segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Sangue e Pudins


John Morris, 2000


Zumbis & Bisturis


Não sei se vocês já repararam, mas esses seres que aparecem apresentando os noticiosos da Fox News não são propriamente humanos. Eles parecem uma combinação entre bonecos Muppet, personagens de cartoon e gente de carne e osso. Assim uns híbridos entre humanos e figuras de casimiro-côco. Ao vê-los na tela me vem uma impressão de sangue e bisturis, de carne humana cortada e daquelas postas de boi escanchadas nos ganchos de açougue. Grotesco! Eles não sabem sequer sorrir. Esboçam esgares parecidos com sorrisos. E, cáspite, mostram os dentes. Mas o que mais impressiona é que eles falam. E, em inglês, parecem ter alguma opinião. Ou ao menos se esforçam para ter. E olha que não tenho nada contra o fato de defenderem os republicanos ou acharem algum mérito em W. Bush e McCain. É um direito deles. Assim como é meu direito, deles discordar. Nem tanto por entusiasmo a Obama. Mas que são grotescos, são. E vão dizer que tenho preconceito contra quem faz plástica.
Tenho mesmo. E sempre achei Pitanguy -- ao invés de uma glória brasileira cantada em prosa, verso e enredo de escola -- um sujeitinho meio repelente. Algum problema?

De olhá-la, esse a virtude lhe conhece


Herbert Bayer, 1939



Poesia também enjoa

"Nos olhos leva a minha amada Amor,/ Porque se faz gentil o que ela mira". Um leitor me escreveu perguntando por traduções de poesia. Por que eu não posto mais. O problema é que não ando para poesia nos últimos tempos. E digo: às vezes passo meses sem estar para poesia. Acho um pouco chato. Um pouco pretensioso esse negócio de poesia, às vezes. Ou simplesmente não tenho saco mesmo. Por que tem dias que são tão prosaicos que qualquer verso até atrapalha. São dias que gosto de ouvir mesmo é o barulho da água na louça suja ou o fervilhar do gás ao se deitar duas pedras de gelo no copo de coca-cola. Porque só gosto de poesia se sinto. E, se não sinto, posso ter Dante achando Beatriz à minha frente que o negócio não dá liga. Fazer o quê, caro, leitor. Esperar. Nada mais. Não é em todos os dias que a comédia é divina. Ou que é nova a vida. Ou que a maravilha e a nossa idade são fatais.


quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Nem sempre as coisas se encontram por detrás da realidade


Gordon Matta-Clark, 1979

Entre Bugalhos, Alhos, a Água em Marte e o Enfado de Carla Bruni

Benjamin dizia que a falta de relação entre as notícias é um atributo medular da moderna informação. Essa impossibilidade de o leitor apropriar-se delas inscrevendo-as em sua experiência pessoal e afetiva. Mas antes dele, Dostoiévski já havia percebido que "a desordem é o grau mais elevado da ordem burguesa". O que o leitor se vê privado é da possibilidade de fiar teias de relação que convertam a matéria lida numa espécie de aprendizado. Numa lição de vida. O leitor não retira da informação jornalística nenhuma sabedoria, nenhum resquício de moral da história -- por mais débil que sejam. Vejamos essa ordem desorganizada e esse divórcio dos assuntos tal qual estampados na capa da edição de hoje do Diário do Nordeste:

"Arrecadação estadual cresce mais que o PIB".

"Rinaldo acerta o seu retorno e se apresenta no Pici".

"Regaseificação é adiada para o mês de novembro".

"Moroni afirma existir um excesso de gasto".

"Wanessa Camargo vive Madonna por um dia".

"Estado atrasa salários de agentes de saúde".

"Lula apóia expulsão de embaixador dos EUA".


Na Folha de São Paulo (edição em linha) temos no cardápio algo como:

"Seis bancos centrais anunciam medida conjunta contra crise".

"Cientista brasileiro confirma existência de água em Marte".

"Policiais civis de SP iniciam terceiro dia de greve".

"Palmeiras vence o Vasco e avança às oitavas-de-final da Copa Sul-Americana."

"Bruni diz que incomoda Sarkozy com sua música".

"Granizo causa estragos em Belo Horizonte".

O que a existência de água em Marte tem a ver com o esforço dos bancos centrais contra a crise financeira, a greve dos policiais paulistas, a vitória do Palmeiras, a chuva de granizo em Belo Horizonte ou o enfado de Carla Bruni porque Sarkozy não aprecia sua arte é algo que a maioria dos leitores não sabe ou sequer se pergunta. Ou mesmo vai morrer sem saber.


terça-feira, 16 de setembro de 2008

Espelhismos, incômodos, receios


Mircea Cantor, Shadow for a While, 2007

Verdade e Rotina

Saía para a caminhada de manhã cedo. As ruas ainda mal tocadas pelo sol. Operários da construção civil, domésticas e, mais tarde, colegiais, passavam de quando, sozinhos ou em pequenos grupos. No mais, a sombra dos pés de jambo, acácias e fícus. O latir avulso dos cães-de-guarda. Um ou outro caminhante.
Certa manhã, um senhor alto muito magro, um tanto exasperado, a consultar o relógio e esfregar a cabeça branca interpelou-o numa esquina. Ele deteve os passos, tirou um dos fones-de-ouvido, onde troava um fandango, entre violões, pandeiros, castanhas:
--Que dia é hoje da semana, meu filho? – disse o velho.
--Quinta-feira.
O velho coçou de novo a cabeça branca, que balançava em contrariedade:
--Já é quinta-feira! Quinta-feira! -- murmurou agastado.
No dia seguinte, lá estava o senhor magro, de boca murcha, cabeça branca e nariz adunco, arrastando seus passos acerca da mesma esquina. Acenou para ele:
--Que dia é hoje da semana, meu filho?
--Sexta-feira.
E o velho em desconsolo:
--Já é sexta-feira! Sexta-feira!
Por muitas manhãs a cena se repetiu.
Certa segunda-feira, com uma pesada semana de trabalho por diante, ao se deparar com o senhor da cabeça branca e sua inevitável pergunta, resolveu trocar as coisas para ver se dava samba:
--Que dia é hoje da semana, meu filho?
--Terça-feira.
--Não, meu filho. Não é terça-feira, não.
--Ah, perdão, o senhor tem toda razão, é segunda.
E o outro incomodado, coçando a cabeça:
--Já é segunda-feira! Segunda-feira!

* * *

Aparentemente nada fora alterado por sua resposta cínica. Ele prosseguiu sobre seus passos ouvindo fandangos. E o velho restou na esquina, com sua habitual exasperação. Mas na manhã da terça-feira, era ele quem estava em passos nervosos acerca da esquina, coçando a cabeça, contrariado, indagando aos passantes pelo dia da semana.
Acordou com mais suor sobre a pele do que depois de uma restauradora caminhada matinal. Consultou o calendário.
Era quarta-feira.


segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Litanias do militante II: braços dados ou não


Jacob Lawrence, 1941


Um contigente que jamais se uniu (nos termos reivindicados)


Brada certo chavão que "o povo unido jamais será vencido". Mas o povo, plural, festivo em sua maioria e um tanto refratário a chavões, jamais se uniu. Talvez receoso da possibilidade de ser vencido uma vez mais. Como desde sempre o foi, desunido.


domingo, 14 de setembro de 2008

Litanias do militante I: subscrever manifestos


Carlos Alvarez, 2007

Sobre Acúmulos de Causas & Assinaturas

Esses abaixo-assinados eletrônicos que nos chegam para sei lá o quê: repudiar a morte de bandos de pinguins na costa brasileira, lançar mão de sacolas recicláveis no supermercado ou ser a favor da lei do aborto. Dá vontade de adotar as palavras de um conhecido anarquista, o Dr. Convencimento: "Não insistam! Eu não assino abaixo-assinados. Na vida, me acostumei a escrever coisas que buscam ser assinadas acima da média".


sábado, 13 de setembro de 2008

Por onde passa a escritura dos amigos


Raymond Pettibon, To take a great writer at his word..., s/d


Três coisas que leio

1. Estranho caso do homem da Governador Sampaio
Os 25 micro-contos de Aldir Brasil Jr. desvelam, de passagem, uma Fortaleza saindo da província e caindo n'outra maior. Ou no mar da memória. Típico caso de “o buraco é mais embaixo”. Envergonhadamente afetivos. A ocasião faz o ladrão. Por algumas frações de segundo, abrasivos. Experiência de vida individual inscrita no coletivo. E vice-versa, como deve ser. Micro-história refratando sociologias. Sabor de bairros. Concreção de nomes, tempos, espaços. Ruas e becos da reminiscência cruzando-se em meandros compressos. E indo dar em pátios de colégios -- ou do culégio, com dizia um velho diretor. Gestos próprios. Por vezes, espúrios. Portrait geracional. A irrecuperável, mitológica década de 70. Por enquanto, só em manuscritos. A circular entre amigos.

2. Devo morrer nas próximas três horas. Talvez quatro.
As postagens do blogue Dessincronizado. Nelas um estudante de letras em Fortaleza – depois em Belo Horizonte – professa o mundo ao sabor de uma extravagante, bela e arriscada condição: a de ser jovem. Entre outras, ele decreta que a poesia brasileira há de ser salva por Adriano Espínola e pelo poeta carioca – cujo livro de estréia ainda não se havia lançado, quando dessa assertiva – Cláudio Neves. E, no entanto, do alto de sua fleuma, certo ar blasé, dose de alheamento, velha e boa arrogância juvenil, há idéias próprias, noções muito vívidas e um humor, por vezes, corrosivo. Inclusive quando, de sua condição de anglófono – na tradição de Machado e Sterne –, faz pouco de certa pulsão dos franceses para complicar ainda mais um mundo que já anda um bocado encrencado.

3. Que diabos há entre a literatura e galões de gasolina?
Outro blogue, ainda incipiente mas que promete, é o Sursum Corda. Ao menos tão bem escrito quanto o anterior, dotado da mesma gana juvenil, e com coisas do tipo:

-- Ei, sabe aquele autor?
-- Quem?
-- O Sartre! Aquele do livro da capa azul.
-- Hum, sei não. Conheço não.

Vejam como Sartre é reduzido a uma capa azul. Reparem como os nãos estão todos ao final. Não é assim que falamos em Fortaleza?


p.s. -- depois falo do livro de Cláudio Neves (De Sombras e Vilas), que merece resenha a parte.

Miopias, Borracharias e Consultórios


Sem indicação de crédito.


Ao invés de letras, uma mulher

Uma nova modalidade de mostrador em consultórios oftalmológicos despertou muita polêmica na Suécia. Nele, ao invés das tradicionais letras, há uma mulher. A jovem, estilizada de enfermeira, segue-se despindo a cada redução de escala, até ficar completamente nua, em poses provocantes, nas menores delas. Grupos de feministas e até de direitos humanos pressionaram para que os mostradores fossem retirados e os médicos que os utilizavam processados e multados. O aposentado Peter Öberg, de 83 anos, no entanto, disse que há muito tempo não se divertia tanto quanto em seu recente exame de vista. E toda a celeuma só serviu para que não só na Suécia, mas em meio mundo, o mostrador, originalmente exibido para um punhado de pacientes de Estocolmo em consultórios reclusos, fosse apreciado por dezenas de milhões via televisão e internet.



sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Sinceramente


Jean Dubuffet, René Bertelé, 1947


Não me diz respeito

O abrupto esfacelamento da indústria fonográfica tem obrigado a pôr na estrada velhos ícones. Nos últimos tempos passaram pelo Brasil Bob Dylan, Roger Hodson, Nazareth, Scorpions, entre outros. Amanhã haverá show de Charles Aznavour em Fortaleza. O veterano chansonnier está com 84 anos e se queixa de perceber tons distintos em cada ouvido. Há uma entrevista com ele hoje no Vida & Arte, cujo melhor trecho é o seguinte:

Pergunta - Como o senhor vê a França tendo a cantora e ex-modelo Carla Bruni como primeira dama do país?
Aznavour - Sinceramente, esse assunto não me diz respeito.


Digressão sobre literatos


Josef Albers, Tlaloc, 1944


Desconfie do Homem Ligeiramente Mais

Na maior nação futebolística do mundo, um escritor ligeiramente mais jovem escreve para outro ligeiramente mais velho a solicitar manuscritos. São para sua nova revista. Entre outras discrições, pede sigilo sobre a revista. Afinal, ambos moram na mesma cidade. Na mesma filosofia. E o mais velho bem sabe como são essas coisas de revista. De primeiro número de revista. Até mesmo ele – que segue uma existência ao largo de prêmios, academias – sabe. “De toda a parvoice que envolve a vida literária como o verniz termosselante acondiciona o chocolate”, afiança o ligeiramente mais jovem.
O ligeiramente mais velho, junto ao monitor, pondera o pedido enquanto corta as unhas: infelizmente os manuscritos que o ligeiramente mais jovem quer já estão comprometidos. E passa do anular para o mindinho. Sairão em breve numa outra revista, na cidade de São X., em uma província mais ao Sul do império onde o futebol nunca se põe. As presilhas do cortador de unhas dirigem-se com diligência às cutículas.
Sugere outros nomes. Faz uma pequena lista. Verdade que eles escrevem outra coisa. Mas ainda são jovens... Uma tardia apara de unha cai sobre o teclado entre o h e o j. Ele a remove caprichosamente e prossegue digitando. Até que o mouse clica sobre “enviar”.
Depois de ler a mensagem do outro, o ligeiramente mais jovem manda dizer que conhece os outros. Todos. E que não são maus. Mas são apenas eles. E imprecisos, por vezes. E o que ele quer mesmo: a mestria de seu conterrâneo.
Num transe de contentamento, o mais velho envia manuscritos vários, em formato Word. Até em maior número do que ele próprio esperava remeter.
Porém, para seu pasmo, o ligeiramente mais jovem os devolve três horas depois cheios de notas e correções gramaticais impertinentes. Havia até ironia.
“Ah, então é assim?”. Ergue-se. Saca da prateleira o livro de contos do ligeiramente mais jovem. Um volume magro, que lhe fora ofertado quando ainda resenhava para o segundo caderno: “Ao Amigo L. M. M. V.”. A dedicatória vazava para o verso da folha.
Pela primeira vez em tantos anos, lê umas poucas páginas, debruçado à escrivaninha, sem reter um grama de trama. E toma algumas notas. Compila treze erros de português: “solecismos, más silepses...” E os envia em anexo, junto com seus arrazoados e uma batida de porta.
O ligeiramente mais jovem sente-se arrasado. Como ousa o outro. Fazer isso com ele! Afinal, já fora adotado no Vestibular, apontado duas vezes para o Jabuti, ganhara o prêmio da Radio France, o do Município de Caucaia. Ele assopra os cacos de unhas acumulados ao lado do mouse. E sapeca ao teclado: “Sua mensagem traduz a medida de seu coração. Debochar de meu português aprendido na escola pública...” E como fecho: “Cioran também dizia: 'desconfie do homem que vira as costas ao amor, à fama e ao dinheiro: ele se vingará!'".
Após ler essa mensagem, perplexo, o ligeiramente mais velho desfaz a janela. Estende o braço, toma o telefone. Liga para o secretário da cultura da província.
E cancela a revista da qual seria editor.
Uma revista assim, tão a ponto de agravar uma funda cisão nele próprio, já nasceria amaldiçoada.


quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Dos deuses gregos I


Max Pechstein, Drunken Fisherman II, 1912


O ajuntador de nuvens (revisitado)

"Vou fazer chover", disse. E saiu desbebendo sua cerveja pelo bairro afora. Pensando que era e sendo Jove.

Algo estava fora dos gonzos


Steven Holl, World Trade Center Project, 2002


Las coordenadas del dia 11, siete años después

No dia 11 de setembro de 2001 eu estava em um apartamento em São Paulo. Passava muito tempo em casa e sozinho. Por duas razões. Primeiro, nem sempre tinha dinheiro para ir ao cinema ou receber amigos. Segundo, tinha de escrever uma tese de doutorado.
O apartamento ficava na esquina das Ruas Guiará e Raul Pompéia, na Pompéia, próximo de Perdizes, do Sumaré. E não distante de um dos locais mais tipicamente paulistanos: aquele trecho da Dr. Arnaldo à volta da Estação Clínicas do metrô. Onde há o velho hospital de um lado, com seu aspecto britânico, e, do outro, o imenso cemitério do Araçá, e os muitos quiosques de floristas.
Desde dias anteriores, eu desligava o telefone durante boa parte das horas, para não ser importunado. Conseguia escrever com certa fluência e era para tanto que estava ali. Antes de dormir, já quase pela manhã ou ao fim da tarde, entrava na internet, por uma precária conexão discada, para conferir e-mails e ler jornais. Inclusive as notícias do Ceará, no O Povo – jornal para o qual eu escrevia à época.
Quase todos meus colegas da PUC já haviam acabado os créditos e retornado aos seus estados. E os poucos que tinham ficado ou eram da cidade moravam longe, trabalhavam duro e, como eu, contavam seus trocos. Era uma vida solitária, em que eu só saía de casa para errar, sem muita direção, pelas ruas de Vila Romana, prestando atenção ao aspecto italianado das casas. Imaginando como seria o bairro à época de Alcântara Machado e Mário de Andrade, pois embora eles não fossem de lá havia algo deles nessas ruas. Ou algo dessas ruas na prosa deles. A Pompéia, à sua vez e fazendo jus ao nome percussivo, era bairro mais musical, em que dois adolescentes paulistanos, Arnaldo e Sérgio, ensaiavam no porão da casa dos pais. Depois o grupo deles veio a se chamar (como é mesmo?) Os Mutantes -- como se saído de um gibi, de um seriado televisivo, daqueles sobejamente bem dublados e que eu conhecia da tenra infância.
Ás vezes, eu descia para fazer compras num centro comercial de aspecto cansado próximo ao Palestra Itália. Ou seguia, caminhando, para a biblioteca da PUC. Ou ainda me sentava com uma revista nos pequenos cafés, em travessas da Alfonso Bovero. Era fácil manter a forma. Bastava sair de casa e caminhar o sobe-e-desce das íngremes ladeiras da Pompéia, um dos bairros mais acidentados de São Paulo. As quaresmeiras ao longo das calçadas e a quietude de certas ruas eram um bocado atraentes.
Não me lembro sequer se tinha vizinhos. O prédio era um pouco sombrio, mas guardava seu encanto. Um desses prediozinhos art-deco, da época do Estado Novo, composto de formas redondas, um pé-direito altíssimo no térreo, onde se encontravam duas pequenas lojas sem movimento ou charme. Apenas três andares. Não havia elevadores. Meu apartamento ficava no terceiro. E, como eu estava afastado de rotinas regulares, pouco cruzava com os outros moradores.
Esse endereço foi o meu último na cidade. E talvez o mais modesto. Mas eu não desgostava de todo. Especialmente por se situar numa região muito elevada. Da janela do quarto era possível ver algo que eu não via em meus outros endereços paulistanos: o fim de São Paulo, as encostas da Serra da Cantareira erguendo-se ao longe. Pois, embora não se pense em limiares quando se está em São Paulo -- e logo a cidade apareça infinita no dia-a-dia -- mesmo São Paulo tem um limite, um fim. E era um alento poder avistá-lo. Então o apartamento tinha esse arejamento. Essa sensação aeronáutica de se erguer pairando sobre as esquinas enladeiradas da Pompéia. Sobre a própria cidade de São Paulo. Á noite, eu podia chegar ao terraço descoberto, olhar para cima e saber que havia um espaço lá, acima, com galáxias, estrelas, vastidões de tempo, etc. Algo sideral, federal, universal, e até um pouquinho maior do que São Paulo. Ao invés de não sei quantos andares a mais sobre a cabeça, com dezenas de famílias, bichos de estimação, italianos e nisseis habitando-os.
Mas, voltando ao dia 11, com a tarde a meio, resolvi fazer uma pequena pausa. Acessei a internet. E, então, lá na página do Uol estava estampada a notícia. E também havia uma foto. Algo tão desmedido que assustava. Que parecia com São Paulo para quem só sonha com São Paulo ou para o neófito. E fazia crer de novo, nem que só por alguns décimos de segundo, não só em notícias, mas em contos de fadas, nas Mil Noites e Uma, no Sputnik, no Bicho-Papão, no primeiro amor, no coração batendo mais forte. Era, sem dúvida, estar diante de um fato histórico de proporções avassaladoras. E, se a queda do muro de Berlim ainda chegara pela televisão, o 11 de setembro foi o primeiro marco a chegar pela Internet. E foi um marco importante. Mesmo para quem gastava seu tempo -- em perfeita assincronia com o restante da cidade -- lendo Longino, San Juan de la Cruz, George Oppen e as teorias sobre o sublime.
Quando se está diante de algo daquelas dimensões, um gosto de Apocalipse te leva a perspectivar um monte de coisas. Há uma espécie de vertigem-ambiente que sabe a excitação. Uma sorte de corrente elétrica que impregnou, então, o ar do pequeno apartamento suspenso entre ruas e ladeiras da Pompéia. E assim, só depois de convencer-me de que aquilo tudo era real, pude religar-me com o mundo, telefonar para os amigos, trocar mensagens com gente que estava em Nova York. Ver as imagens em movimento na televisão.
Elas eram medonhas.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Uma espécie de maldição


Thom Mayne, World Trade Center Site Proposal, 2002


Terrorismos, violência, um preá, a grande arte & o pintor cocainômano

A temática do terrorismo é fascinante porque confronta a singularidade do homem desesperado à potência impessoal do Estado. Algo assustador, repugnante. Mas cheio de fascínio.
Do mesmo modo, qualquer dirigente que apóia terroristas merece ser execrado. A começar por Bush. Pela aventura norte-americana no Afeganistão, no Iraque, que, sob o pretexto de combater terroristas, funda novos terrores. Mas há também Chavez, o mais recente de toda uma longa linhagem de caudilhos.
Digo desse fascínio porque, em parte, sinto que todo mundo tem enorme propensão a ser terrorista, incendiário. Reconheço em mim essa pulsão carbonária.
Verdade que a última vez que julguei haver atropelado um preá, durante uma viagem, tive pesadelo. Ainda me lembro do estampido surdo que proveio do pneu dianteiro direito. Mas não penso que um terrorista que põe uma bomba no metrô sabendo que vai matar duas centenas de inocentes é menos sensível do que eu ao atropelar um preá.
Talvez alguns deles, do contrário, como homens de ação, houvessem brecado o carro: a quantas mesmo ficara o preá? Amassado sobre o asfalto? Fui capaz apenas de torcer por um raspão e o roedor chegando intacto – um pouco zonzo, é verdade -- ao outro lado da pista.
A violência é uma espécie de maldição humana.
Alguns são violentos literalmente. Rufiões de primeira grandeza. Chegados a um quebra-pau. Há os que preferem levá-la para cama, junto com toda uma série de fetiches e elaborações fingidas. De outra forma, existem os que guardam-na para causas “nobres”, como os terroristas. E há também a violência simbólica. A que propôs os elevadores de serviço. Ou a da publicidade, que quer forçar entrada em nossos sonhos. Palavras. Gestos. E sim, há os passionais. Ou ainda aqueles encrenqueiros profissionais, que não passam sem sua cota diária de feud. Enfim, a instância da violência nos parece inescapável. Desconfio que alguns dos mais escorreitos pacifistas já se envolveram em tremendos quebra-paus. Seria mais fácil crer neles depois disso.
Aliás, alguns fundamentalistas atuais beiram a intolerância dos terroristas e guerrilheiros: anti-tabagistas, ambientalistas, amigos dos povos da floresta, psicanalistas, feministas e pós-estruturalistas mais exaltados. E, além desses, de uns tempos para cá, há outra espécie mui perigosa de terrorista: aquele tipo que atribui à arte, à cultura uma instância litúrgica, um valor religioso.
Outro dia, por exemplo, havia esse protesto, em tom exaltado, de um blogueiro. A razão era que a clarabóia de determinado pintor seria ensombrecida por um andar a mais a ser construído pelo vizinho do lado. Tudo pela arte. Afinal, o que é a vida diante dela, senão uma nota de rodapé sem importância?
Aqui, certamente meu lado incendiário me faz pensar que o vizinho estava construindo o quarto nos altos para um bebê prestes a chegar. E que suas razões eram, quem sabe, melhores do que as do ressequido pintor de meia-idade – que podemos imaginar um magricela calvo, de óculos de aros finos, cabelos grisalhos, longos, apanhados em rabo de cavalo, um livro de Deleuze nas mãos e uma partida de cocaína sobre a mesa, junto à sua clarabóia condenada.
Há um terrível acúmulo de tédio e violência em figuras assim.
Mas eu sou esse pintor. Ao menos, guardadas as proporções, do mesmo modo que Flaubert reivindicava ser Madame Bovary.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Não veste Prada


Richard Hamilton, Study for A Dedicated
Follower of Fashion
, 1980


Daqui pra frente, tudo será o mesmo diferente

O Diabo não veste Prada. Seu inferno não são os outros. Ao que parece, o que o Diabo não gosta é de certa idéia de contínuo. A idéia mesma de eternidade lhe dá embrulhos.
“Como minha vida mudou e, no entanto, quão pouca transformação ela sofreu no fundo”, escreveu Kafka certa feita. E escreveu em concordância com nossa sensibilidade contemporânea. Com efeito, nada desperta mais a centelha do cético do que as tais necessidades de se inaugurar uma etapa de vida como se estivesse reinaugurando a vida mesma.
Mas há pessoas que vivem disso. De reinaugurar suas vidas a cada quinze minutos. O problema é que tanto afinco põe nesse afã que se esquecem de viver.
A partir de amanhã, tudo será diferente. Vou deixar de fumar. Caminharei ao menos meia-hora todo dia. Comprarei uns tênis anatômicos para tanto. Amarei mais ao próximo e a mim mesmo. Consumirei menos carne vermelha e gorduras hidrogenadas. Certamente, vou ser menos tenso. Cuidarei de estar mais disponível para os amigos. Tornar-me-ei tão anatômico quanto os tênis que comprei. Retomarei todas aquelas leituras que deixei pela metade. Pagarei contas em atraso. Serei mais transitivo. Não procrastinarei.
É louvável que se pretenda mudar para melhor. Que se ponha isso em listas. Se faça propósitos. O único problema é que há um segundo dia depois de amanhã. Quer dizer, depois do tal Dia D que demarca o advento da milagrosa mudança. E depois desse segundo dia, um terceiro, um quarto... Em regra, logo, logo, o reinventado percebe que terá de se reinventar de novo. Quem sabe, no próximo fim-de-semana. E de novo as listas. E de novo os propósitos.
Se um dia, ela ou ele caem da cama e percebem que não é bem a promoção no trabalho ou o novo vestido vinho e marrom o que, de fato, pode decretar uma real reformulação de vida, o ciclo prossegue apenas mordendo a própria cauda.
De fato, é um ciclo que pode ser deflagrado por uma minissérie televisiva ou um quadrante qualquer, demarcado por algum estímulo mediático ou de história de vida: olimpíadas, separação conjugal, eleições, férias, mênstruo, novos encontros, menopausa, atribuições diferentes no trabalho, alterações glandulares, palestras, o uso de um novo medicamento, convenções, lançamentos de produtos, modas, a perda de um ente querido, etc.
É saudável pensar que se pode deixar de lado hábitos desagradáveis. Mas é um pouco tolo crer que, ao se “reinventar”, é possível também apagar uma rotina passada, onde esses maus-hábitos lá estavam. Como que recortar um pedaço da vida que não atesta nenhuma junção com o tecido passado. Com a substância do vivido. De resto, parece que quando se está realmente diferente, pensar a respeito ocupa muito pouco tempo, porque a real diferença abriga o passado, em função de se haver reconciliado com ele. Só assim, o futuro pode fazer algum sentido. E nosso futuro aponta para um fim.
No fundo, o perpétuo reinventor de si, a rigor, parece esquecer: há uma única etapa depois que se nasce. Ela é contínua. E ao se romper, quase sempre de modo totalmente inesperado e alheio ao desejo do reinventor – ainda quando mais previsível –, essa etapa implica um fim. Um grande e absoluto fim.
De modo que, ao não admitir que pode viver dentro desse continuum, o que o reinventor deseja, a todo custo: eclipsar a própria idéia de vida. E, logo, evitar mudar de fato. Ora, limar o contínuo da vida – através dessas incontáveis reinvenções ou “resets” – é também deixar de pensar que ela tem um fim.
Sim, há algo de muito torto com uma sociedade como a nossa, que se debate inteira para expulsar de seu cotidiano o rosto da morte.



segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Cônjuges, terroristas, prêmios


Charles Eames, 1944


Três Notas Sobre Temas Correntes

A recente eleição de Asif Ali Zardari, viúvo de Benazir Bhutto, no Paquistão. Aponta para o quanto as pessoas tendem a ver o cônjuge como a alma gêmea. Alguém que garante uma espécie de continuidade da personalidade do outro. De nenhum modo isso corresponde à realidade. É uma perspectiva um tanto argentina de ver as coisas. E, no caso – como não em outras esferas da vida argentina – cercada de uma espécie de psicanalismo kitsch -- ainda que a expressão possa soar redundante. Não satisfeitos de mitificar uma (Eva) e eleger a outra (Isabela) das mulheres de Perón, recentemente estenderam essa prerrogativa à Cristina Elisabet, mulher de Kirchner. Nos Estados Unidos, no entanto, a mulher de Clinton saiu derrotada nas passadas prévias.

* * *

E mais uma biografia de Che Guevara. É estranho conceber que se possa admirar Che Guevara. Ele trucidou muita gente em nome de uma causa, ternuras à parte. É a mesma coisa de se admirar um terrorista qualquer. Um terrorista de direita ou de esquerda. A serviço de uma causa política ou de consciência. Mas, no fim, um terrorista. Alguém que acha que o mundo será melhor matando outras pessoas em nome do bem-comum ou de uma causa étnica: eslava, árabe, armênia, judaica, etc. O assassino do Arquiduque Francisco Ferdinando, por exemplo. Ou Bin-Laden. Quem pode negar as execuções sumárias logo após a vitória dos guerrilheiros em Cuba? Bem, aqui se poderia interpor: mas havia sua indignação contra o estado de coisas social. Porém não houve quem, como Dom Hélder Câmara, agiu melhor diante disso?


* * *

A avalanche de prêmios às personalidades. Em outubro, Ingrid Betancourt receberá o Women's World Award. O que esse ser humano fez de melhor para a humanidade, além de haver sido vítima de alguns lunáticos na selva colombiana? Pode-se ser solidário com seu drama tanto quanto com o drama das dezenas de outros reféns anônimos. Mas uma pessoa minimamente decente não se prestaria a ser arroz de festa em eventos com a participação de políticos tão ridículos como Sarkozy. Porém tudo fica mais ou menos esclarecido quando se sabe que Whitney Houston, Cher e Bianca Jagger estiveram, em edições anteriores, entre as distinguidas com o galardão de Mulher do Ano pela organização internacional que o concede, cuja base é em Viena. Alguns meses atrás, quem escreveu texto muito bem humorado sobre todo esse frisson em torno de La Betancourt foi Ivan Lessa. Sua crônica pode ser lida aqui:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/07/080718_ivanlessa_tp.shtml

domingo, 7 de setembro de 2008

O que neles se toca é a manhã


Stephen Shore, 1974

Por quem os sinos

Duas diferentes sensibilidades à escuta dos sinos no domingo: Nuno Júdice e William Carlos Williams. O poema de Júdice peguei emprestado do blogue de Cris Moreno:


Domingo no Campo

Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.

Nuno Júdice


The Catholic Bells

Tho' I'm no Catholic
I listen hard when the bells
in the yellow-brick tower
of their new church

ring down the leaves
ring in the frost upon them
and the death of the flowers
ring out the grackle

toward the south, the sky
darkened by them, ring in
the new baby of Mr. and Mrs.
Krantz which cannot

for the fat of its cheeks
open well its eyes, ring out
the parrot under its hood
jealous of the child

ring in Sunday morning
and old age which adds as it
takes away. Let them ring
only ring! over the oil

painting of a young priest
on the church wall advertising
last week's Novena to St.
Anthony, ring for the lame

young man in black with
gaunt cheeks and wearing a
Derby hat, who is hurrying
to 11 o'clock Mass (the

grapes still hanging to
the vines along the nearby
Concordia Halle like broken
teeth in the head of an

old man) Let them ring
for the eyes and ring for
the hands and ring for
the children of my friend

who no longer hears
them ring but with a smile
and in a low voice speaks
of the decisions of her

daughter and the proposals
and betrayals of her
husband's friends. O bells
ring for the ringing!

the beginnng and the end
of the ringing! Ring ring
ring ring ring ring ring!
Catholic bells-!

William Carlos Williams


Os Sinos Católicos

Embora não seja católico
oiço atentamente quando os sinos
na torre de tijolos amarelos
da nova igreja deles

tocam deitando abaixo as folhas
tocam sobre a geada
e pela morte das flores
tocam espantando os melros

rumo ao sul, o céu
por eles escurecido, tocam
anunciando o novo filho de
Mr e Mrs Krantz que

de bochechas tão grandes
mal pode abrir os olhos, e tocam
tirando do seu poleiro o papagaio
ciumento do menino

tocam pelo domingo de manhã
pela velhice que tirando
dá. Que toquem
que apenas toquem! sobre o quadro

a óleo do jovem sacerdote
anunciando na parede da igreja
a novena de Santo António da
semana passada, toquem

pelo jovem coxo vestido de negro
de rosto magro e chapéu de
coco, correndo para a
missa das 11 (os cachos

de uvas ainda suspensos da
vinha ao longo do
vizinho Concordia Hall
como dentes cariados

na boca de um velho) Toquem
pelos olhos e toquem pelas
mãos e toquem
pelos filhos do meu amigo

que já não os pode ouvir
mas sorri
e em voz baixa fala
das decisões da

sua filha e das propostas
e das traições dos
amigos do seu marido. Ó sinos
toquem por tocar!

o princípio e o fim de
tocar! Toquem, toquem
toquem, toquem!
sinos católicos!

Tradução de José Agostinho Baptista

Nota - O poema de Williams. A primeira vez que o li, ele se acompanhava de uma tradução de José Paulo Paes. Anos depois, quando morei em Florianópolis, visitei em certa ocasião o editor Cleber Teixeira, da Noa Noa. E ele me presenteou com um de seus preciosos livros de pura arte gráfica. Era um livro de José Paulo Paes. Muito antes disso, costumava pedir para uma amiga inglesa me ler alguns poemas, e este entre eles. Afinal, poemas em voz alta são tão uma outra coisa. Ela, feminista empedernida, sempre dava um jeito de correr com o ritmo neste. E assim todos esses "ring, ring, ring" do final eram lidos mecanicamente, em atropelo, com uma má vontade abissal (mas encantadora). O poema distava muito de ser seu preferido. Ainda assim, sou grato pelo quanto aprendi do idioma inglês --- e da vida --- com essa amiga.



sábado, 6 de setembro de 2008

Só a prece pode ser ilimitada: Benjamin


Cada Ilimitada Circunstância de Vontade

“Cada ilimitada circunstância de vontade conduz ao mal. Ambição e lascívia são expressões ilimitadas de vontade. Como desde sempre os teólogos perceberam, a totalidade natural da vontade precisa ser destruída. A vontade deve ser estilhaçada em milhares de pedaços. Os elementos da vontade que cresceram em profusão limitam-se entre si. Isso dá surgimento à vontade limitada, terrena. O que quer que vá além disso e apele para a (suprema) unidade de intenção não é objeto da vontade; não requer a intenção da vontade. A prece, no entanto, pode ser ilimitada.”
Walter Benjamin

Nota – Essa pequena nota do jovem Benjamin vai de encontro a tudo que escreveu Simone Weil a propósito de uma tentativa de “eternizar” este mundo. Da ilusão de se tentar forjar uma eternidade a partir das circunstâncias ou condições deste mundo, falhas e corruptas. Em vários trechos de sua obra, Weil nos diz dos perigos do número: pensar que podemos construir uma eternidade nesta vida – seja acumulando prêmios, dinheiros, mulheres, paixões, poder, etc. A tradução não foi feita do original em alemão, mas de uma versão em inglês de Rodney Livingstone, feita para os Selected Writings de Benjamin editados pela Harvard University Press. A única ressalva é que talvez o termo certo seria algo entre "circunstância" e "condição". Optei por "circunstância", no entanto. E leio isso como se lê poesia. Faz parte do "pacote".


sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Da nossa Disneylândia moral


Philippe Starck, 1994



Uma estranha obsessão e Marrakech


"Vou provar que tenho menos preconceito do que você". Essa parece ser a obsessão de nossos dias. Cada época tem a sua. Algo que segue no íntimo das pessoas como regra de conduta ou catecismo. O problema, aqui, é que hoje em dia esses catecismos se sucedem ou são emendados com vertiginosa freqüência.
Reza o catecismo atual que o maior pecado é ter preconceitos. E, então, para provar que não são preconceituosas, as pessoas travam verdadeiros duelos. Se dilaceram e desautorizam diante de audiências e câmeras. Quando empatam, balançam as cabeças em cortesia, visivelmente desoladas. Ao que tudo indica, ambas as cabeças vieram desde casa com uma idéia fixa. Acordaram, escovaram os dentes, tomaram café e vieram repetindo, pelos caminhos, ao volante do carro, antes de chegarem ao estúdio da TV: "eu NÃO tenho preconceitos"!
Mas é tão claro: a palavra, que deveria ir de um debatedor ao outro, parece sair pela esquerda a meio caminho. Ou antes cair no chão, como acontecia com talheres, pentes ou saleiros quando Didi queria apartear alguma coisa.
Em suma, a palavra se endereça não ao outro, mas ao ego. Um ego conectado a uma espécie de preconceitômetro – dispositivo que afere, em noves fora, sempre em favor de seu dono, o grau de preconceito dos conversantes. E, ao fim de tudo, a máquina imprime em público o diploma de menor grau de preconceito da Via-Láctea para seu ego-proprietário. Uma espécie de certificado ISO9000 do não-preconceito.
O que menos importa, aqui, são mérito e razoabilidade de argumento. Afinal, qualquer argumento se lastra em idéias anteriores que se vão arraigando... e, a seu modo, podem ser – perigo! perigo! (brada a consciência como fosse o robô de Perdidos no Espaço) – preconceitos.
Gestos bruscos e a firme convicção de não sermos preconceituosos parecem abrir-nos as portas de uma espécie de Disneylândia moral: já que não sou preconceituoso e fulano é, então sou melhor do que ele. Não importa se fulano mantenha, do seu bolso, que não é dos mais cheios, um orfanato onde estão nove crianças com câncer. Tenho menos preconceito. Sou melhor.
E há mesmo o caso daqueles tipos que vivem de farejar preconceitos. Verdade que, nesse doce afã, esquecem de fazer outras coisas: lavar pratos, catar piolhos, furar bolos, ajudar crianças com câncer ou ir passar as férias em Marrakech.
Ainda que Marrakech, ao que tudo indica, esteja abarrotada de preconceitos.


terça-feira, 2 de setembro de 2008

Ou sequer: para fechar a trilogia inadequada


Kurt Vrohnsche, 1992



A Eterna

Uma mulher que não lembra que vai morrer, mata as demais. Não necessariamente de morte matada. Mas do tanto que sua insensibilidade gera a insuficiência de dizer: Bom-dia! Ou sequer de olhar para as outras mulheres. E uma mulher que não olha outras mulheres é algo espantoso. Pode-se, no entanto, em perfeição, conceber que uma mulher não olhe para homens. Se for esperta, ela dá mesmo um jeito de vê-los sem sequer olhar -- com ou sem ressaca. Contudo até as carmelitas -- escondendo as carnes sob os panos, jejuando diante de caveiras, buscando desesperadamente a eternidade -- olham para outras mulheres. E medem-se ante a desconhecida. Acham-na uma metida. Ou então, já no reino animal, uma "girafa", uma "perua", uma "piranha".




O elemento que descompensa


Zefferin Weinfeld, 1979


Das armadilhas da dispersão


Na verdade é bem ao contrário. Só a regularidade produz beleza. Mas como os gestores do mundo, do alto de suas corporações, sabem que quanto mais irregular em seus hábitos, mais o terráqueo irá consumir, buscam, então, oferecer a ele o máximo de possibilidades. Algumas em versão standard, outras em premium. Possibilidades com cinco ou três portas. Mas, no fundo, lá no recinto mais recôndito da alma, todas as portas -- e elas foram modeladas em diamante -- estão fechadas para sempre. Resta ao terráqueo, mesquinho como um verme desses que se pendura no anzol à hora de lançar a linha, ser testado como isca. Os gestores se divertem. Pois essa isca já havia, ela própria, fisgado uma porção do que estava pendurado em um anzol anterior.




Nota --- não estranhem o tom dessas duas postagens (Das armadilhas... e Viver dentro...) mais recentes e da que segue acima (A Eterna). Foram escritas pensando em Kafka. E não nos manuais de auto-ajuda. Embora talvez, até pelo reforço das ilustrações (belas, mas um tanto New-Age), pareçam estar mais para auto-ajuda do que para Kafka. O defeito, aqui, foi de confecção. No entanto, a brincadeira, longe de ser o teor de cada uma delas, segue muito mais por gerar uma estranheza --- e certo humor --- inserindo uma única, algumas ou mesmo muitas palavras inadequadas. Algo fora do contexto, descompensado. Na postagem abaixo, na verdade uma expressão ("ser humano"), que substitui algo mais previsível, como "sujeito", por exemplo. Dito isso, fica fácil achar que palavra[s] destoa[m] do contexto nesta postagem, pois ela, em conjunto, é ainda menos sutil que a anterior. O mesmo princípio, em gradação, se aplica à que segue acima, mas já ameaçando, como tudo no Brasil, atingir, talvez involuntariamente, a rematada farsa. É difícil abster-se do barroco vivendo no Brasil.

A fogo e ferro


Yuri Kurjpta, 2008



Viver dentro da prece

Pessoas de hábitos extremamente regulares. Em geral, são vistas como bitoladas. "Quadradas", "caretas", "sem brilho próprio". "Doem no juízo" das outras. Nunca chegarão a ser "poderosas", "carismáticas". Pense naquele ser humano que sempre faz o mesmo percurso do trabalho para casa gastando mais ou menos o mesmo lapso. Ou que circula pela casa passando com os mesmos passos por espaços determinados em horas regulares. Ou que trabalha há anos, sentado à mesma escrivaninha, na repartição, ganhando seu salário, que não dá muito mais do que para o sustento de si e da família. É, não parece um programa de vida muito estimulante. Afinal, é necessário expressar-se. Dar vazão ao espírito. Dar uma voz às inquietações interiores. Realizar desejos, aspirações. "Realizar-se", como se diz. Os budistas, no entanto crêem que a força mental de uns poucos seres humanos é que mantém o mundo. Não é um pensamento mau. Mas se houver um fundo de verdade nisso, pode-se imaginar alguém assim, extremamente disciplinado. Alguém para quem os jogos de palavras e os belos discursos não contam diante da rotina, dos atos corriqueiros. Sem disciplina, de fato, se chega a muitos lugares. E a nenhum. Num mundo como o nosso, onde tudo é pressa, superfície e profusão, viver com poucas referências, alguma aplicação e uma disciplina --- certamente construída a fogo e ferro --- é viver dentro da prece.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Margarida, Gabriela: por um estudo comparativo das morenas

 
Aleardo Garcia, 1978 


Duas morenas, duas rosas no cabelo e um escritor no ostracismo

Para bem e para mal, há personagens que são maiores --- e melhores --- que seus livros. É o caso da Gabriela de Jorge Amado. Ela tornou-se mais mitológica que o próprio livro, que sequer está na linha de frente das obras do escritor baiano. E hoje a personagem se confunde com a figura da jovem Sônia Braga na imagem mental de brasileiros e portugueses. Aliás, outro dia algo me chamou a atenção. Em Mississipi, romance de Gustavo Barroso, há uma personagem chamada Margarida. Como Gabriela, ela é morena e bela. Como Gabriela ela chegou à cidade litorânea como retirante. E como Gabriela ela casou-se com um turco --- que, no caso, se chama Abdula e não Nacib. Coincidência? Talvez. Mas quantas referências em comum as duas moças dividem. A diferença é que a morena que faz sonhar de Barroso, acaba sendo levada pelo seu "turco" para o Líbano. E retorna de Beirute desiludida, com as mãos abanando. E logo ela que um dia já havia sido a modista mais afamada de Fortaleza, e rechaçara continuar sendo a amante de um abastado inglês que hesitava em lhe pedir em casamento. E, então, ela começa a construir tudo outra vez. Soa até mais realista. E mais digno, uma vez que a morena de Amado, quituteira de talento mas apenas amante do futuro marido, nunca foi propriamente uma empreendedora como a morena de Barroso. Sem dúvida, Barroso que foi, lamentavelmente, um declarado simpatizante do nazismo, busca no entanto emprestar mais dignidade à sua personagem feminina do que Amado, que era comunista. Busca, através dela, apontar para a dignidade da mulher que trabalha, empreende. E até sabe se manter, mesmo quando abandonada. Além disso, Margarida, embora personagem marcante, não é o centro da narração de Mississipi. Aos que vivem caçando assunto para teses ou dissertações, um estudo comparativo das duas morenas daria panos para as mangas. Até porque provavelmente se chegaria a conclusões matizadas, complexas e nada maniqueístas. E tudo ainda é matéria inédita, uma vez que por conta de suas malsinadas idéias políticas, Barroso, que publicou mais de cento e vinte livros e teve sua tradução do Fausto de Goethe elogiada por Sérgio Buarque, permanece um tabu dentro de nossa cultura literária esquerdóide. Não há sequer um verbete para ele no dicionário de escritores organizado por Alfredo Bosi, por exemplo. A omissão é tão grave quanto reveladora. Os franceses, que sabem o quanto a obra de um autor transcende suas inclinações políticas, vivem debruçados, por exemplo, sobre os escritos de Louis Ferdinand Céline, que fugiu para a Alemanha junto com Pétain e os párias de Vichy. Hemingway, que lutou ao lado dos republicanos espanhóis e era amigo de Fidel Castro, nunca deixou de defender Ezra Pound, apesar de lamentar seus equívocos políticos. Enquanto isso, Gustavo Barroso, que morreu em 1959 -- e, curiosamente, foi militante socialista na juventude -- amarga um ostracismo de mais de 50 anos. Acreditem. No Brasil é assim.

Matador e Mata-a-dor


Hanna-Barbera, década de 50


Episódio daqueles tempos unilaterais


-Posso pegar um pouco de queijo, generoso pai?

-Ora, o que é meu é seu, querido filho.

O diálogo está em certo episódio de Bibo Pai e Bóbi Filho [Auggie Doggie and Doggie Daddy], os simpáticos spaniels estilizados por William Hanna e Joseph Barbera. Foi ouvido de raspão, na televisão, hoje à noite. E me fez entrar no túnel do tempo. Os dois cachorrinhos eram uma alegoria de quanta trapalhada um filho pré-adolescente pode causar na vida de um pai. Mesmo de um pai amoroso. E especialmente deste. "Meu querido Bóbi" metia o pai em poucas e não boas. A terrível força da ironia ensinada com indizível graça. A força dos cartoons de Hanna e Barbera sempre esteve muito calcada na voz das personagens, uma vez que elas não possuem a mesma versatilidade de movimentos, a mesma dinâmica plástica dos desenhos da Warner ou mesmo da Disney --- que foram feitos predominantemente para a tela grande e não para a telinha. Mas nos Hanna-Barbera as vozes eram magníficas. Inclusive quando se tinha um narrador. As vozes eram um verdadeiro tour-de-force para dubladores. E, com certeza, os dubladores brasileiros dos anos 70 foram as vozes certas para esses personagens. Certamente melhores que seus equivalentes em inglês. Nem mais nem menos. Essas vozes grudaram nos personagens, impregnando-os. Eram mais eles do que a própria pele colorida que os envolvia. A ponto de qualquer dublagem posterior saber a algo tão sem graça que soa a embuste. A profanação. Lembro que vivíamos sob uma ditadura. E tudo era muito maniqueísta. Mas entre o movimento estudantil com sua sisudez e suas desconfianças de tudo que era produzido nos Estados Unidos, ressalvo que já naquela época me impressionava muito mais alguns desses produtos "imperialistas", vistos desde a infância e devidamente sopesados na adolescência, que o ramerrão cacete e unilateral do movimento. É o caso dos excelentes cartoons de Hanna e Barbera. Muito mais deliciosos do que conceitos como centralismo democrático, ditadura do proletariado, capitalismo tardio, guerrilha urbana, realismo socialista ou a náusea de Sartre. É certo, desenhos de Hanna-Barbera eram, então, entrevistos como um produto típico do imperialismo ianque. Mas que magníficos! Com diálogos repletos de viva inteligência. Quase platônicos. Muito mais saborosos do que a lenga-lenga derivativa e acre que sempre me fez passar ao largo das portas dos CA's por essa vida afora. Mesmo achando que o país precisava ser revisto, redemocratizado. Havia outras formas de agir e conceber que não a dos CA's, que quase sempre não passavam de sucedâneos do jogo político execrável de nossos tempos de ditadura. Uma espécie de outra face da moeda mesma. Mesmo achando que havia muita injustiça naquele mundo e naquele país, havia também e por exemplo, a anarquia da criação, da arte, como saída. Um pequeno lugar de não ser infeliz. Um desvio. Sempre os há. E, entre essas injustiças, sem nenhuma dúvida, o fato de nem toda criança brasileira ter acesso à carga de beleza e humor presente nos cartoons norte-americanos. Mas também o fato de nenhuma criança norte-americana ter acesso às fantásticas dublagens brasileiras.