sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Que escrita não é artifício?


Germaine Riquier, Chess Board, 1959



Ainda do realismo que se confunde com naturalismo


Daí que de fato se pode questionar o porquê de alguém ser chamado de “realista” hoje em dia equivaler a um xingamento. Será que é tão-só pelo fato de Barthes haver apontado que o realismo baseia-se em determinadas convenções? Haver “desmontado” toda a lógica do realismo? E decretado que ela era, na verdade, um grande somatório de artifícios e convenções?

Ora, no afã de desmontá-la, Barthes apenas fez uso de outras tantas convenções. E estas, talvez, menos graciosas que a do, digamos, “realismo clássico” da ficção no Ocidente. Algo que segue de meados do sec. XIX até as primeiras décadas do sec. XX e nos deu escritores como Balzac, Flaubert, Dostoiévski, Machado de Assis e Henry James. Não é pouco. Tolos eles ainda são lidos avidamente na academia e fora dela. Por outro lado, quem hoje ainda lê Robbe-Grillet ou os outros expoentes do noveau-roman, tão incensados por Barthes como modelos de uma nova prosa, a não ser como curiosidades quase arqueológicas? Aqui, de fato, se produziu um processo de "morte do autor". Mas por razões inteiramente contrárias às propostas por Barthes.

De fato, o que mais incomoda hoje em dia é essa tendência de o escritor ter de “roubar” as verdades de seus leitores. De infundir nele alienação. De escrever para demonstrar, simultaneamente, ao leitor, que “está escrevendo”. Ou que sua escritura deriva apenas de uma precedente. E que toda escrita é apenas um artifício. Soa um pouco tola essa pretensão. Que escrita não é artifício? Acaso se pode dar a ver ao leitor a mesma paisagem pela qual se passou, as mesmas linhas do corpo da mulher que se amou? Ou tudo não é repassado em convenções e artifícios? Por realismo, aqui, também entenda-se experiências fruídas em primeira mão e não conhecimento adquirido em livros e ensaios.

A amplitude e a novidade de um crítico como James Wood se move, acima de tudo, por reestimar uma arte que está se lixando para os esquemas “meta”. Do contrário, ele crê que uma das maiores virtudes de um livro é criar um mundo factível o suficiente para receber o crédito do leitor.

Em tempo, algo extremamente difícil de achar hoje em dia



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A poesia tem de ser um pouco estúpida


Andrei Tarkovski, Andrey Rublev, 1966



Excurso sobre cinema como meio ou fim



Os cineastas para os quais o cinema não é mais que um meio assomam mais coerentes em seus planos diante daqueles para quem o cinema é um fim. É o caso de Bresson, Ozu, Rohmer, Tarkovski ou Kiarostami, por exemplo. Rohmer é um bocado desdenhoso diante do grau de contemporaneidade que reivindica seus filmes. Ele sempre os tempera de uma dialética muito refinada em relação à questão de atualidade, da “modernidade” atribuída a eles. Para Rohmer, quanto mais clássico, mais atual. Ele parece pressentir que há uma arte que não envelhece, porque se dirige às essências. Nada mais distante do “interpretacionismo” pseudo-científico de um autor como Deleuze. O que mais compraz Deleuze não é o cinema como anotação do real. Deleuze vê o cinema como uma ilustração da filosofia – o que soa equívoco. Ele não tem propriamente uma teoria do cinema, mas algumas avulsas sugestões a se filtrar. Mas se o cinema, como quer Deleuze, fosse unicamente filosofia ou história, filósofos e historiadores realizariam filmes em vez de escrever livros e proferir seminários. Ou os cineastas não teriam a chispa de poesia que encontramos num Tarkovski, por exemplo. No Tarkovski que nos diz, a propósito da elaborada (e filosófica) teoria da montagem em Einsenstein:
A idéia de um 'cinema de montagem' – de que a edição traz consigo dois conceitos e assim gera um terceiro – de novo me parece incompatível com a natureza do cinema. A arte não deve ter a interrelação de conceitos como seu objetivo último. A imagem está atada ao concreto e ao material, e, ainda assim, atinge por trilhas misteriosas as regiões além do espírito – talvez seja isso o que Pushkin implica ao dizer que a “poesia tem de ser um pouquinho estúpida”.
[Tarkovski, in Esculpir o Tempo]
Toda a leitura de cinema de Deleuze é calcada em uma reinterpretação forçada de categorias e registros do Bergson de Matéria e Memória (Matiére et Memoire). Se Bergson conhecesse o que Deleuze fez de sua teoria da “duração” (para graduá-la no sentido de uma leitura do cinema), ficaria bastante infeliz. Porque a acomodação dessas categorias e desses registros é forçada e equívoca. Não se pode transpor o que Bergson delicadamente ponderou – na linha tênue existente entre matéria e memória (que ainda reverencia a dualidade entre o ativo e o contemplativo) – para os esquemas mecanicistas de Deleuze. Não se pode pensar categorias que originalmente descrevem a vida mental para a descrição de processos de captação mecânica ou tecnológica presentes num aparelho chamado câmera. É como querer fundir sensibilidade e fotosensor.
A apropriação do pensamento de Bergson por Deleuze, ao contrário, do que ocorre em Benjamin ou Bazin, é um tanto vulgar e mecanicista. Mas, naturalmente é mais recente e, por isso, mais incensada. E, em especial, pelo fetiche gerado pela gana de Deleuze em forjar uma terminologia própria de designação dos fenômenos. Uma que se fecha sobre si mesma. Em escavar um subtexto profundamente digressivo e neo-terminologizado para se pôr no lugar de um discurso menos interpretativo e mais baseado no jogo entre o senso-comum e a intuição.
Ora, um artista sem intuição se reduz a um mau filósofo.



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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Urticária e literatura


Casa de Andalusia Farm, na Geórgia, onde viveu Flannery O'Connor



Em mim, ambas


I come from a family where the only emotion respectable to show is irritation. In some this tendency produces hives, in others literature, in me both.”


Flannery O'Connor


Venho de uma família em que a única emoção respeitável de se mostrar é irritação. Em alguns essa tendência produz urticária; em outros, literatura; em mim, ambas".






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Elementos para uma blogologia


R. Butler, Musée imaginaire, 1963




Sete fábulas sem cuspe sobre blogues


1. Trocar de pele

Quanto mais se muda a aparência de um blogue, mais se reforça sua descartabilidade. Mudar de pele com frequência equivale a envelhecer mais cedo. Ou então, educar os leitores para não tomar notícia de pequenas, reais variações. Dos detalhes, que são alma. Já que a cada dia eles se deparam com um aspecto diferente, como notar mudanças? Deixar de trocar de pele a cada dois dias seria a real mudança. Até pela deposição de mais ênfase nas palavras, no que segue expresso do que na “casca” geral da coisa. Mudar a aparência de um blogue, quase na freqüência com que se posta, nada tem a ver com mudança, mas com disfarce. É lançar mão da entropia visual para encobrir certa falta de agilidade mental.


2. Queimar livros em público, vimos esse filme antes

E falar no que segue expresso, há esses blogues que promovem verdadeiras queimas de arquivos. Ao se reiniciarem, negam ao leitor o que foi previamente publicado. Os arquivos anteriores, acumulados em meses, anos. A história, digamos assim, de si. Isso não é recomeço, senão culto à desmemória. É pagar qualquer possibilidade de uma leitura conjuntiva, histórica.


3. Congregar por antologia não é esmola

Há blogues que funcionam como antologias de outros blogues. E nisso pode haver mérito. Mas esse mérito não confere a esses antologistas qualquer prerrogativa moral, a não ser – quando for o caso – aquela do colecionador amoroso. Pois o legítimo colecionador está menos interessado em determinar suas escolhas por posições ideológicas fechadas, dogmáticas, sectárias. A graça soa ser o critério número um que norteia suas escolhas. Se de fato são escolhas amorosas. Se de fato provêm de colecionadores.


4. Vamos comprar briga?

Jorge Luis Borges discorre sobre a conversa entre amigos. Entre latinos essa conversa está longe de ser desinteressada e feliz, diz ele. Segue longe, aliás, de ser conversa. Rapidamente assume a forma sofista da disputa. Como se necessariamente tudo fosse disputável. É um tanto como se alguém exclamasse: “a luz da manhã é bela em Fortaleza”! E logo outro necessitasse afirmar: “mas a do fim da tarde é mais bonita”! Sem sequer abrir espaço ao primeiro para digredir sobre o matiz de luz da manhã. Falar de seu encanto. Do modo de senti-la, etc. Há, aqui, uma reatividade emocional que bloqueia qualquer reflexão mais austera e paciente. Mais matizada. Se é assim numa conversa entre amigos, calcule o que se passa nessas polêmicas altissonantes, onde há mais altissonância que argumento. Há blogues onde só se ouve altissonância.


5. O santo desconfia

Apreço pelo blogueiro que desconfia de si, ao entender que “quer” a felicidade de todos, do mundo. Ao modo de um arauto. O mundo anda um tanto cansado de “jardineiros da boa-vontade”, que se empenham em colher com a esquerda o que cultivam com a direita. Aqui, o velho ditado sobre esmolas grandes. Mas também a consciência da falta de espaço no inferno para as mais nobres intenções. As mais nobres intenções, afinal, não passam disso. São abstratas. Incapazes de mudar algo no quarteirão. Especialmente quando postas com recorrência num blogue que é, em essência, algo que recorre.


6. Quero mais confetes & royalties, please

Certo escritor famoso da língua portuguesa nos diz que, a cada vez, somos mais nossos defeitos que nossas qualidades. A frase, embora soe retórica, não parece de todo incorreta. A não ser num ponto: ele lamenta – e não apenas se dá conta – de que é assim. Afinal, somos o que repetimos. Precisamos mais de críticas sinceras e reparos que nos ajudem a afiar do que de elogios ocos, protocolares. Prêmios tolos que nos deixam com a crista ainda mais empinada. Isso de gente famosa em blogues remete para necessidade tática de ocupar espaço. Marqueteiros de editoras devem telefonar insistentemente para certos escritores: “– Olha, fulano de tal dobrou as vendas depois de criar um blogue. Por que você não faz o mesmo? Posso postar por você à razão de quinze por cento.”


7. Imagens sons, gente se debulhando em lágrimas

Mais e mais se põe imagens em movimento e sons nos blogues. E a palavra escrita se amesquinha diante deles. Numa entrevista, nos fins dos 60, em que surge ao lado da esposa, e esta discorre sobre um depoente que chora durante um documentário, Godard diz: “Não se põe pessoas chorando em documentários!” A ponderação é perfeita. Na TV, em quase qualquer reportagem de fundo mais passional – assassinatos, crimes em família, velórios, tribunais, cataclismos, apurações de votos para escolas de samba, recepções de prêmios ou medalhas, etc. – há uma deliberada intenção por parte do entrevistador de fazer o assunto chorar. São aqueles momentos em que a câmera fecha o quadro sobre o entrevistado se “emocionando”. Trocar de blogue como de canal ao se topar com um logro desses. Cessar de ver o filme. Aqui, a lembrança de um folclórico repórter fotográfico dum diário sensacionalista de São Paulo que, segundo dizem, costumava recravar a faca no cadáver para conseguir sua “foto”. Em geral, assomam tão distintas as pessoas que sabem enfrentar situações de comoção sem se debulharem em lágrimas. Sem as conceder aos vampiros que querem embriagar-se delas para compensar-se da própria indigência emocional. Chorar é algo íntimo. Blogar, nem sempre. E o problema com boa parte da arte brasileira é o de adotar um ponto-de-vista semelhante ao do repórter fotográfico. E recravar a faca no cadáver. Do contrário, emoções mais fundas não se dão através de comoções públicas.



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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Quem ouve o que sai de outro lábio?


Alfredo Chighine, Composizione con palma, 1960



Salmo-Soneto escrito num Domingo de Carnaval Chuvoso



Os dias se consomem feito fumaça,

O pulso sem seiva, erva no estio,

Pardal avulso nas telhas vigio

Os inimigos tramarem a desgraça.

A sombra, mesmo à tarde, se esgarça;

Quem ouve o que sai de outro lábio:

Queixa do justo, choro do sábio,

Toda justa palavra jogada à traça?

Tudo que escrevo se toma à troça,

São cinzas o fermento para o pão

E de pranto o tempero no copo.

O que ajuntei no tempo me roça

O rosto, fumaça que molha aflição

Na terra breve por onde galopo.



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terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Paz, sossego e jazz


[s/i/c]



Enquetes Gêmeas


Fortaleza já consegue oferecer um bom carnaval? [Diário do Nordeste]

Você acredita que a Capital está mais movimentada neste Carnaval? [O Povo]

Em geral, enquetes são para se ignorar. Mas pode-se sentir em ambas o desejo de vestir o fortalezense de uma fantasia que nunca foi sua: a de folião. A indagação do Diário reveste-se de um tom de incontornável dever. Mas, por que Fortaleza teria a obrigação de oferecer o que nunca ofereceu: um bom Carnaval? Já a proposição de O Povo é particularmente ambígua: “mais movimentada”? Em relação a quê? Se for aos outros dias do ano, sem chance. Se for ao Carnaval que passou, quem vai lembrar? Quem gosta de Carnaval jamais o passa em Fortaleza.

Certo mesmo é que o “não” ganhou por margem larga em ambas. E por mais um ano quem se predispôs a fazer alguma coisa de diferente no Carnaval, saiu de Fortaleza. Mais de cem mil veículos deixaram a capital. Por que os poderes públicos têm de dar dinheiro para uma festa que beneficia apenas um punhado de gente que pinta a cara de preto e desfila na Domingos Olímpio, quase sempre debaixo de chuva? O mais tacanho foi, certa feita, comentar o desinteresse histórico do fortalezense pelo Carnaval com um especialista em políticas públicas e dele ouvir: “tradições se criam”.

É triste ouvir algo assim. Passa o recibo de prepotência, da má consciência histórica de nossos gestores culturais. Aliás, a palavra "gestor" já dá náusea. Enquanto isso, os que gostam de carnaval, de fato, chispam para Olinda, Aracati, Beberibe ou Camocim. Os que não gostam, mas estão desejosos de seguir para outros ares, têm a opção de ouvir boa música em Guaramiranga, no Festival de Jazz. E os que ficam em Fortaleza ao menos saboreiam a chance de colher um pouco menos de desassossego que nos outros dias do ano. A campanha da prefeitura, em consórcio com o governo do Estado, deveria ser: “paz, sossego e Jazz, sem Carnaval? venha para Fortaleza”. E tratar de policiar melhor ruas e avenidas nos quatro dias em que cidade fica deliciosamente mais tranquila e aberta á convivialidade.

E, melhor, quase sempre, como neste ano, debaixo de chuva. Com madrugadas raras, abaixo dos 23 graus de mínima.

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O vigário, o conto


Robert Colquhoun, The Fortune Teller, 1946



Máxima


Não creia no contador, creia no conto.

[D. H. Lawrence]




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Descrever, variar: Sontag


Catherine Yass, extrato de Invisible City, Northwest D6, 2001




Mesmo o que os olhos vêem



“It is only shallow people who do not judge by appearances. The mystery of the world is the visible, not the invisible.”
Oscar Wilde



"Só os superficiais não julgam pelas aparências. O mistério do mundo está no visível, não no invisível".




Talvez o que segue acima deva ser lido neste contexto, que, de resto, epigrafa:


i.
Interpretation in our own time, however, is even more complex. For the contemporary zeal for the project of interpretation is often prompted not by piety toward the troublesome text (which may conceal an aggression), but by an open aggressiveness, an overt contempt for appearances. The old style of interpretation was insistent, but respectful; it erected another meaning on top of the literal one. The modern style of interpretation excavates, and as it excavates, destroys; it digs “behind” the text, to find a sub-text which is the true one.
ii.
In most modern instances, interpretation amounts to the philistine refusal to leave the work of art alone. Real art has the capacity to make us nervous. By reducing the work of art to its content and then interpreting that, one tames the work of art. Interpretation makes art manageable, comformable.
iii.
It is always the case that interpretation of this type indicates a dissatisfaction (conscious or unconscious) with the work, a wish to replace it by something else.
iv.

What would criticism look like that would serve the work of art, not usurp its place? What is needed, first, is more attention to form in art.
v.
Ours is a culture based on excess, on overproduction; the result is a steady loss of sharpness in our sensory experience. […] What is important now is to recover our senses. We must learn to see more, to hear more, to feel more.
vi.
The task of criticism should be to show [...] what it is, rather than to interpret what it means.

Susan Sontag [Against Interpretation]

i.
A interpretação em nossos dias, porém, é ainda mais complexa. Pois o zelo contemporâneo pelo projeto da interpretação é com freqüência presidido não pela piedade dirigida a um texto perturbador (que pode cancelar uma agressão), mas por uma aberta agressividade, um descarado desprezo pelas aparências. O velho estilo de interpretação era insistente, mas respeitoso; ele eregia um novo significado sobre o significado literal. O estilo moderno de interpretação cava, e no que cava, destrói; ele escava “atrás” do texto, para achar um subtexto “verdadeiro”.
ii.
Em várias instâncias modernas, a interpretação equivale à recusa filistina de deixar a obra de arte só. A verdadeira arte tem o condão de nos enervar. Ao reduzirmos a obra de arte a seu conteúdo e à interpretação deste, a domesticamos. A interpretação torna a arte digerível, cosmética.
iii.
É sempre o caso que a interpretação desse tipo indica insatisfação (consciente ou não) diante da obra, desejo de substituí-la por qualquer outra coisa.
iv.
O que a crítica pode fazer no sentido de servir a obra de arte ao invés de usurpá-la? O que é necessário, primeiro: mais atenção à forma.
v.
A nossa cultura é baseada no excesso, na superprodução; o resultado é uma drástica perda de agudeza em nossa experiência sensorial. […] O que é, ora, importante: recobrar nossos sentidos. Necessitamos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais.
vi.
A tarefa da crítica devia ser a de mostrar […] o que é, ao invés de interpretar o que significa.

Susan Sontag [Contra a Interpretação]



Nota - de fato, toda a crítica que merece este nome se propõe uma descrição (das partes, do estilo, da linguagem, dos materias, etc.) ou uma glosa (variação/contraponto). Ambas as tarefas descrição e paráfrase são muito mais modestas do que a "interpretação". E, claro, visam a forma. Conteúdo (visto como algo separado de forma) e ninharia são um só. No entanto, mais de noventa por cento do que se entende por crítica aponta para conteúdo. "Analisa" ou "interpreta" conteúdo. E a noção de forma, tão estreita quanto a que os nossos professores de literatura nos repassam no secundário, nunca chega sequer a ser entendida pela vasta maioria, como a única que verdadeiramente educa e eleva. Assim, desde o início devíamos ser educados, por exemplo, não para interpretar um texto, mas para contraponteá-lo e descrevê-lo: dizê-lo com outras palavras, percorrer suas partes.


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Moisés, Moisés


Tim Mara, The Stage and Television Today, 1975




O sotaque do Senhor


Sob certa ótica, a televisão não deixa de ser um prodígio cultural. Pequeno milagre. São Paulo. Começo da década de noventa. Interior de um apartamento escassamente mobiliado. Bairro de Santa Cecília. Insônia. Um homem jovem assiste televisão para matar o tempo. O melhor que consegue é um filme bíblico dublado, na Rede Record:

Moisés, Moisés, diz a Faraó que farei cair tão espesso breu sobre a terra do Egito...”

Diz Jeová a Moisés... com um carregado sotaque nordestino.


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Lagartos, cobras & nenhuma psicanálise


Bill Watterson, c. 1997




Dos Nomes Feios - Ou não xingueis o próximo em baixa voz


Sim, durmi bem.

Hoje, amanheci com imensa vontade de dizer palavrões.



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Se a ênclise anda fora de moda, que dirá da mesóclise


[s/i/c]




Vou te ferrar, Gavião


Outro dia, proseando com amigos.

Alguém sugeriu que “Morena Clara” é um mau nome para uma loja de estilo ou grife de moda. Por supostamente ser racista.

Rá. É nada.

“É nada” era uma das senhas mais cultivadas por toda um círculo de amigos na década de 80. Havia os que diziam sua cota de “é nada” com certo acento odara-mascavo, como o Mimi Rocha. Sempre com alguma relutância, feito o Demétrius Câmara (uma hesitação que traía uma borra de dúvida, imaculada credulidade). O “é nada” do Moacir Chaves, o Manim, ejetava-se por um escracho quase sexual. Com erguer de sobrancelhas à Jack Nicholson e arregalada pausa de olhos escancarados, o do Rossé Sabadia. Ou então, com certa inflexão interiorana, aspereza falsa, longa e malina ênfase na vogal da primeira sílaba do "nada", o do Domingos Caetano.

O mais indizível "é nada" saía com um tiple ruidoso e pleno de graça dos lábios tenros de certa garota de cabelo à la page, que era, a despeito de "és" e de "nadas", a própria graça encarnada entre o verbo e o nome. Ai, ai... E tinha eu pouco mais que catorze anos de idade. Cirandas. Ah, como era grande aquela roda. Ah, como eram verdes aqueles vales, mesmo no estio. Ou naquela necessidade de aproximar Fortaleza e o fim-do-mundo.

"Ah!", essa interjeição tão prezada em letras de Dolores Duran! (Vocês estão vendo só, do jeito que eu fiquei - pausa à crooner - e que tudo ficou?).

Mas deixemos de tão relevantes considerações. Voltemos a nomes, escolhas. Há aqui mesmo em Fortaleza, prodígios do gênero. Uma coluna de culinária em um dos diários locais, por exemplo, se chama “Cozinharte”. E há uma loja de artigos moldados em ferro – luminárias, adereços, jarros suspensos, escadas em espiral, bancos para jardim – ali pras bandas de Salinas, que se chama: Ferrarte.

O slogan dessa última loja poderia ser, no mínimo: "porque eu quero Ferrarte". Pense. Se a ênclise anda fora de moda, que dirá da mesóclise.

Mesóclise hoje em dia: nem à trois.


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Se você pretende


[s/i/c]



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Aquela canção do Roberto

Nessas férias, entre outros, li Roberto Carlos em Detalhes, a biografia censurada de Roberto Carlos. Quer dizer, a biografia de Roberto Carlos censurada por Roberto Carlos. Sou um fã de carteirinha de Roberto Carlos. Quer dizer, de certo Roberto Carlos. O da entrefase 1965 (“Quero que vá tudo pro inferno”) a 1975 (“É Preciso Saber Viver”). Pode-se pegar no escuro qualquer disco dessa época, e ele terá em seus sulcos no mínimo três ou quatro canções absolutamente imprescindíveis. E que foram trilhas sonoras de uma toda vida brasileira e sob o sol. (De minha infância mais tenra: o que foi luxo! ). No serviço de auto-falantes, no rádio, nos discos, nas tertúlias, nos embalos de sábados e sextas. E até na igreja do domingo.
Mas também passei em revista um livro que já era para ter dado atenção há tempos: o Verdade Tropical, de Caetano Veloso.
O livro de Caetano é de uma verve muito própria. Pode-se discordar de carradas de coisas em Caetano. Uma caçamba delas, como sempre. Mas que crônica de época é Verdade Tropical! E como Veloso escreve bem! E não só letras de música feito “Cajuína”, “Trem das Cores”, “O Ciúme”. Como memorialismo de si inscrito num tempo há extremado acerto no livro de Veloso. É um livro muito preciso. E cívico.
De Roberto Carlos Braga, um aspecto que o autor de sua biografia não autorizada não atentou: ele é o poeta do "você". Ninguém tem mais canções com “você” no título do que Roberto. Ou quando não está no título, o “você” assoma no entrecho da letra. Ou no refrão. Mas sempre em destaque. Mesmo se no condicional. Bom, mas fico por aqui. Ouvindo as canções que você fez pra mim. Antes que você pretenda saber quem eu sou. Pois você não sabe. E pensa que a vida é feita de ilusão. Mas é preciso saber viver.
Me são caros. Ambos. Espero poder voltar a esses assuntos.

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sábado, 14 de fevereiro de 2009

Parataxe é mais que plano-sequência


Murillo, c. 1670




Treze “e's” reforçam agilidade e diligência em Rebeca

Nesta passagem do Gênesis [24, 16b-20], dá-se o instante em que o servo de Abraão acha a mulher que saíra na incumbência de escolher. Ou seja, a esposa para Isaac, filho de Seu Senhor, que deveria ser escolhida na terra de Naor. Ele roga ao Senhor que aquela que descer à fonte com seu cântaro e se predispuser a lhe dar de beber seja a escolhida. E logo a seguir vem Rebecca, prima de Isaac, a quem, após o servo achar “mui formosa à vista”, lhe dá de beber e à sua cáfila:
e desceu à fonte, e encheu o seu cântaro e subiu. Então o servo correu-lhe ao encontro, e disse: Peço-te, deixa-me beber um pouco de água do teu cântaro. E ela disse: Bebe, meu senhor. E apressou-se e abaixou o seu cântaro sobre a sua mão e deu-lhe de beber. E, acabando ela de lhe dar de beber, disse: tirarei também água para os teus camelos, até que acabem de beber. E apressou-se, e despejou o seu cântaro no bebedouro, e correu outra vez ao poço para tirar água, e tirou para todos os seus camelos.
O princípio da Parataxe é mais efetivo que o do plano sequência no cinema. Lima explicativos sintáticos (ou seja, planos de transição). Os e's tem a função de expressar a prontidão incansável da faina de Rebeca. Afinal, apenas um camelo bebe a bagatela de 25 galões de água. E estamos diante de dez camelos. Quantas mulheres de classe-média no Brasil já fizeram um serviço braçal equivalente: dar de beber a dez camelos? E, entenda-se, Rebeca, aqui, não é classe-média, é praticamente uma princesa. É a filha de um patriarca que irá casar-se com o filho de um outro patriarca e dar nascimento ao povo eleito. Não menos. E o que dizer dessa linguagem bastante concisa – inclusive psicologicamente – tal como nos aponta Auerbach em sua clássica análise sobre a evolução da representação realista no Ocidente [Mimesis]?


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A lembrança dos feitos humanos


Capa da edição das Histórias, de 1972, Penguin Books



Heródoto, o elegista

Como não se atribui a Heródoto -- o digressivo amante da anedota e do gossip, o etnógrafo, o explorador de culturas remotas, o peregrino do mundo antigo, narrador cheio de verve e bom-humor, o homem que bem sabia o quanto os bastidores de alcova incidem sobre a grande política – também a dimensão do elegista?

Dimensão, de resto tão bem expressa no prólogo de sua obra: “esperança de assim preservar da decadência a lembrança dos feitos humanos”.



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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Em sombras compondo chamas: Ponge


[s/i/c]



resenha
Rosa, véu e uma partida de coisas

Francis Ponge – o objeto em jogo, de Leda Tenório da Motta, Iluminuras-Fapesp, 111 ps.
5 ensaios breves sobre a obra de Francis Ponge junto com 7 traduções de poemas

A primeira ocasião em que Borges foi posto em inglês, o editor da revista, manifestamente desavisado, apôs o conto – tratava-se de um conto – na seção de ensaios. Lábeis as fronteiras entre gêneros literários. Francis Ponge (1899-1988), que lia o Dicionário Littré como se fosse uma coleção de novelas, passeava, divertindo-se, por essa labilidade.

Em aprioridade para Ponge, nada de muita música e esse horror de ser classificado como poeta. “A verdadeira poesia não tem nada a ver com o que se encontra hoje nas coleções poéticas”, resmunga ele.

E o que Ponge diz da Filosofia? “Diria que a filosofia me parece vir da literatura, como um de seus gêneros... E que em matéria de gêneros, prefiro outros. Menos voluminosos. Menos tominosos. Pior do que isso, eles não tem nunca novas verdades sobre o seu homem, embora tenham revirado o tema de ponta a cabeça”.

Seus “poemas” apresentam-se como prosa, o mais das vezes (“proemas”). E ele próprio se reivindica, não sem certa insolência, artiste en prose. Ainda que nessa prose (ou seria melhor dizer nessa pose), na diagonal e com desvio, alexandrinos clássicos se encontrem, em disfarce, camuflados em meio a prosa corrente pela maestria de Ponge, assim como nos sambaquis grandes bancos de conchas, búzios e cascos de ostras são trincados e aboleados pela ação dos ventos e o fluxo das marés até formarem um bloco aparentemente uniforme.

Valéry assegurava que a perfeição e a simetria do búzio não será atingida nunca pela mais precisa mão humana. Ponge compra um briga com isso. E, no entanto, ele não quer fazer melhor. Ele quer dizer o objeto. Só que ao dizer o búzio, a concha, o camarão, a fatia de carne, o pinho, molda coisas de um artificiosismo preciosista e humorado. Será mesmo possível “dizer o” ou tão-só “dizer do”? Ou o possível não é senão uma paráfrase que passa a anos luz de distância do objeto dito?

Nos cinco ensaios presentes em Francis Ponge – o objeto em jogo, Leda Tenório da Motta nos ficciona 'proêmios' à obra deste autor que é já hoje um clássico da poesia francesa. Prefácios às conchas, aos pinhos, à laranja, à chuva, ao musgo, ao camarão, ao seixo, à samambaia, a toda uma partida de coisas. A uma gana de expressão. Voragem pelo dizer. E prefácios, em si, de uma expressão que não sonega um refinado humor: “não há cubos nem em Ponge nem no cubismo”; “o rosa em questão é de uma tonalidade que lhe sugere, num primeiro momento, ‘marotice’, porque lembra a perna das mulheres árabes que se velam... mas deixam a ver o tornozelo. Rosa maroto, pois”.

Pode-se pressentir que o partido das coisas é também o da dificuldade ou o da impossibilidade de traduzi-las; que Ponge entusiasmou-se mais com Braque que com os surrealistas; que o descritivismo pongiano é o “desafio de um amante posto à prova”; que idéias são epifenômenos e causam fastio; que a tradição não deve passar por cima dos objetos; que Ponge se expande por silepses de desconcertante duplo pertencimento; que, como em Borges, há a felicidade de uma biblioteca legada pelo pai; que há um automatismo, aliás, análogo ao dos filmes de Bresson – que nada tem de surreal; que há algo de proverbial e arcaizante em Ponge – e justo por ele conhecer e reciclar magistralmente a tradição das letras francesas (em especial, o classicismo do sec. XVII).

Em Francis Ponge – o objeto em jogo, como no famoso verso de Camões, “transforma-se o amador na coisa amada”. Ou seja, Leda expressa Ponge num português proverbial e, algo, arcaizado. Analogia e afinidade eletiva. Muito mais invenção que paráfrase. Mimo e sabor que há em termos e expressões como “airoso”; “que tais”, “descontentada”; “perolante”; “a horas tantas”; “céleres”; “deriva” (usados como substantivos).

Há teses e teses. E até se pode discordar de algumas. Por exemplo, a de que existe “uma extraordinária ausência de história” nos textos de Ponge. Em parte. Sob certo prisma. Em ironia. Mas a discutir. Pois mais avante, via de regra e por um formidável jogo de denegações, a própria Leda, nos informa que “tudo isso [ no caso, ‘a língua provençal dos trovadores da Aquitânia de Carlos Magno, do príncipe de Nerval’] está na história da Montpellier da infância do Ponge Occitão. No Languedoc francês – aliás evocado no poema ‘Le Platane’ (‘O Plátano’)”.

Mas qual a fronteira entre ficção e crítica? E o que quer fazer Leda senão investir contra qualquer esquematismo conceitual mais rígido nos alertar para esse impasse? O mundo não é muito mais que um léxico. Ah, essa imprescindível serventia dos dicionários!

Machado de Assis nos diz no Quincas Borba que “quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de idéias e de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra”.

Francis Ponge não concordaria exatamente com estas palavras que, de certa forma, tão bem descrevem sua tarefa. Tarefa, de resto, siléptica, descritiva, semelhante a de João Cabral – que, aliás, lhe dedicou um poema. Mas qualquer tipo de leitura se faz densa exatamente por meios defeituosos e contradições tão aparentes (como o rosa maroto no tornozelo das mulheres árabes) quanto veladas (como o restante de seus corpos). E é por isso que os ensaios presentes nesse pequeno volume de crítica, também poderiam, por sua graça airosa, marota – e sem nenhum demérito de sua inata qualidade acadêmica figurar, mesmo aos olhos de um leitor medianamente familiarizado com as traquinagens do autor de O Partido das Coisas, em uma seção de contos.






Nota - há uma tradução de um poema de Francis Ponge Aqui.

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terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A história precedida


[s/i/c]



Outra noite para Rubem Braga


Há esse avião voando numa noite etérea. Voando em placidez, acima de colchões de nuvens sob um luar de filme. Ainda um turbo-hélice. Provavelmente com o logo da Pan-Air na fuselagem. O percurso é de São Paulo para o Rio. E, em uma das vigias, o rosto de um jornalista extático diante da paisagem de uma noite de sonho, acima das nuvens. Cofiando bigodes em perfeita satisfação. Metido consigo mesmo e com a beleza do mundo.

Uma vez em terra firme, ele desembarca. A noite é chuvosa e lamacenta. Inteiro o inverso da outra noite: superior, luminosa – só alcançável, agora, pela alça da memória. De volta para casa, o jornalista de bigodes e basto cabelo apartado ao meio, diz ao taxista do contraste entre as noites. Entre aquelas duas noites sobre um mesmo mundo. Sobre a mesma cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Uma branca, límpida, ao luar, lá acima. Outra escura e enlameada nas ruas debaixo. E o rumor dos pneus do carro resvalando sobre o asfalto úmido.

O taxista, acompanhando a verve do jornalista. Se põem a sonhar com essa outra noite. Devaneio. Será que existiria mesmo uma outra noite assim? E, ao final, da corrida agradece-lhe, por essa perspectiva – que nem remotamente lhe ocorrera existir, quando só se pensa no aluguel, na caderneta da mercearia, na vida que se tem de ganhar. E agradece-lhe com ênfase. Meio como se o outro a houvesse presenteado. Meio como se o outro lhe houvesse ganho o dia através da descrição daquela outra noite, acima.

Assim é o enredo de uma crônica de Rubem Braga. Me lembro exatamente a primeira ocasião em que a li. Foi em 1975, e eu cursava a sexta série no Colégio General Osório, em Fortaleza. Ela estava em meu livro de Português. Portanto, há milhares de quilômetros e muitos anos de distância daquele registro. Daquela dupla noite sob um mesmo, agudo, olhar.

Passados vinte e seis anos, eu mesmo vivi essa crônica em uma visita ao Rio. Em coincidência, provindo de São Paulo, numa noite límpida, de quase lua plena, acima das nuvens. E lá abaixo – tão logo a aeronave transpôs a barreira de nuvens, e a baía surgiu com a cidade à margem e as montanhas ao fundo – uma segunda noite: lamacenta, aguada e respingando. Uma noite de catorze graus, das mais frias do ano, no Rio. Uma em que todas as minas do Leblon foram aos bares envoltas em pulôveres de gola roulé.

Dando tratos a bola, também pensei em outras colheitas. Como por exemplo, a demasiada necessidade de meus pares poetas de hoje em assuntar somente o desagradável, o sórdido, a escatologia. Será que só isso para falar? Será que neste mundo lamacento e cinza não sobrou sequer uma réstia daquela outra noite, luminosa, acima?

E, uma vez em terra firme, calado, dentro do táxi que me levava para Copacabana, os vidros cerrados sob água, pneus serrilhando o saibro úmido no asfalto, agradeci uma vez mais a Rubem Braga. Por propor-me uma utopia e uma viagem. Com vinte seis anos de antecedência.


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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Deixavam um pouco de suas mãos


George Bellows, Tennis Tournament, 1920



crônica
Chat


Não faz tanto tempo, mas a idéia de conversar na intenet ainda me parecia repelente. Já é árduo bastante conversar pessoalmente. Esticar ao telefone, só por boa conversa ou causa. Cada vez mais raras quando se passa dos quarenta. Mas possível traçar o itinerário que foi bater naquele chat.

Contou o interesse de muitos anos pelo tênis. O talento de Kuerten cimentando tudo. De início, me aborreceu que, noves fora, se conversasse tanto sobre o que não era tênis. E apenas uns poucos avos de toda a fração arengada fossem para os torneios em andamento no verão norte-americano. Gastava-se uma energia enorme só para fazer contato. E outras coisas foram se desvelando. Mas o chat quando muito ainda era sinônimo de chato.

Só aos poucos o caldo foi consistindo. Quando possível perceber que algumas pessoas não passavam. Deixavam um pouco de suas mãos naquelas palavras toscamente largadas sobre a tela luminosa. Largavam um pouco da suave entropia de suas próprias vidas. Do que nelas havia de sujo e luz. De abjeto. De santo.

Ao terceiro dia, completamente rendido aos encantos da conversa eletrônica, me peguei perguntando pelo tempo em Moscou e pela exata localização de um pequena cidade no Minnesotta.

Tive de explicar o significado do termo cabala para uma adolescente australiana. E enviar reportagem geral sobre clubes do futebol brasileiro para um apostador da Romênia.
E assim, comecei.

E vieram os primeiros a me reconhecer. Heidi, a dona de casa holandesa, foi a pioneira. Dave, o aposentado inglês, me disse que havia um cavalo, campeoníssimo do turfe na Inglaterra nos idos de 50, que se chamava Filho da Puta – assim mesmo, em português. E que ele próprio possuía uma foto de Filho da Puta na parede da sala de sua casa, em Bournemouth. Troquei imeios com Gabriela, a fã argentina de Guga que mora em Mendoza e estuda Direito. Lynn, a neozelandesa, possui um tipo de humor frenético e adolescente. E uma jovem dama de Changai me lançou um catálogo de perguntas sobre o Brasil. Lhe surpreendeu e agradou que já houvesse lido Li Bai, Du Fu e Wang Wei, os poetas chineses da dinastia T’Ang. Perto de dormir, certa feita, Lola, de Amsterdam, me cantou na íntegra a bela balada ‘Road Trippin’, dos Red Hot Chili Peppers. Pude ouvir sua voz. A inflexão dela ninando nos meus ouvidos aquela quieta pré-madrugada paulistana.

Havia uma hora que os adolescentes australianos, europeus e americanos se apropriavam da conversa. E era preciso ser hábil para não ferir suscetibilidades. Volta e meia, do modo mais inesperado, sob o pseudônimo de Bueno, um bósnio rasgava o chat ao meio com roldão de tornado e frases de exaltação aos adversários de Kuerten e de agressão contra este. Um polonês lançou mensagens racistas contra jogadores de futebol negros. A sordidez da vida também está presente nos chats.

Mas o melhor é seguir distinguindo as vozes. Quarta-feira e já estava completamente fisgado. Guillermo, o portenho, provocava, dizendo que o que ele podia pegar de bom do Brasil eram dois itens: o sabor da goiabada e el gran Senna. E lhe indaguei:
--E Kuerten?
--Sí, por supuesto. – respondeu.

Uma parte de minha própria rotina começou a passar por ali. E era importante recolher as impressões mais recentes. Havia o jovem americano que recém se profissionalizara e, cheio de receios, seguia para seu primeiro torneio, em Los Angeles. Inseguro e a quem ninguém rendeu muita atenção. E não há nada a indicar que ele não venha a se tornar um novo Agassi.

Havia a cautela dos orientais. E uma enorme suplementaridade de fusos horários. Os europeus gastavam muito tempo com protocolos e cumprimentos: saudações, adeuses. Os americanos – do sul ou do norte, latinos ou saxônicos – iam mais direto ao ponto.

Maravilhado, via o mundo desfiar-se por uma pequena janela dentro da já pequena tela de cristal líquido de meu notebook. E até esquecia de abrir a janela de verdade e espiar o mundo lá fora. Com olhos de terceiro andar. Ou ouvir o vento de agosto trepidando nos caixilhos. Plugava-me ao chat logo após escovar os dentes. Tomava café chatiando. Batendo um papo eletrônico. O chat era o meu próprio e intransferível aleph. Aprendi mais alguns segundos de tênis. Alguns segundos de mundo. Recebi cartas, postais, fotos. Fiz amigos, desafetos. Fiz até amores.

Tudo virtual.

Eta vida besta.


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domingo, 8 de fevereiro de 2009

Barcos, piladeiras, carrosséis, acrobatas

[s/i/c]



crônica


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Uma prenda amazônica

Há uma palmeira amazônica que se chama meriti. É o mesmo buriti, de tão famoso doce, no Nordeste. Mas, e nem é do doce que pretendo falar. Mas de brinquedos. Brinquedos artesanais. Verdadeiras fantasias feitas com a levíssima madeira desse meriti, como chamam os amazônicos. Pequenas cobras articuladas, barcos, piladeiras, carrosséis, acrobatas. Formas assimétricas, nada industriais. E, por isso mesmo, dessimetricamente medidas e quase perfeitas.
A consistência da madeira do meriti é tão leve que semelha isopor. E qualquer vento brando pode deslocar as peças que se põem à prateleira.
Sobre a minha própria mesa de trabalho, tenho um pequeno barco de meiriti. E ele é uma perfeição. A chaminé e o tirante sobre a coberta são nitidamente em escala maior que o resto da peça. Assim como leme e área do casco são nitidamente menores. Desproporcionais, como assim os concebeu a mão única e o olhar que o fez. Sob a coberta há uma zona rotunda e fechada à popa. Segue-se, então uma delicada amurada que vai até o início do anguloso “v” que enforma a proa. O casco está repintado de um azul esverdeado. Há um friso marrom escuro, em alto relevo. Acima do friso, as laterais se cobrem de um denso verde. A rotunda da popa, graciosamente alta, é de um branco lavado, assim como o “v” da proa. A coberta, à exceção da chaminé e do tirante, é de um vermelho sangüíneo. Um cromatismo de perfeições. E naturalmente ninguém deu lições da versatilidade das cores a quem o fez.
A este tipo de barco amazônico chamam de popopô. Clara onomatopéia que reproduz tão concisamente os trancos do sacolejante motor diesel que o propulsiona em meio a rios e igarapés.
Ganhei meu popopô de uma grande amiga. Uma colega tão talentosa quanto temperamental. Dotada daquele humor hiperbólico, tão comum nas gentes do Norte. E, ainda por cima, misture-se isso tudo com sangue judeu. E até me lembro de andarmos meio estremecidos quando ela, voltando de uma viagem a Belém, me trouxe o cobiçado barquinho que eu lhe havia encomendado. Por conta desse mal-estar passei algum tempo sem aparecer em casa dessa amiga. E, bem depois, soube que, nesse ínterim, o barco foi cobiçado por toda uma claque de paulistas loucos para se apossarem de minha prenda. Mas ela, não obstante a cisma, fez questão de reservá-lo para mim.
Lembro que em Camocim, onde nasci, havia um senso constante de travessia. A travessia para o lado de lá da barra do Rio Coreaú – antigo Rio da Cruz ou Camucim, por onde Vieira desambarcou no rumo das missões jesuíticas da Ibiapaba, quatro séculos se vão. A travessia para margem leste, oposto à da cidade. E àquela região de alvas dunas e denso manguezal se chamava genericamente: o Outro Lado. Como fosse o outro lado do mundo ou do universo. E eu bem sabia que era. Quem habitava o Outro Lado, à época, eram matutos que viviam isolados e vez por outra vinham para “a rua” comerciar ou visitar compadres:
– Aquele mercado de Camocim é o lugar mais bonito do mundo – me confidenciou um deles, em deslumbramento sincero. Concordei com ele com um aceno de cabeça. Isso foi anos depois, quando, infelizmente, eu já era bem menos um camocinense, e fui por lá atrás de escrever uma espécie de reportagem [que depois virou documentário]. E, vejam, já nem achava o mercado o lugar mais fascinante da terra. E até muita televisão já tinha chegado – e com força – no Outro Lado.
O popopô de Camocim – não o chamávamos assim – era o “barco da prefeitura”. E todo um escambo se dava por meio dele. Sisal, galinhas, sal, surrões de feijão, arroz, farinha d'água; batata-doce, milho, melancias. Até porcos e cabritos. E cumpria lá suas vezes de ferryboat. Hoje há pelo menos duas balsas que transportam jipes de tração e até veículos mais pesados.
Mas antes de tudo isso, havia só um certo pescador. Seu nome era Piluca. Traços índios, pele encrostada pelo sol, magro e de porte elegante. O chapéu de palha puída sempre preso ao queixo por um cordame de tucum. Bastante velho. Parecia sair de uma tela de Raimundo Cela. Morava numa pequena casa de fachada azul e ibérica, na cidade – e não na colônia, à Praia das Pedrinhas. Era ele quem fazia as vezes do barco da prefeitura, quando barco da prefeitura ainda não havia.
Saía de madrugada, dia após dia. Fazendo-se ao mar dos ancoradouros junto aos pequenos cais, abertos em vãos, na balaustrada sobre o paredão que guarnecia a cidade das fortes marés de foz de rio. Os trapiches, molhes, a madrugada relentosa e fria. Um senso de dever.
Lembro que meu pai e meu avô tinham uma tácita reverência por esse homem. Uma reverência insinuada, discreta. Dessas que se podem medir por pequenas inflexões de uma voz que não modula fácil. Coisas dos cristãos-novos e açorianos de Camocim.
Seu Piluca morreu mais ou menos aos oitenta e cinco anos. Encontraram seu corpo junto à canoa, num lamaçal de mangue, no Outro Lado. O lado para o qual levou incontáveis gentes, bichos e coisas, ao longo de tantos anos. Como um Caronte. Seu corpo meio atolado na lama, na argila da qual se fez o próprio homem após um sopro. E foi lá, nessa lama, que o acharam, preliminarmente sepultado após uma última travessia.
Por essa época já havia o barco da prefeitura. Mas aquele homem nunca se aposentou. Nunca conheceu descanso. A madrugada sempre o viu partir, à mesma hora, mesmo sem relógio, a fazer a travessia. O senso de missão de homens assim assusta. Pode preencher o vão de uma vida.
Nisso foi o que pensei, quando minha amiga pronunciou pela primeira vez a palavra popopô. Em seu Piluca; no Barco da Prefeitura; na madrugada; nas praias limosas; no manguezal; nos sambaquis; nas alvas dunas; nos seixos do leito do rio sob a límpida água de depois, depois das chuvas, em junho; nos matutos do Outro Lado. E, embora ela viesse da Amazônia, eu do Nordeste, e nos encontrássemos pós-graduando em São Paulo, eu tinha a secreta dimensão do que significava aquela palavra tão logo a ouvi. E desejei a palavra para mim, concretamente, na forma de uma miniatura de barco.
Hoje, ainda está o popopô à bancada de trabalho. Se prossegue sua travessia, agradeço à generosidade de minha amiga. De verdade, nunca fomos mais tão próximos. A vida tem interesses vários. E São Paulo, não se duvide, é uma grande cidade de muitos rostos. E, claro, somos ambos inquietos o suficiente para buscar coisas diversas. Mas um fundo respeito calou em ambas as margens. Algo que pode, a qualquer momento, ser transposto por um brioso popopô. E o bem conformado, pequeno barco, à mesa de trabalho, parece indicar que as amizades, mesmo nos momentos atribulados, devem resguardar um tanto da levíssima textura do meriti.
Nota – crônica originalmente publicada em O Povo (2001) e na extinta revista eletrônica Nariz de Cera (2005)
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sábado, 7 de fevereiro de 2009

A garantia de posteridade: Niemeyer


[s/i/c] Detalhe do Edifício do Congresso Nacional


variedades
Niemeyer, o obelisco e além

Sobre Niemeyer, um comentário de Creeley quando visitou o Memorial da América Latina, que era mais o menos como: “ele deve gostar de plantas em vasos”. De fato, a impressão de Creeley é muito semelhante à de meu pai, quando, certa tarde levei-o até o Memorial para uma apreciação 'in loco' da arquitetura do mestre carioca: um desamor à primeira vista. Diante dos excessos de concreto, a ausência de plantas. Em especial, de árvores. De árvores frondosas, que se debruçassem sobre os edifícios, ou os precedessem em alameda ou alguma simetria ajardinada. Para armar um pára-sol ou quebrar um pouco com o plano que destaca, em excesso, a sinuosidade dos edifícios; e lançar sombras, outras curvas: prover a umidade do zimbro á noite.

70% da população de Brasília se opôs à construção do recente obelisco proposto por Niemeyer. A demonstração indica alguma maturidade da população. A arquitetura de Niemeyer tem algum mérito. E também problemas. Mas todos esses problema seguem cercados de uma virtude: ela esteve tão acerca do poder, em todas suas nuances, que está protegida para a posteridade.

É essa a sua grande virtude: a proteção para a posteridade. É a posteridade que nela encontrará uma beleza que alguns de nós não enxergamos, por idiossincrasias diversas. Porque para o presente, ela parece estar tão distante da árvore, da paisagem. Ela não conjuga-se com natureza. É claro que há a sensualidade curva das linhas, alguma citação do Aleijadinho, etc. As colunas de seus palácios de Brasília, que Joaquim Cardozo ajudou a calcular, são, hoje, clássicos da arquitetura moderna. Emblemas do Brasil.

Mas, no fim, qualquer edifício ou conjunto de edifícios que, neste país, consegue permanecer mais de cinqüenta anos de pé sem alterações significativas na sua estrutura básica (ou mesmo na paisagem de seu entorno), como a Esplanada dos Ministérios, torna-se mais belo.

O tempo empresta uma dignidade ímpar às construções mais estranhas. Como aquele mausoléu de família erguido quase à entrada de Pacoti, na Serra de Guaramiranga, que, por se estender a ambos os flancos da via, acaba estreitando a estrada. Há qualquer coisa de fantasmático ali. Um dia, Brasília se povoará dessa fantasmagoria. Mas isso é para quando não estivermos mais aqui. Para a geração dos netos de nossos netos.

A beleza que se divisa agora, será bem mais ampla no futuro. A transparente beleza dos palácios brasilienses. Como caixas de cristal vazadas de sol.

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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Bíblia e Botânica na Solene Madrugada em Estio


[s/i/c]


crônica

O Enigma de Gofer

Hoje de madrugada, esperando que caísse chuva para ficar ainda mais feliz, relia o Gênesis na King James Version – o monumento maior da prosa em inglês. Num determinado passo, estaquei. Trata-se do momento em que o Senhor repassa a Noé instruções de como construir uma arca:
"Make thee an ark of gopher wood; rooms shalt thou make in the ark, and shalt pitch it within and without with pitch".
[Gênesis, 6, 14]
Na tradução do português João Ferreira de Almeida, do sec. XVIII, a primeira feita a partir dos idiomas originais:
Faze para ti uma arca da madeira de gofer; farás compartimentos na arca e a betumarás por dentro e por fora com betume”.
Fiquei curioso para saber que árvore era essa: “gofer”. Consultei tudo que foi dicionário. A coisa mais próxima a que cheguei foi no Houaiss, que registra:
gofé: n substantivo masculino Rubrica: angiospermas. Regionalismo: São Tomé e Príncipe. m.q. musanga (Musanga cecropioides).

E, por seu turno:

mussanga: n substantivo feminino Rubrica: angiospermas. 1 design. comum às plantas do gên. Musanga, da fam. das cecropiáceas, que reúne duas spp., nativas de regiões tropicais da África e cultivadas como ornamentais 1.1 árvore que atinge mais de 20 m (Musanga cecropioides), da fam. das cecropiáceas, com raízes adventícias e copa larga, madeira leve e resistente, folhas grandes, suborbiculares, com até 15 lobos, flores dióicas e frutos sincárpicos, amarelo-esverdeados, doces, muito procurados pela fauna; gofé (STP), nesanga (ANG), oeduema.

Terá sido essa árvore, só conhecida onde há língua portuguesa como gofé, no pequeno arquipélago de São Tomé e Príncipe (e em Angola sob o nome de “nesanga”) a que forneceu a resistente madeira para a arca? Será possível que vivendo no país das árvores, que tem árvore até no nome, não haja um só pé de gofé aqui pela Aldeota?
Fosse Câmara Cascudo ainda vivo, tiraria minha dúvida rapidinho. Era só lhe passar um imeio. Mas não. Não é assim. O mestre potiguar morreu há 23 anos. E, se fosse vivo, provavelmente não faria uso das infovias... Embora, com certeza, me confirmaria na lata se gofé é gofer. Por outro hemisfério, a Terra Santa não fica em climas tropicais ou subtropicais. Como São Tomé e Príncipe ou Angola. É um pouco desértica, verdade. Mas às vezes até neva por lá... Será que a "gofé" de São Tomé é a "gofer" das Escrituras? Só vendo para crer...
São cinco para as quatro da madruga. Pensando melhor, ainda bem que a chuva ainda não chegou. Os serviços de meteorologia melhoraram de uns tempos para cá. Mas ainda não são confiáveis. E nada há que garanta que, uma vez começada, a chuva não se estenda por quarenta dias e quarenta noites. Seria o suficiente para cobrir, brincando, duas ou mais torres do Canal Dez. Não há estrelas no céu. Um galo cantou avulso num dos quintais, cada vez mais avulsos, da vizinhança. Os bem-te-vis ameaçam trilos desirmanados.
E ainda estou longe de decifrar em definitivo o enigma de gofer.

[05.02.09]
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