na obra de Lobato concentra uma grandeza à toda prova. É de suas mãos que saem tanto a teoria – personificada pelo Visconde – quanto essa astúcia em forma de gente que é Emília. E, ainda que tratem a cozinheira com certa condescendência, ambos não passam de criaturas de Nastácia, o que não é pouco. E, notem, não apenas de sua imaginação, mas de suas habilidades de artesã. À certa altura, no casamento de uma princesa, Lobato a situa “nas cozinhas imperiais dirigindo o assamento de mil e trinta e sete faisões”. E Nastácia não se faz de rogada: “Estou gostando muito desse palácio. Que cozinha, Sinhá. Parece uma sala de visitas. Tudo mármore e pratas alumiando. E eu aqui não faço nada – só dou ordens. Tenho mais de cem ajudantes...” “Tudo mármore e pratas alumiando”, como fosse um carro alegórico rasgando a Sapucaí, sob a direção da carnavalesca Nastácia.
Como todo bom clássico, O Pica-Pau Amarelo resguarda sutilezas que só podem ser avaliadas muitos anos e releituras depois. Em certo passo, por exemplo, Emília tece uma reserva ao marido de Branca de Neve, recém afogado na grande cheia do Mar dos Piratas. Critica-lhe o fato de haver sido um príncipe anônimo e sem luz própria. Ou, ainda mais grave, de em vida não pagar a mínima atenção à princesa ao gastar todo seu tempo em jogos e caçadas: “Aquele príncipe gostava mais dos veados e faisões do que de você. Além disso era um príncipe sem importância, dos que não tem história”.
Emília é o dínamo do sítio. Ela é buliçosa. O que toca, vira vida. Como se quisesse emprestar vida à matéria inanimada de que ela própria é feita: pano, macela e retrós. Sua força de afirmação pode contagiar a criança menos segura de si. E, claro, ela crê, mais do que ninguém, na possibilidade de seu próprio mundo existir. Num momento de impasse, por exemplo, Narizinho põe sob suspeita a longevidade da corda do despertador que aloja-se nas entranhas do crocodilo que persegue o Capitão Gancho:
“--Está aí uma coisa que me espanta – disse Narizinho. A corda desse despertador já devia ter acabado a muito tempo.”
A resposta de Emília resume o livro:
“--Devia se fosse no mundo normal. (...) Aqui, no mundo fabuloso nada acaba – nem corda de despertador!”

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Porque o Tejo não é o rio que corre pela: dois fluxos sobre a minha aldeia


Jacob August Riis ,1888

ARQUITETURA INTUITIVA DA ALDEOTA


Na década de 70, qualquer sinal de uma região mais comercial se extinguia à altura da Rua Barão de Aracati. Havia, na esquina com a Av. Heráclito Graça, um terreno baldio de um lado, com alguns eucaliptos, e do outro uma revendedora da Volkswagen - que lá está até hoje. Essa revendedora demarcava o último sinal de comércio mais amplo à leste da cidade. O que se seguia era um bairro de casas. Essas casas eram ajardinadas. E havia um grande cuidado com esses jardins. E se cuidar de jardins é um índice de bairro residencial, a Aldeota dessa época era essencialmente para morar.

Algumas árvores eram muitas populares, então. Castanholas, oitis, fícus, mangueiras, algum pau-brasil e, posteriormente, jambos e acácias emolduravam as ruas. Nos jardins, além de diversas espécies de gramíneas - algumas delas não mais em uso - era comum se topar com espirradeiras, coqueirinhos, crótons e roseiras. O destaque eram papoulas de espécimes diversas, quase sempre em renques calcados contra os muros - que ainda eram baixos e, em geral, chapiscados. Mas havia também árvores mais exóticas, como pinheiros - muito cultivados durante certo tempo e um tanto na contramão de sua aclimação.

Pela Av. Santos Dummont seguiam as casas mais aristocráticas. E também algumas das mais antigas. Elas ficavam entre a Praça do Cristo Rei e a Avenida Barão de Studart. Algumas ainda com um certo traço de rústica ruralidade. Essas possuíam um só pavimento e aqueles alpendres laterais, suspensos por vigorosas colunas arredondadas, de alvenaria. Mas também, quando mais achalezadas, os alpendres findavam em uma treliça de madeira com algum arabesco simples, e as colunas eram esguias - fossem de madeira ou metal. E transmitiam uma certa atmosfera ferroviária, vagamente européia. O certo é que pareciam mais com casas de chácara do que de cidade. E são elas que estão na própria raiz do bairro, que antigamente não passava de um ajuntamento de chácaras, quintas e sítios para o fim-de-semana. Um conceito, aliás, bastante ibérico. E como tudo que é ibérico, quase varrido do mapa na Fortaleza de hoje em dia.

Mais recentes que essas, eram as casas em estilo mediterrâneo. Geralmente assobradadas e transmitindo uma certa sensação de solidez e peso. Os jardins eram amplos, guarnecidos por sebes, e a varanda da frente se reproduzia acima e nas laterais. Essas varandas eram suportadas por colunas maciças, e que deixavam vãos de consideráveis tamanhos entre si - embora limitados por pesadas sobre-paredes. Alguns elementos europeus se faziam presentes, como os olhos-de-boi. E havia uma certa compulsão para formas rotundas. Todas elas transmitiam peso e alguma dose de calculado terror.

A geração seguinte eram casas de feição mais americana. Talvez as primeiras riscadas pelos arquitetos que se diplomaram na escola local. As varandas quase desapareceram. Legaram espaço para uma coberta lateral onde se podia pôr o carro. Um espaço que, então, se conhecia como descansa-carro, geralmente antecipado por pérgolas. Mas a garagem era ainda avulsa. Os telhados armavam-se em águas simples e ângulos pronunciados, com destaque para os beirais largos e acolhedores. As janelas ocupavam vasta área. E não eram incomuns imensos janelões correndo sobre trilhos.

Depois dessas, e um tanto no influxo de Brasília, sobrevieram casas modernistas. Algumas belas. Outras excessivamente moldadas em concreto para serem belas. Brutalistas em excesso, num clima que reclama mais vazamento de varandas que bloqueios em cimento armado.

O comércio no meio de tantas casas, quando muito, se limitava a uma bodega na esquina. Os termos ainda eram esses: bodega e mercearia. Há uma secreta integridade nesses nomes. Eles são muito distantes de shopping ou mall. Bodega, em espanhol, quer dizer mais "adega" que qualquer outra coisa. Mercearia também não fica por menos, provém direto do latim merce = mercadoria (de onde mercadejar, mercantil, mercado etc.). Essa proximidade entre palavra, radicalidade histórica e espaços não é desprezível.

Mas havia também um tempo lento e católico naquela Aldeota. Ela era menos leiga e esse tempo se amplificava nos domingos e dias santos. A própria luz que descia sobre os gramados parecia incendiar o dia com mais lentidão. Longos domingos em que se respirava um sabá.

O dia mais morto na Aldeota - em Fortaleza, suponho - era Sexta-feira da Paixão. O mundo parava. Ainda mais que nos domingos. Não se ouvia música. Não se ouviam passos nas ruas. Não havia qualquer expansão de gestos. Hoje em dia, não se tem noção do que representava um luto fechado como o daquelas sextas-feiras. Estamos excessivamente escolados em nos prover 24 horas ao dia já faz algum tempo. E esses certos dias da rememoração pulverizaram-se na uniformidade shopping-center do dia-a-dia presente.

Não tenho nenhuma saudade daquele tempo em si, ou do bairro como se organizava então. O menor traço de recolheita. Certamente era mais tranqüilo do que hoje. Tenho, sim, saudades do que não aconteceu para melhor a partir daquele tempo e daquele espaço. Não acreditando em progresso e sendo bastante simpático a coisas que nos ensinam pela permanência, é claro que penso que a verticalização não foi uma boa saída para a Aldeota, assim como a excessiva mercantilização do bairro. E creio que o futuro poderia ter sido mais generoso com a Aldeota ou com Fortaleza em geral.

Mas depois que, no início dos 80, se desmatou uma perna de mangue e por cima se ergueu um shopping de ares monumentais, a melhor ponte para um futuro digno de Fortaleza foi desmontada. Claro que isso se reveste de uma estratégia política. Ou mesmo geopolítica, se quiserem. Mas, nesse ritmo, apenas se atolou na lama mais infecta a possibilidade de dotar de dignidade a memória da própria cidade. O Iguatemi apenas amesquinhou o Centro, a Aldeota, Fátima, e bairros mais antigos, como o Jacarecanga ou o Benfica.

Nada de tão singular. As elites brasileiras reproduziram a mesma estupidez em todas as outras capitais do país. Da Barra, no Rio, à Beira Mar Norte, em Florianópolis. É a mesma necessidade de se alienar da memória - como se de um esqueleto dentro do armário. Quando se cometem crimes, não deixar vestígios é a única possibilidade de prosseguir cometendo-os. Essa é a lógica que desfigura nossas cidades quando elas estão prestes a esboçar um sorriso.

Fortaleza não é exceção. Então, as saudades vão não para o que a Aldeota foi. Mas para o que Fortaleza não é.



Ruas da Aldeota

perfeitas de carro
essas ruas não são

nada, a não ser o
branco do olho

mas se vistas
a pé, à sombra

espessa de oitis
o olho a seguir

na luminosa tarde
as velhas fachadas

as formas da história
uma senha de noite

cai sobre as palavras



Nota – o artigo “Arquitetura Intuitiva da Aldeota” foi inicialmente publicado em O Povo [31/12/2002] e na revista de arquitetura Vivercidades (Rio)[17/01/2003]. O poema “Ruas da Aldeota” [1999] foi publicado em revistas diversas, e também no Caderno: uma literatura sem livros [2006], editado por Eduardo Jorge Oliveira para o Núcleo de Literatura da Funcet. Em geral, há a tendência de se ler o “perfeitas” no 1º verso do poema como adjetivo. Nada contra, mas eu, pessoalmente, leio como flexão do verbo “perfazer”. “[Quando] se perfaz de carro as ruas, elas não são nada, a não ser o branco do olho, etc”. Há uma tendência – tão ancestral quanto a própria poesia – de se não dirimir ambigüidades. As literaturas contemporâneas acham o máximo isso de ambigüidades. Mas eu não sou contemporâneo. E posso ser muito mal-humorado. E, por vezes, é importante que, ao menos, o leitor esteja a par das ambigüidades – ou seja, de outras possibilidades de ler um poema.