sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Bíblia e Literatura


José e Seus Irmãos, Genesis 45:2-3


Toda a literatura está na Bíblia, mas a Bíblia vai mais além de toda literatura



Tudo que segue abaixo é um tanto a continuação de uma conversa em um café, próximo ao Ideal Clube, domingo passado:

Há um agudo artigo do crítico britânico James Wood em que ele argumenta que a excelência de estilo achada na literatura em língua inglesa, nos últimos cinco séculos, toda ela radica na clássica tradução para o inglês da Bíblia, a propalada King James Version [ou Versão do Rei Jaime]. Seu argumento, extremamente bem conduzido e sedutor, nos informa que isso se dá sobretudo pela musicalidade do texto nesta versão. A versão foi elaborada por um comissão de lingüistas, scholars e clérigos eruditos mais ou menos à mesma época de Shakespeare (início do sec. XVII). Embora, por vezes, limitando-se a revisar e fazer pequenas modificações a partir de duas traduções prévias, feitas no século anterior.

O argumento é bom. Mas é também incompleto. Para ser completo seria necessário dizer por igual: toda a alta literatura (no Ocidente) radica na Bíblia, mas a Bíblia não está contida nessa literatura. Ou seja, é maior do que ela. Vaza para o mundo por todos os poros. A diferença é esta. Enquanto a literatura por mais referencial que seja, por mais concreta, sempre está aprisionada dentro do jogo estético – e logo, não poreja integralmente para realidade como indicação de conduta ou esteio moral – cada sentença sagrada é ao mesmo tempo jogo estético, mundo e muito mais do que as vãs palavras podem traduzir. É a realização total do que o cinema realista só obtêm (e só obterá por mais esmerado que seja) em parte: “revelar o invisível sem violar a visibilidade das coisas”.

Eis dois exemplos de espelho – e se fôssemos listar mais faltaria espaço neste blogue – entre Bíblia e (alta) literatura:

1.

For all our days are passed away in thy wrath: we spend our years as a tale that is told”.

Pois todos os nossos dias se vão sob vossa ira: gastamos nossos dias como se conta uma história”.

[Salmo 90, v.7, na edição da clássica tradução da bíblia para o inglês, conhecida como King James Version].


(Life is) “a tale / told by an idiot, full of sound and fury, / signifying nothing.”

(A vida é) “uma história/ contada por um idiota, cheio de som e fúria/ significando nada”.

[Shakespeare, solilóquio final de MacBeth]


2.

In the morning it flourisheth, and groweth up; in the evening it is cut down, and withereth”

Na manhã tenra, floresce, e desponta; à noite é cortada fora e fenece”.

[Salmo 90, v. 6, King James Version]


Para algo análogo a esta passagem, o poema “Grama Cortada” de Philip Larkin, AQUI. Notem que Larkin, um poeta expressamente leigo costumava dizer que a litania cristã parecia "um brocado carcomido pelas traças". E, no entanto, ele empresta da bíblia do mesmo modo que um escritor cristão. É difícil esquivar-se da cultura à qual se pertence com a pressa que se imagina.



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