domingo, 11 de janeiro de 2009

'Gazua' e 'Oitenta' em Francês


[s/i/c]



O ego é Menor do que Palavras


Certa feita, conversando com uma amiga, filha de brasileiros nascida em Paris, que passou boa parte de sua infância e adolescência na França, lhe disse que achava estranho que não houvesse “oitenta” [“octante”, os belgas (valões) usam, e os franceses zombam deles também por isso] mas quatre-vingt. Quer dizer, "quatro-vinte", quatro vezes vinte. [Os franceses tem um inato talento para complicar coisas]. Oitenta e sete em francês é algo como "quatro-vinte e sete", em português. E aí, depois de mordiscar o lábio por fração de segundo, ela soergueu a sobrancelha sobre os olhos castanhos-claros e disse em surpresa:

–Ah, é mesmo: quatre-vingt é quatro vezes vinte! Que legal!

Ora, essa amiga é uma mulher de extrema sensibilidade e inteligência. O que ocorre, é que ela, em parte é parisiense, e o ponto, na anedota, é que, às vezes, estamos tão próximos das coisas, que não conseguimos analisá-las, criticá-las [crítica quer dizer quebra: quebrar o todo em pedaços para analisá-lo melhor, por partes. E depois remontá-lo. Mais ou menos como um mecânico sabia desmontar e montar um motor, de olhos fechados, pelo menos antes do advento da tecnologia digital. Naturalmente só conseguimos achar as partes no todo, se temos do todo certo distanciamento e perspectiva. Os mecânicos tinham essa visão de perspectiva até um tempo atrás. Mas não é improvável que daqui uns dias sigamos de um para outro lado do globo impulsionados por motores virtuais].

Quando escrevia o poema da postagem logo abaixo, por exemplo, tive de checar alguns termos. Entre eles, “gazua”, [que, por sinal já foi nome de uma bela revista de poesia editada, aqui em Fortaleza, por Eduardo Jorge Oliveira]. Vejamos como o Houaiss define o termo:

gazua
n. substantivo feminino
Diacronismo: antigo.
1 expedição, cruzada santa ou investida realizada por mouros contra seus inimigos
2 Derivação: por metonímia.
saque e depredações daí resultantes
[nota: grifos nossos]

Ora, reparem como a cultura se imbrica nas palavras: “cruzada santa” realizada pelos mouros.

Cruzada remete para “cruz”, o símbolo da cristandade. Como os mouros poderiam realizar uma...“cruzada”? Mas, no entanto, sequer se criou um termo como “crescentada” para referir o “crescente” [meia-lua que é o símbolo do islã]. Ou seja, eles, os mouros, nos combatiam empreendendo o tipo de guerra que nós empregávamos contra eles em nome de nosso Deus. Sequer nos demos ao trabalho de designar a empresa de guerra deles por um outro nome que não o nosso. Mas, quem sabe, o politicamente correto já esteja tratando disso também.

Ainda que adotássemos a expressão, digamos, “cescentada santa”, haveria vestígios de cristianismo no “santa”. Porque até onde sabemos, não há um patamar de santos na religião islâmica. “Santo” [sanctus] é um conceito cristão que originalmente designa alguém ou algo 'que tem caráter sagrado, augusto, venerando, inviolável, respeitável'.

Ora, tudo que você sabe sobre budismo, por exemplo, que não seja lido em sânscrito ou chinês, está impregnado de cristianismo. Por quê? Por um fato muito simples: teu ego é menor que a cultura em que nasceste. Do que as palavras que usas. É claro que é bastante mais acessível traduzir de qualquer uma das línguas européias ocidentais modernas – exceto talvez do basco e do finlandês – porque elas são muito próximas. Usam o mesmo alfabeto, etc. O que lhes legou essa proximidade foi uma pan-Europa unificada não para consumir, mas em nome de um idéia, de um ideal. A rigor, não existe algo como um “paraíso budista”, porque “paraíso” é uma palavra impregnada de cristianismo. Mesmo “budismo” foi um termo criado por padres jesuítas – os primeiros europeus a se fixarem no Oriente – para designar uma prática religiosa própria de lá. Os budistas devem se auto-denominar por outro nome, com outro sufixo. Certamente não este '-ismo' presente em todas as línguas européias via o latim de origem. Quanto à “paraíso” deve haver, quando muito, no budismo, um conceito aproximado, mas de raiz muito distinta, vaga para nós, com som distinto, distinta grafia, alfabeto, implicações distintas... É como querer que um poeta inglês escreva algo como “Canção do Exílio”. Seria impossível, a terra deles não tem palmeiras, nem sabiás, a cultura deles não sugere o despertar dessa sentimentalidade e dessa sensualidade presentes no poema de Gonçalves Dias.






Nota – 'nirvana', que vem do sânscrito, parece querer implicar originalmente 'explosão; extinção, desaparecimento'; 'paraíso', que vem do latim [via grego 'paradeisos'] quer dizer “jardim próximo á casa”. Não há equivalência. Em termos teológicos, o primeiro é um estado de espírito. O segundo indica uma condição essencial e sempiterna. E, em outro modo, como vocês sabem, ainda mais esdrúxulo que o oitenta, é o noventa em francês: "quatrovintedez". Mas tem gente que gosta de se pronunciar fazendo jus ao provérbio. Na base do oito ou quatrovinte.

4 comentários:

  1. só uma pequena observação: gazua significa "chave-mestra" ou "chave-falsa". "gázua", assim com acento é que significa a tal "cruzada" moura, se é que isso existe.

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  2. obrigado pela observação, monsieur anônimo!

    ressalvo q., no verbete citado a cima, taquei um controlv + controlc e transpus ipsis-literis o verbete do Houaiss Eletrônico. se o q. v. diz é o correto, seria bom escrever para a equipe do dicionário questionando o verbete.

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  3. o dicionário que consultei foi o Aurélio.

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  4. bem a versão eletrônica do 'aurélio' q. possuoa dá

    'gazua' sem acento como variante de 'gázua' com acento. ou seja, se a sua fonte é esta, então, seu argumento de reivindicar a exclusividade da acepção de 'incursão militar moura' para 'gázua' não se fundamenta.

    a definição no 'aurélio' para 'gázua' ou 'gazua' é: "expedição de árabes contra tribo inimiga; razia". a palavra 'razia', aliás, q. passou para o ocidente, via francês, tem sua raiz justamente em 'gazua'.

    abs.

    ruy

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