sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Digressão sobre literatos


Josef Albers, Tlaloc, 1944


Desconfie do Homem Ligeiramente Mais

Na maior nação futebolística do mundo, um escritor ligeiramente mais jovem escreve para outro ligeiramente mais velho a solicitar manuscritos. São para sua nova revista. Entre outras discrições, pede sigilo sobre a revista. Afinal, ambos moram na mesma cidade. Na mesma filosofia. E o mais velho bem sabe como são essas coisas de revista. De primeiro número de revista. Até mesmo ele – que segue uma existência ao largo de prêmios, academias – sabe. “De toda a parvoice que envolve a vida literária como o verniz termosselante acondiciona o chocolate”, afiança o ligeiramente mais jovem.
O ligeiramente mais velho, junto ao monitor, pondera o pedido enquanto corta as unhas: infelizmente os manuscritos que o ligeiramente mais jovem quer já estão comprometidos. E passa do anular para o mindinho. Sairão em breve numa outra revista, na cidade de São X., em uma província mais ao Sul do império onde o futebol nunca se põe. As presilhas do cortador de unhas dirigem-se com diligência às cutículas.
Sugere outros nomes. Faz uma pequena lista. Verdade que eles escrevem outra coisa. Mas ainda são jovens... Uma tardia apara de unha cai sobre o teclado entre o h e o j. Ele a remove caprichosamente e prossegue digitando. Até que o mouse clica sobre “enviar”.
Depois de ler a mensagem do outro, o ligeiramente mais jovem manda dizer que conhece os outros. Todos. E que não são maus. Mas são apenas eles. E imprecisos, por vezes. E o que ele quer mesmo: a mestria de seu conterrâneo.
Num transe de contentamento, o mais velho envia manuscritos vários, em formato Word. Até em maior número do que ele próprio esperava remeter.
Porém, para seu pasmo, o ligeiramente mais jovem os devolve três horas depois cheios de notas e correções gramaticais impertinentes. Havia até ironia.
“Ah, então é assim?”. Ergue-se. Saca da prateleira o livro de contos do ligeiramente mais jovem. Um volume magro, que lhe fora ofertado quando ainda resenhava para o segundo caderno: “Ao Amigo L. M. M. V.”. A dedicatória vazava para o verso da folha.
Pela primeira vez em tantos anos, lê umas poucas páginas, debruçado à escrivaninha, sem reter um grama de trama. E toma algumas notas. Compila treze erros de português: “solecismos, más silepses...” E os envia em anexo, junto com seus arrazoados e uma batida de porta.
O ligeiramente mais jovem sente-se arrasado. Como ousa o outro. Fazer isso com ele! Afinal, já fora adotado no Vestibular, apontado duas vezes para o Jabuti, ganhara o prêmio da Radio France, o do Município de Caucaia. Ele assopra os cacos de unhas acumulados ao lado do mouse. E sapeca ao teclado: “Sua mensagem traduz a medida de seu coração. Debochar de meu português aprendido na escola pública...” E como fecho: “Cioran também dizia: 'desconfie do homem que vira as costas ao amor, à fama e ao dinheiro: ele se vingará!'".
Após ler essa mensagem, perplexo, o ligeiramente mais velho desfaz a janela. Estende o braço, toma o telefone. Liga para o secretário da cultura da província.
E cancela a revista da qual seria editor.
Uma revista assim, tão a ponto de agravar uma funda cisão nele próprio, já nasceria amaldiçoada.


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