quarta-feira, 30 de abril de 2008

De um romance com título tirado do Eclesiastes


Pablo Picasso, 1958




Hemingway na ratoeira
O mar não está para Hemingway. Um dos mais brilhantes prosadores do século XX se vê mais e mais amesquinhado nesses inícios de XXI. E justo por ter cultivado em seus livros uma virtude formidável: a sinceridade. Uma sinceridade seca que, por exemplo, dá bem a medida de como eram tratados judeus e mulheres naqueles tempos. Uma sinceridade que não recua ante a descrição dos brutais esportes que fascinavam o imaginário masculino de então. Jogos tribais e sanguinários: touradas, boxe, caçadas, pescarias de alto mar e risco.
Por conta dos excessos ralos do politicamente correto, a prosa limpa e desadornada de Hemingway vai cada vez mais passando do proscênio para o fundo do palco em prol de escritores medíocres, relatos étnicos de quinta categoria ou obscuras autoras que apregoam um feminismo estereotipado, ressentido, de extração pouco luminosa.
É verdade que Hemingway tinha um ego dos diabos. E em vida fez de tudo para reforçar esse estereótipo. Era o grandalhão intratável. O grande macho permanentemente bêbado – mas sem dar bandeira. O esportista de muitos riscos, cicatrizes e caçadas sem fim. O guerreiro que esteve em vários fronts. O amigo dileto de Fidel Castro e de tantos outros toureiros de primeiríssima linhagem.
Um tanto por conta disso, Hemingway é cada vez menos lido nos departamentos de literatura ao redor do planeta. Ele não é um escritor que concede muito às ondas do momento. Ou seja, à fração mais histérica desse politicamente correto. Iria sacar um sorriso irônico diante dessa noção farisaica que quer converter a palavra em realidade ao invés do contrário. Não há nada de suave que não seja suave em sua prosa sincera. E, no entanto, ele não suaviza nada.
De outro modo, apesar de se publicar imensamente mais e em maior tiragem do que quando Hemingway começou a ser publicado, raro é hoje em dia encontrar um depoimento tão visceral e apaixonado quanto o de O sol também se levanta (1926). Tampouco um romance em que a noção de cinema esteja tão presente na escrita que a própria adaptação do mesmo pelos grandes estúdios na década de 50 não passe de uma rala concessão à bilheteria, ao entretenimento fácil e à pressa. E não é preciso ir à fiesta de Pamplona para perceber que se há menos espaço para Hemingway no presente, há algo de errado com o presente.
Qualquer era, como a nossa, que entende fazer justiça com palavras deve ser vista com suspeição. A literatura não é uma engrenagem rasa processando uma causa. Seja ela justa ou não, de esquerda ou de direita, feminina ou masculina, terceiro-mundista ou metropolitana. A literatura se ocupa com outro reino e com outro exílio. E, claro, só parcialmente pode ser vista como retrato de uma época, porque também a transcende. E não é através da literatura que se vai reparar a sombra de um mundo injusto. Quando muito, ela pode intuir alguns sintomas dessa injustiça. Murmurar um protesto tímido. Indigitar essas injustiças, talvez. Mas não repará-las.
Quando Hemingway em O sol também se levanta descreve um bando de intelectuais bêbados seguindo para a Espanha em busca de um norte está falando de cada um de nós em qualquer parte do planeta. Intelectuais ou não. Da nossa angústia e do que nos é ainda dado por sonho.
Somos nós que caminhamos pela calçada parisiense onde ao lado um homem segue gravando, suavemente, sobre um molde vazado a palavra Cinzano. Somos nós que desejamos Lady Ashley e antipatizamos Robert Cohn. Somos nós que sentamos às margens do Irati, no entrecho de uma pescaria, para um gole de vinho. Ou então, restamos ao fim da tarde numa mesa do Café Select em Paris para, de forma quase sempre oblíqua, remoer a tragédia que foi a Primeira Guerra em conversas regadas a bourbon, vinho, coquetéis diversos, absinto e metáforas.
Se por um lado sua prosa límpida nos faz enxergar – e participar enxergando d’ – os sucessos narrados no livro, também conversamos por meio dessa habilidade com que Hemingway monta seus diálogos. E é quase cirúrgica a precisão com que o inglês falado é reproduzido neles. Eles entretêm insinuações suficientes para verter em palavras – sempre entrecortadas – a própria alma dos conversantes. Eles testemunham um estado de espírito.
Muito se disse de seu estilo. Da prosa contida emprestada ao tom jornalístico. Da concisão telegráfica de seus parágrafos. Mas Hemingway é muito mais que essa concisão psicológica somada a pouco caso por mera ostentação intelectual. E, claro, se tivesse vivido o suficiente para testemunhar como se escreve hoje nos jornais, teria torcido o nariz.
Quando se pensa na excepcional visualidade onipresente em O sol também se levanta, bem se pode suspeitar que Hemingway foi um leitor aplicado dos poetas chineses da dinastia T’ang ou dos haicaístas japoneses contemporâneos de Bashô. O que, aliás, não é improvável já que a cultura do oriente extremo estava em moda entre artistas plásticos ou literatos do convívio de Hemingway – como Ezra Pound, Gertrud Stein, Picasso, Gris e Braque.
De fato, Hemingway os conhecia. Embora, em seu depoimento autobiográfico sobre os anos parisienses ele não mencione a arte oriental. Aliás, Hemingway entende a posição do escritor como muito avessa à do intelectual ou à do scholar, embora fosse extremamente bem informado e não recriminasse aqueles seus pares que também se mantinham próximos ao universo acadêmico.
De resto, em sua famosa entrevista ao Paris Review, Hemingway cita ao lado de uma extensa lista de escritores também pintores entre seus “mestres”. Nomes como Tintoretto, Bosch, Brueghel, Goya, Giotto, Cézanne, Van Gogh, e Gauguin. Para, então, arrematar a questão dizendo que aprendia “com pintores tanta coisa sobre escrever quanto com escritores”.
Mas há investida nessa visualidade também o extremado amor que ele devota à cidade de Paris e, especialmente, aos campos, rios e montanhas do País Basco. A paisagem basca filtrada pelos olhos de Hemingway é límpida e clara como uma corrente de água recém caída da chuva a fluir sobre aluvião. Ao traduzir essa paisagem em palavras, Hemingway ao modo dos haicaístas japoneses, ao modo da tradição pastoral da literatura romântica, ao modo de Turgueniev, compõem também uma paisagem interior. E esse painel é indissociável de sua admiração pela cultura e pelos ritos ibéricos.
O barroquismo católico, com suas igrejas sombrias, suas plazas amplas, limadas de sol, emolduradas por arcadas, e por onde desfilavam rituais tão díspares – mas complementares – como as procissões e o carnaval fascinavam sua mente anglo-saxã. Talvez como que lhe resgatassem uma espécie de sinceridade que ele não entrevia em seu próprio meio. E a forma exigente com que ele busca essa sinceridade para si é comovente. Ao longo da narrativa de O sol também se levanta se vai formando um largo lastro de empatia, um tanto atávico, entre Hemingway e a Espanha. Para todos os efeitos, essa natureza ibérica, e esses rituais católicos como que parecem assomar, aos olhos dele, mais adequados para compor um painel do trágico, das cinzas, das cicatrizes e pesares que há numa existência – qualquer seja ela – tanto quanto de suas alegrias, réstias de luz, folia e júbilo. Em duas palavras e uma tela de Brueghel: carnaval e quaresma. E há um fascínio pelo barroco nesse homem de temperamento seco e ascendência nórdica.
N’O sol também se levanta crucial para os personagens é o fato de terem compartido uma experiência intraduzível: a guerra. Assim, tantos quantos passaram por essa experiência limite conseguem se entender. Sabem seu nome de guerra, como se diz. Compartem um código. Tantos quantos estiveram no limiar da morte. Pois até mesmo os que só viveram essa experiência obliquamente, longe do front, como Brett Ashley – que tratou dos feridos num hospital londrino –; ou Romero, o jovem toureiro – que trava uma guerra cotidiana e cerrada com a morte, nas corridas de touros – sabem aferir o peso de cada uma das palavras e gestos que articulam ao longo de uma conversa. Compartem-na. Compartem essa experiência tácita onde há muito de estóico mas também de grandeza e heroísmo.
Não a grandeza épica dos antigos. Não como guerreiros na Ilíada. Ainda épicos, sim, mas justamente pelo grampo contrário. Pela cotidianeidade minúscula, oca e a quase total ausência de grandeza em suas vidas. Épicos mas ao avesso. Anti-épicos. E por justamente aferirem, como diz Joyce, o peso dessas grandes abstrações, dessas “grandes palavras que nos tornam tão infelizes”: amor, paz, esperança, honra, heroísmo. E, claro, todo esse ambiente é temperado por um determinismo amargo, um tanto cético, do tipo que se pode surpreender nas páginas do Eclesiastes, o livro bíblico do qual Hemingway sacou o título do romance.
Mas há também espaço para se fruir a paisagem como um recado divino: “adiante a estrada sortia da floresta e seguia por sobre a ombreira da crista dos montes. As colinas acima quase não eram arborizadas, e havia vastos campos de tojo, sombrios sob árvores e ressaltavam cascalhos, que demarcavam o curso do Irati”. Ou ainda: “Era uma linda manhã, havia cirros muito altos sobre as montanhas. Chovera leve à noite, estava fresco e ameno no platô, e a vista maravilhava. Todos nos sentíamos bem, e estávamos contentes”.
Provavelmente todos podiam sentir o fluxo epifânico dessa natureza. Mas ainda aqui, a exceção é Robert Cohn. Ele é o que não passou pela guerra, e logo aquele que está fadado a não entender o código compartido pelos demais. Para usar a metáfora do próprio livro: ele é um boi entre touros. Não tendo vivido seu inferno particular, como saber das belezas do mundo? E há aquele famoso trecho em que os exércitos aqueus se preparam para o assalto à Tróia no Canto 8 da Ilíada para se pôr em paralelo. A cena se dá num amanhecer, e as fogueiras vão perdendo seu brilho. Então, a natureza surge transfigurada justo por que vista pela última vez. Há algo de precariamente eterno no olhar daqueles homens prestes a serem dizimados em combate. A prosa corrida de O sol também se levanta faz parte da tradição desse olhar. Essa melhor obra de Hemingway trata-se de um daqueles raros livros em que a Ilíada reencontra, no correr do tempo, sua edição revista e comentada. Guardadas as proporções, pode lembrar, na prosa, um tanto do que o poeta Eugênio de Andrade diz a propósito de Os Lusíadas: “contém alguns daqueles raros versos que participam da respiração do mundo”.





Nota - ao contrário da maioria dos textos em prosa postados por aqui, este é inédito. Embora haja sido escrito em 2001.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cultivados grãos de um sadismo datado


Umberto Boccioni, Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, 1912



Teoria do garçom fortalezense

Nos últimos tempos noções como qualidade total ou serviço personalizado ameaçam tornar cada local do planeta muito mais previsível e sensabor. Contra essas assepsias, noções holísticas, contra esse politicamente correto de fachada se insurge o garçom fortalezense. Trata-se de uma categoria profissional de fôlego e imaginação. Sua escola superior, seu MIT de beira de praia foi o antigo Estoril. E seu santo padroeiro, o famoso Baleia.
Em sua fase áurea, de meados dos anos 70 até início dos 90, o Estoril era freqüentado por estudantes, professores, artistas e profissionais liberais – ser de esquerda era um lenitivo e uma senha religiosa durante os anos de ditadura, mesmo que se não tivesse argumentos.
O ambiente era sombrio e difuso. Sórdido para todos os efeitos. O balcão, sebento, as paredes mal rebocadas e só parcialmente caiadas. As garrafas de bebida, um tanto avulsas e empoeiradas, se equilibravam sobre velhas prateleiras de bodega do interior, repintadas de um verde aguado – com densas teias de aranha que demarcavam anos sem faxina. Os refrigeradores deviam ser ligados apenas umas poucas horas por dia, uma vez que a cerveja estava invariavelmente quente.
Mas nada, nesse paraíso masoquista, rivalizava com a maneira ríspida com que os garçons atendiam. Ou será mais coerente dizer desatendiam? Agiam com desfaçatez e calculado cinismo. Os garçons do Estoril inventaram Lacan sem terem lido o Seminário.
O velho cassino dos americanos nos idos da guerra andava bem aviltado aí pelos 80. E esse desatendimento era o algo mais, a pedra de toque, o magnetismo distinto que o bar podia oferecer ao espírito masoquista da época. Superava mesmo um galinheiro anexo. Um que em noites de verão e vento solto emitia miasmas que vazavam todo o ambiente. E é de se desconfiar que esse mau humor crônico – vindo de um povo tão solícito e hospitaleiro quanto o cearense – só pode ter sido aprendido pelos garçons com os próprios fregueses. E lapidado posteriormente. Com cálculo e pose. Somos bons nisso.
Em pratos limpos e seguindo com nossa tese: de início os garçons eram extremamente solícitos. Entre os melhores de Fortaleza. Prestativos como parteiras. E olha que a escola de garçoneria cearense não é das mais fracas. Mas sua solicitude em meio à fossa geral – política ou amorosa – começou a irritar os fregueses. Não estava certo. Afinal, o país desmoronava, companheiros eram torturados em porões, os Estados Unidos viviam ensaiando uma nova Baía dos Porcos, o irmão do Henfil ainda amargava o exílio, e, como se não bastasse, certa fulana de tal ainda continuava dando para aquele cara da facção oposta... O mundo estava caído, como dizia Maysa. Agora, não bastasse tudo isso, e esses garçons do Estoril ainda queriam tratar-nos com régia presteza? Com calculada polidez? Como se fôssemos executivos de multinacional? Qual o quê. Havia algo fora dos gonzos ali.
Aos poucos, percebendo a necessidade de sofrer dos fregueses – e que isso tanto os divertia – os garçons resolveram ousar. E começaram a maltratá-los. Seu behaviorismo iniciou-se no simples servir cerveja quente. Ficaram apreensivos. Mas foi um sucesso de soltar fogos.
Depois, quando vieram as trocas de pedidos, as demoras penelopianas, o anúncio de que o estoque da bebida acabara, o excesso de água ou açúcar na caipirinha, a falta de troco três horas da madrugada, a presença só de cigarros racha-peito em estoque – muita vez só vendidos a retalho, inimaginável sofisticação – o Estoril atingiu seu auge. E todos eram felizes. Garçons e habitués. Até as gorjetas encorparam.
Essa escola foi tão forte que seguiu, inercialmente, até os bares de hoje. E deixou, em maior ou menor grau, traços indeléveis nos garçons do Bebedouro, do Buchicho e até da Zug, do Café Pagliucca, do Boteco, da Padaria, de tantos outros.
Nesse intervalo, houve duas escolas intermediárias de alguma relevância: o Cais Bar de meados dos oitenta até meio da década seguinte. E aquele Café da Praia de até oito anos atrás, onde pontificavam o Vandê e o Assis. Para não falar do mitológico e eterno Jairo, entre tantos outros. Todos a propagar as lições primevas, cetáceas, do velho Estoril.
É certo, um cronista vive de boutades. E há várias aqui presentes. Digo isto porque, já na fase outonal do Estoril, certo sujeito sentou lá, noite alta, bastante achacado. Foi, quem sabe, a única ocasião em que teve pensamentos realmente sombrios diante da vida. Havia um imenso mar e breu à sua frente. E ele pensou em se jogar e sair nadando até não encontrar a África. Isto devia estar escrito em seu semblante, pois o garçom de plantão, mandou suspender-lhe a bebida e chamar o táxi. Na hora do pega pra capar, quando não tinha café nem leite na jogada, quando não tinha jeito, eles bem que sabiam.
Até hoje, essa pulsão para atender com certo descaso e calculada rispidez bem que diverte e tem lá seu quê de folclórico. Incorporou-se à noite e aos modos de Fortaleza. E não há nada de tão errado se se mantivesse em alusão. Só em alusão. Discretamente.
Como um trunfo da memória coletiva.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Quando a paisagem, como prece, tem algo de alga e flutua entre os sentidos: engancha, vai embora


Chico Albuquerque, c. 1945



De uma ida à Taíba


Este final de semana passei na Taíba.
Fui sozinho.
Toquei bastante violão. Cozinhei. Preparei mariscos ao molho de limão e alho, macarrão, arroz com pimentão, camarões. Caminhei pelas dunas e na várzea do Rio Siupé. Tomei vinho branco e fumei muitos cigarros. De noite, desliguei todas as luzes da casa e vi o rastro transparente da Via-Láctea. Vi e ouvi aves diversas: garças, sabiás-brancas, bem-te-vis, gaviões do mangue, lavandeiras. O rio, que eu vira nédio e fluente por volta da Páscoa, mal arrastava-se emagrecido até o mar. Mas é bom caminhar pelas várzeas ainda limosas e macias, com vestígio de água muita, em meses passados, e a grama que espeta a palma dos pés e faz a festa dos jumentos da região. Grandes bancos de areia, em certos trechos, quase relegam o curso do rio a um risco de lápis. Em geral, tudo estava mais sem água e graça que na Páscoa. A vegetação densa da margem oposta, agora, ressequida, antecipada por aquelas rochas de contornos denteados e cores pálidas, orgânicas, de região de rio salobre, de cenário de filme sci-fiction. A vegetação sobre as dunas também estava mirrada ou morta. Minada pela luz em chapa desse sol de novembro. Guardo um apreço especial por essa região de foz de rio – que conheci exuberante, limpa por água de chuva, bela como uma pré-manhã durante um abril chuvoso.
Fui uma só vez ao povoado. Conheço pouca gente lá. Mais pela assiduidade escassa e pela timidez que por desinteresse. Havia gente na casa de Gentil Barreira. Mas não creio que fossem Patrícia e ele. Se fossem, eu teria parado para um olá. Segui pedalando. A casa deles é próxima à Igreja. Uma igreja festiva, bem popular e católica. Há também uma frágil capela pras bandas lá de casa. Recém-construída. Tão pequena e desamparada. Ainda nem terminaram de caiar-lhe as paredes. E talvez as corujas não tenham sequer dado com o pequeno campanário.
Gosto de ambas. Me servem uma idéia de fragilidade forte. E se contrastam. A do povoado, tão enfeitada, parece um bolo-de-noiva, uma alegoria de escola de samba, um adereço de reisado. Mas mantendo sua dignidade. Pequena e ameaçada como um folguedo popular. Foi construída de costas para o mar, mirando a rua longa que se estende da Enseada até a praça. E possui muitos frisos repintados num azul-ultramar e num amarelo ardente, abaixo das duas torres. Como se suas cores retiradas de uma tela de Veermer. O povoado estava deserto. Havia muito pouca gente de Fortaleza. E os próprios taibanos optaram pela reclusão. Era domingo três da tarde. Quase ninguém nas ruas. Quase ninguém ao sol. Quase ninguém à sombra, tragando a última cachaça antes da semana. Bateu uma vontade de conversar. Mas não por telefone. Não sem enxergar as pausas. Conversar noutra acepção. Como antes. Com olhos, gestos. Com uma procura. Precisão de gente. Apressei o ritmo da bicicleta. Rapidamente refiz a trouxa, joguei no porta-malas, e retornei a Fortaleza. Cheguei no fim da tarde, dormi esplendidamente.
E ainda achei um tempo para sentar, e lhe escrever isto.
A você, que agora vejo.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Por uma questão de excesso de sol


Joris Ivens, Regen (Chuva), 1929



Bonito de Chuva

O dia está bonito de chuva. Bonito de chuva. Nós vivemos na capital do povo que usa esta expressão – e secretamente tenho até receio que, um dia, a percamos, nos meandros da internet. Fortaleza fica linda debaixo de chuva: as pequenas correntes que se formam nas coxias; as biqueiras; o verde mais viçoso dos oitizeiros, mangueiras, pés de jambo; o rumor mais intenso das rodas dos carros no asfalto úmido; as ruas amanhecendo lavadas, ainda mais renovadas que nos dias de sol; e o desolamento dos domingos e feriados, quando todos parecem voltar-se um pouco mais para dentro de si mesmos, como se, de repente, nos tornássemos mais serranos, mais mineiros.
O cearense, por uma questão de excesso de sol, de vida ao ar livre, precisa de sua estação de chuvas. E não só para fins de agricultura. Mas para – em pleno verão no hemisfério sul – chamá-la de inverno, trancar-se em casa e desfrutar de uma sensação de aconchego próxima à do inverno de fato dos climas temperados.
E, então, meio-março corre a mística de S. José e uma mancheia de outras crendices, fórmulas de previsão de inverno. Digo que acredito nelas mais do que na internet. E mesmo me recordo voltando de uma viagem para Jericoacoara em 1984.
O tempo corria chuvoso, nós tínhamos que pernoitar em Gijoca para tomar o ônibus na manhã, e nos arranjamos em redes armadas em um alpendre de casa de farinha. Choveu noite inteira. Era aconchegante sentir que estávamos ali, protegidos da chuva e tão pertos dela. Como se fôssemos velhos conhecidos. E, se ela encorpava, leves respingos chegavam até nós. Mas melhor mesmo era adormecer ao ritmozinho de água martelando as telhas, sem mediação de forro.
De manhã bem cedo, saí para caminhar, e dois agricultores, muito brancos – como é comum naquela região – assuntavam próximos da cerca de um roçado de milho:
--Terreno tá moiado.
--É, tá moiado.
Era Quarta-feira de Cinzas, e esse ‘moiado’ da forma como só eles pronunciariam, me ocorre ainda hoje. E me parece o adjetivo mais úmido da fala brasileira. Nos seus rostos, brancos e vincados, podia-se adivinhar uma secreta alegria. Um ânimo novo, que ia tão bem com aquela manhã onde tudo era bonito de chuva.
É pena que a chuva cause tão grandes percalços a muitos desses agricultores, que foram tangidos de suas terras para a humilhação das favelas fortalezenses. Pois chega a ser um crime que algo tão belo quanto essa chuva macia possa significar destruição, dor e vexame. E é por isso que os agricultores precisam de terras: para que a benção das chuvas, renovando-as, possa prenunciar, já no dia de S. José , o começo da ceia de Natal.
Então o ano avança, deixando para trás o inverno. Em junho é mais ameno, por toda parte, e nas serras faz frio de vera. Agosto, sopra uma brisa aprazível sobre Fortaleza. Setembro tem as chuvas do caju. Dezembro é para caminhar sob toldos. Um calor insuportável que segue janeiro adentro. E, assim, o ano passa, com sutis possibilidades de distinguir estações. Tudo é gradação desse verão imenso em que vivemos. E o ano se desdobra até um próximo, com sorte – e longe de El Niño – para ser bonito de chuva outra vez.


Nota -- Crônica publicada no extinto suplemento literário Sábado, O Povo, 21/09/1996. Republiquei-a porque esta semana Fortaleza passou vários dias com céu encoberto. Choveu copiosamente. E a cidade fica, de fato, outra quando isso acontece. E não só pelos transtornos causados por eventuais cheias e alagamentos.


terça-feira, 1 de abril de 2008

Sozinho com a cidade: passar pelos lugares é ler história inscrita no espaço


Frank Lloyd Wright, 1906



Conversar com casas

Há uma sorte de conversa íntima que você só entretece com uma cidade. E me lembro de caminhar por Fortaleza entretecendo essa conversa horas a fio, um dia depois do outro.
Minha própria noção de Fortaleza é muito limitada. E ela se faz do Centro para leste, na direção do eixo conformado pelas principais ruas e avenidas que cortam a Aldeota Velha – como dizem, em definição perfeita, alguns office-boys.
Foi mais ou menos nesse espaço que vai da Praça do Ferreira à Rua Monsenhor Bruno – e da Antônio Sales para o mar – que mais me movi nos anos em que morei na cidade. E, aqui, sim, conheço mais ou menos de cor toda seqüência de ruas e o que há de mais interessante para ver nelas. E minha geografia se estende, com pequena expansão para os bairros do Benfica, Pici, as Praias de Iracema e do Futuro. Mas também aos novos bairros do Leste – que são, no entanto e de todo, os menos interessantes, pelo menos para mim, à exceção da Cidade dos Funcionários.
Alguém já disse que os locais, as casas, as ruas, os edifícios, as árvores, as esquinas, devolvem a atenção de um olhar. Se sentem em próprio estado de diálogo, de conversa, com o caminhante que lhes lança despretensiosamente os olhos. E é assim, exatamente, que costumo a caminhar – ou mesmo pedalar – por Fortaleza. Não só como exercício físico. Mas como exercício cívico. Tentando fisgar, em meio a prédios e casas, a história dessa cidade quase à prova de história.
Algumas velhas casas da região mais antiga da Aldeota, conheço como ninguém. Se acrescentaram um novo andar em improviso. Se retiraram do muro a graciosidade das colunatas antigas. Se revestiram de ladrilhos a fachada, como se fosse um lavabo – onde antes havia um discreto chapisco cinza. Se desfiguraram de vez a forte eloquência, de sobriedade e calma, que as linhas de uma velha fachada nos repassam. Se aterraram um canteiro onde havia grama e espirradeiras. Tudo isso posso perceber de prima. Pois essas casas parecem reclamar, gemer quando qualquer dessas contrafações é cometida contra sua bela integridade de testemunho. Seu poder de evocação, quase epifânico, é o mesmo de certas velhas canções. Ou quase o mesmo de uns poucos perfumes raros, e que nos datam o tempo com digital precisão interior.
Conheço de certas ruas, cada casa, um tanto como se elas, e não seus donos, fossem os vizinhos. E me exaspera um bocado saber que estão construindo um segundo pavimento improvisado sobre aquela marquise. Ou o que é pior, a fachada será maquilada com lambris para a instalação de um consultório, um escritório de engenharia, uma locadora de vídeos, um salão de beleza, um centro de fisicultura. Por que a necessidade desses estúpidos lambris?
Porém, ao mesmo tempo, alguns dos sítios mais impressionantes são casas demolidas. Digo melhor, parcialmente demolidas, justo na etapa em que elas ainda resguardam o assoalho e um certo vestígio de divisão, do que um dia foram paredes. Espécie de maquetes vazadas, plantas baixas ao vivo e literalmente. Espectros do que foram nos muitos anos em que habitadas por duas ou três gerações. Fortaleza não suporta mais que esse lapso.
A virtual ausência de planejamento urbano aliada à ganância e ao poder manipulador das grandes construtoras degradaram a cidade ao extremo nos últimos vinte e poucos anos. E, se nesses mesmos vinte e poucos anos, se houvesse preservado a melhor parte das belas residências da Aldeota Velha e do Bairro de Fátima teríamos simplesmente uma razão a mais de auto-estima.
Se pode até entender que muitos fatores entraram em conjunção para provocar esse desastre urbano. Mas não se pode perdoar o afã de modificar as características essenciais dos prédios e casas, deformando-os por completo, apenas em nome de ridículos caprichos pessoais ou efêmeras demonstrações novas-ricas de status. Ou mesmo de partições de herança. Deveria haver uma legislação forte e que cuidasse efetivamente disso. Mas se o fenômeno se dá a reboque de razões eminentemente econômicas, essas distorções poderiam ao menos ser atenuadas houvessse um verniz mínimo de planejamento, pois basta passar os olhos por fotos antigas para perceber que já houve mais amenidade em nosso circuito urbano.
É possível pensar, nesse ritmo, no próprio esvaziamento de funções que a casa de classe-média sofreu em Fortaleza nos últimos vinte e poucos anos. A casa não é mais um local para receber. Os encontros foram deslocados para os restaurantes e lobbies de hotéis e shoppings. Já os aniversários – especialmente os infantis – assim como os grandes eventos familiares – casamentos, bodas, batizados, etc. – foram cada vez mais transferidos de casa para os bifês. Ou se dão no salão de festas do condomínio quando casa não mais há. Bem como também, em termos de lazer, as quadras domésticas de esporte e áreas afins perderam sua importância em prol inicialmente dos clubes e raros parques e praças praticáveis; e, mais recentemente para as escolas, os centros de fisicultura e os condomínios. Além disso, as famílias de classe-média não possuíam tantos carros trinta anos atrás. E assim havia mais orçamento disponível para se gastar no zelo do imóvel. E mais espaço no imóvel para abrigar o zelo do corpo.
O excesso de carros nas ruas estreitas da cidade é, aliás, um dos fatores que contribuíram decisivamente para que Fortaleza perdesse muito do charme, algo ibérico, que ainda possuía na década de 70. Quase ninguém caminha ou anda de bicicleta por Fortaleza. Às vezes, percursos mínimos são ostensivamente perfeitos sempre de carro. E há mesmo o ridículo do número de automóveis que se aglomera diariamente, de manhã bem cedo, à Beira-Mar. E esses veículos levam aqueles que vão... caminhar. Quer dizer, para se caminhar em Fortaleza se usa... o carro.
Isso dá o que pensar. Não seria mais prudente, cívico, e muito mais ecológico passear a pé pelas imediações de casa? E isso até serviria para fortalecer laços de vizinhança e solidariedade. Já que famílias inteiras, amigos e vizinhos estariam nas ruas de manhã cedo e passando pelos espaços onde, de fato, moram. Podendo eventualmente observar e zelar pelos equipamentos públicos e até conhecer-se melhor e se organizar no sentido de apurar a qualidade de vida de seu pedaço de cidade, bem como reocupar coletivamente uma rua cuja insegurança também brota da falta de pedestres. E isso não é nenhuma utopia. E é bem fácil de atingir. Bastava que houvesse políticas públicas que incentivassem a prática de caminhadas e passeios de bicicleta em volta da vizinhança. Mas também que todos aqueles que tivessem condição ou disposição para se deslocar a seu local de trabalho de bicicleta ou a pé, o pudessem fazer, e em condições razoáveis de segurança e conforto pessoal.
Admiramos Amsterdã pelo número de ciclistas que se deslocam pela cidade, acrescendo-lhe o charme típico de uma urbe tranqüila e de alta qualidade de vida. E mal nos damos conta de que vivemos numa cidade plana. E que bastaria exclusivisar algumas vias somente para bicicletas – além de excessionar apenas aos moradores, o tráfego de veículos em baixa velocidade nessa vias – para, então, a curto prazo, atingir patamares de qualidade de vida bem mais expressivos e dignos. Inclusive por uma maior desobstução das vias de tráfego, bem como por certa desvalorização simbólica do automóvel. Fácil entender que esculpir uma cidade é uma tarefa essencialmente do olhar. Inclusive no que diz respeito à sua poluição visual.
E tudo isso é tarefa do estado, claro (até hoje me recuso a escrever estado com maiúscula). Mas, por igual, deveria passar pela boa-vontade e pela consciência e cooperação de cada cidadão de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Cada um sabendo de seus potenciais em contribuição para atingir tais metas.
Voltando às velhas casas, há mesmo uma que resume para mim esse elo entre paisagem, história e integridade. Se não me falha a memória, depois de quase cinco anos morando fora de Fortaleza, ela fica na Antônio Augusto. No próprio quarteirão que antecede a Santos Dumont, sentido sertão-praia.
Não é nada opulenta. Poderia passar despercebida para a maioria. Sequer possui um segundo andar ou um vasto jardim gramado à frente. Mas há algo nela que é realmente encantador. Essa residência, hoje ilhada em meio a clínicas, escolas infantis, salões de beleza, concentra toda um estilo de fracionar espaços que me atrai de algum modo. Algo da ruralidade das casas de chácara no bairro do Outeiro – o antigo nome de parte da Aldeota – de que nos falam autores como Herman Lima.
Há essas estreitas janelas. Geralmente ocupando, em trípitico, o espaço que poderia ser preenchido por um só, desgracioso, janelão. Estreitas janelas guarnecidas por venezianas, naturalmente. Estão à esquerda, na fração da casa que avança em bloco sobre o pequeno vão de jardim, que a precede. Há um alpendre em L, que se estende por todo flanco direito. E nele se pode entrever o móvel conforto de redes avarandadas. Há também esse jardim lateral, contíguo à ala direita do alpendre. Esguio e bastante fechado por diversas árvores, ao modo dos antigos caramanchões. Vertendo sombra e conforto para uma faina doméstica e sem fim.
Me espanta um pouco o tanto que há de história naquela casa. Não conheço seus donos. E nunca parei para tomar qualquer informação a respeito dela. Mas, a cada ocasião em que, nas minhas caminhadas, passo em frente a ela, sinto o quanto ela convoca meu olhar. Posso intuir, secretamente, seu misterioso poder de passado e dignidade. A eloquência do que ela testemunhou ao longo de tantos anos. Há uma outra casa assim, só que infinitamente mais triste, numa dobra de esquina, por trás da Escola Normal.
Sei que muito do que toco neste texto são apenas reclamos, e que mal serão ouvidos. E é um pouco inútil chorar o leite derramado. As casas e as edificações que foram postas abaixo ou desfiguradas não vão renascer de seus alicerces. Elas foram derrubadas para sempre. Ou desfiguradas sem remissão.
Mas, desde sempre, para minhas próprias palavras – em meus livros, contos, poemas, letras de música – quero criar um espaço semelhante ao delas. Quero que minhas palavras se organizem dentro dessas densas formas da história. Dentro dessas estreitas janelas, dessas móveis venezianas; desses alpendres laterais vazados para o trabalho dos dias e o brinquedo das noites; dessas redes com varandas; desses caramanchões e latadas. Em certo sentido, sempre dentro dessa perspectiva de sítio ou chácara, pendendo para rua. Algo que indica a própria motivação inicial do bairro em que, por primeiro, residi em Fortaleza. Algo que está nas fachadas e no grau de testemunho e companhia dessas velhas casas, a nos ensinar um caminho mais íntegro. Ou mesmo algo mais lúcido sobre nós próprios e nossa integridade e história enquanto povo
E, então, quem sabe, essas casas e essas palavras nos possam, de novo, nos indicar um futuro mais liberto de ganância ou lucro fácil.







Nota – Artigo originalmente publicado em O Povo. Em 2000, quando o texto foi escrito, eu estava morando em São Paulo.