quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Devoração das idéias imperfeitas


Joachim Schönfeldt, 2006

Fábula do filósofo e do leão

Um reputado filósofo envolveu-se numa polêmica. Os maiorais da cidade, reunidos na ágora, debatiam a validade da imitação. Um deles batia-se contra essa mentira que é a perspectiva na pintura. E mostrava como as pernas posteriores de uma mesa, se medidas na tela pintada, eram menores que as anteriores: "A mimese a tudo mistifica", concluiu o debatedor.

Depois, se glosou esse ponto de argumentar como Platão. Uma cama é inicialmente uma idéia. A idéia foi concretizada em específica e, portanto, imperfeita, por um artesão. Vem o pintor, enfim, e pinta a cama imperfeita do artesão. Então o que há, aqui, é uma redução em potência da idéia. É o elastecimento da imperfeição. A nenhum sequer ocorreu que a idéia de Platão já pudesse ser a derivação de algo insuspeitável muito mais lá adiante da idéia. Do concebível da idéia. Da idéia em si, em si da idéia.

Ocorre que à época corria o boato de que na estrada de Esmirna estavam reaparecendo leões. Havia vagas notícias de ataques. E tantos os metecos quanto os homens bons - e até mesmo os mercadores - pareciam constrangidos de tomar o caminho de Esmirna. O mesmo ocorria entre os raros defensores da mimese e seus opositores. E enquanto tudo isso ocorria, os escravos se desdobravam em encher taças, arrumar almofadas e servir assados.

Então o reputado filósofo sugeriu que um leão - um leão concreto, real, com juba, bafo e caninos - é apenas uma idéia imperfeita. Ou seja, que se alguém se deparar com uma besta dessas basta pensar no quanto ela é imperfeita, e, portanto, a exemplo da cama do pintor, uma aparência. Incapaz de arranhar o espírito, a idéia. E, logo, derrotável pela idéia, porque subordinado a ela.

Bem, se alguns patrícios duvidaram da idéia do filósofo, outros saíram para casa convencidos de que a perfeição sempre vence o leão. Que um leão específico nunca é assim tão forte quanto a “idéia-leão”. Um terceiro partido, no entanto, não só contestou a idéia, como exigiu que o filósofo tomasse o caminho de Esmirna como comprovação empírica da tese. Acontece que esse partido era a maioria. (O certo é que os únicos que saíram completamente extenuados e enfadados de todo aquele charivari foram os escravos do turno da manhã).

Mesmo obrigado, o reputado filósofo não hesitou. E pôs-se, só ele e suas severas ruminações, à caminho de Esmirna. Anoitecia e tudo seguia tranqüilo. Quando muito, o vento repassava sobre os olivais. Dentre em pouco se transporia a quinta colina, e Esmirna surgiria, com sua acrópole calcinada ao sol-posto, assentada sobre o Pagos.

Mas eis que de repente, uma enorme algazarra se ouviu por detrás de uma toiceira. Ao se voltar, o reputado filósofo viu-se diante de um enorme leão. Porém, convicto de sua idéia, sem nada temer, disse o filósofo ao leão:

-És uma mentira, oh besta. Uma ficção.

E a besta comeu o filósofo.


Nota - Engana-se, no entanto, quem pensa que a fábula acaba aqui. Na verdade, o leão era o último de sua espécie ali pelos cafundós de Esmirna. E, por acaso, morreu de indigestão, pois a carne do filósofo estava longe de ser tenra. O fato é que nunca se encontrou a carcaça do leão. E, logo, os restos do filósofo. Resultado: os mesmos partidários do drástico envio do homem sábio à experimentação empírica foram os mesmos que o tomaram como legenda, assumindo o próprio nome dele em reverência: Derridatos. Eles começaram a crer que, a meio-caminho, Derridatos – desde então nunca mais visto – por sua obstinação e coragem, fora desconstruído, como forma contingente e imperfeita, e incorporado ao próprio cânon da idéia.


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