terça-feira, 9 de setembro de 2008

Não veste Prada


Richard Hamilton, Study for A Dedicated
Follower of Fashion
, 1980


Daqui pra frente, tudo será o mesmo diferente

O Diabo não veste Prada. Seu inferno não são os outros. Ao que parece, o que o Diabo não gosta é de certa idéia de contínuo. A idéia mesma de eternidade lhe dá embrulhos.
“Como minha vida mudou e, no entanto, quão pouca transformação ela sofreu no fundo”, escreveu Kafka certa feita. E escreveu em concordância com nossa sensibilidade contemporânea. Com efeito, nada desperta mais a centelha do cético do que as tais necessidades de se inaugurar uma etapa de vida como se estivesse reinaugurando a vida mesma.
Mas há pessoas que vivem disso. De reinaugurar suas vidas a cada quinze minutos. O problema é que tanto afinco põe nesse afã que se esquecem de viver.
A partir de amanhã, tudo será diferente. Vou deixar de fumar. Caminharei ao menos meia-hora todo dia. Comprarei uns tênis anatômicos para tanto. Amarei mais ao próximo e a mim mesmo. Consumirei menos carne vermelha e gorduras hidrogenadas. Certamente, vou ser menos tenso. Cuidarei de estar mais disponível para os amigos. Tornar-me-ei tão anatômico quanto os tênis que comprei. Retomarei todas aquelas leituras que deixei pela metade. Pagarei contas em atraso. Serei mais transitivo. Não procrastinarei.
É louvável que se pretenda mudar para melhor. Que se ponha isso em listas. Se faça propósitos. O único problema é que há um segundo dia depois de amanhã. Quer dizer, depois do tal Dia D que demarca o advento da milagrosa mudança. E depois desse segundo dia, um terceiro, um quarto... Em regra, logo, logo, o reinventado percebe que terá de se reinventar de novo. Quem sabe, no próximo fim-de-semana. E de novo as listas. E de novo os propósitos.
Se um dia, ela ou ele caem da cama e percebem que não é bem a promoção no trabalho ou o novo vestido vinho e marrom o que, de fato, pode decretar uma real reformulação de vida, o ciclo prossegue apenas mordendo a própria cauda.
De fato, é um ciclo que pode ser deflagrado por uma minissérie televisiva ou um quadrante qualquer, demarcado por algum estímulo mediático ou de história de vida: olimpíadas, separação conjugal, eleições, férias, mênstruo, novos encontros, menopausa, atribuições diferentes no trabalho, alterações glandulares, palestras, o uso de um novo medicamento, convenções, lançamentos de produtos, modas, a perda de um ente querido, etc.
É saudável pensar que se pode deixar de lado hábitos desagradáveis. Mas é um pouco tolo crer que, ao se “reinventar”, é possível também apagar uma rotina passada, onde esses maus-hábitos lá estavam. Como que recortar um pedaço da vida que não atesta nenhuma junção com o tecido passado. Com a substância do vivido. De resto, parece que quando se está realmente diferente, pensar a respeito ocupa muito pouco tempo, porque a real diferença abriga o passado, em função de se haver reconciliado com ele. Só assim, o futuro pode fazer algum sentido. E nosso futuro aponta para um fim.
No fundo, o perpétuo reinventor de si, a rigor, parece esquecer: há uma única etapa depois que se nasce. Ela é contínua. E ao se romper, quase sempre de modo totalmente inesperado e alheio ao desejo do reinventor – ainda quando mais previsível –, essa etapa implica um fim. Um grande e absoluto fim.
De modo que, ao não admitir que pode viver dentro desse continuum, o que o reinventor deseja, a todo custo: eclipsar a própria idéia de vida. E, logo, evitar mudar de fato. Ora, limar o contínuo da vida – através dessas incontáveis reinvenções ou “resets” – é também deixar de pensar que ela tem um fim.
Sim, há algo de muito torto com uma sociedade como a nossa, que se debate inteira para expulsar de seu cotidiano o rosto da morte.



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