terça-feira, 26 de agosto de 2008

O gosto de um suave pensamento


anônimo, sec. XVIII


Quando se pensa em certo mestre caolho



Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Dear gentle soul, who has, too soon, departed
this life, so discontent: please rest, my dear,
forever in heaven, while I, remaining here,
must live alone, in pain, and brokenhearted.
(na versão de William Baer)


É sintomático. O poeta da língua era uma alma inquieta. Um trânsfuga morto de sede de aventura. Que teve o olho vazado por uma seta moura. E seguiu envolvendo-se em peripécias. Algo de não pouco patético. Vida de estudante entre tavernas e putas. Amores por damas de maior estirpe. Disputas de espada com escudeiros da Casa Real. Pena comutada por degredo no Oriente. Naufrágio na foz do Mekong. Desterro em Moçambique, onde viveu na indigência. Um homem que passou ao largo da vida morta dos gabinetes. Que estava no tempo e no espaço justos para render grandeza. Quem saberá o quanto de tudo isso é legenda. Sua arte é tão vasta que autoriza essas fantasias livrescas: salvar a nado o manuscrito do poema que consolida a língua. E, no entanto, é saboroso pensar que houve algo ao menos próximo, em tangência, de tanta fantasia. Que só um ser humano assim --- sitiado por lendas posteriores, em parte criadas por uma empatia coletiva de vertigem viquiana --- pôde escrever versos como "Enquanto quis fortuna que tivesse"; "Alma minha gentil, que te partiste"; "Amor é fogo que arde sem se ver"; "Aquela triste e leda madrugada". Nada mais vanguarda que ele. Nenhuma forma mais avançada que a encontrada em seus sonetos, canções, voltas, redondilhas, decassílabos encorpados. Um bálsamo oceânico diante dos chatíssimos da vez. Diante de tanta pseudo-vanguarda que não passa de mistificação travestida de novidade. Diante de tanta repetição que é tão-só tartamudez, má hesitação e morbo. Novidade ainda é e será sempre a linguagem que não envelhece. Esquecer de buscá-la, de aludi-la, de nela nutrir-se é como esquecer de viver a língua na ponta da língua. Ou mesmo em seus abissais exílios que beiram a mudez. De viver testando suas fronteiras, seus limiares. É esquecer que é possível, volta e meia, revigorar-se nessa fonte. É esquecer que, por gerúndios e sintaxes outras, esses arroubos heróicos e expansões gentis se encontram mais próximos de nossa própria língua corrente, falada --- ao mesmo tempo recente, afro-americana e compósita e, por um genial paradoxo histórico, mais arcaica, vocálica e lusíada que a dos falantes europeus. Aqui, como em sôbolos rios, quase tudo é exceção, fermento. Quase tudo é apenas uma questão de achar o ponto e o argumento que, no espaço, seguem "da particular beleza/ para a beleza geral". Um obter, por algum milagre alquímico, o desdobrar desse ponto, o conversar desse argumento.





2 comentários:

  1. "Quase tudo é apenas uma questão de achar o ponto e o argumento que, no espaço, seguem da "particular beleza/ para a beleza geral".
    Até que ponto pontos, argumentos e espaços têm uma geral beleza???

    TB, Fortaleza, 00:35, madrugada de um belo dia de agosto de 2008

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  2. bem, Sr. Anônimo: os pontos e os argumentos encontrados nos poemas camonianos -- assim como em toda obra de arte digna do nome e, portanto, calcadas em um suporte material (contingente, específico) -- nos levam da particular beleza (material, deste mundo) para a beleza geral (espiritual, eterna).

    um pouco isso. mas perdoe-me se ficou pouco claro. além disso, o desejo da expressão era a de também brincar com a afirmação, famosa, de wittgenstein:

    "um ponto no espaço é um lugar para um argumento"

    abraço cordial,

    r.

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