quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Descrever, variar: Sontag


Catherine Yass, extrato de Invisible City, Northwest D6, 2001




Mesmo o que os olhos vêem



“It is only shallow people who do not judge by appearances. The mystery of the world is the visible, not the invisible.”
Oscar Wilde



"Só os superficiais não julgam pelas aparências. O mistério do mundo está no visível, não no invisível".




Talvez o que segue acima deva ser lido neste contexto, que, de resto, epigrafa:


i.
Interpretation in our own time, however, is even more complex. For the contemporary zeal for the project of interpretation is often prompted not by piety toward the troublesome text (which may conceal an aggression), but by an open aggressiveness, an overt contempt for appearances. The old style of interpretation was insistent, but respectful; it erected another meaning on top of the literal one. The modern style of interpretation excavates, and as it excavates, destroys; it digs “behind” the text, to find a sub-text which is the true one.
ii.
In most modern instances, interpretation amounts to the philistine refusal to leave the work of art alone. Real art has the capacity to make us nervous. By reducing the work of art to its content and then interpreting that, one tames the work of art. Interpretation makes art manageable, comformable.
iii.
It is always the case that interpretation of this type indicates a dissatisfaction (conscious or unconscious) with the work, a wish to replace it by something else.
iv.

What would criticism look like that would serve the work of art, not usurp its place? What is needed, first, is more attention to form in art.
v.
Ours is a culture based on excess, on overproduction; the result is a steady loss of sharpness in our sensory experience. […] What is important now is to recover our senses. We must learn to see more, to hear more, to feel more.
vi.
The task of criticism should be to show [...] what it is, rather than to interpret what it means.

Susan Sontag [Against Interpretation]

i.
A interpretação em nossos dias, porém, é ainda mais complexa. Pois o zelo contemporâneo pelo projeto da interpretação é com freqüência presidido não pela piedade dirigida a um texto perturbador (que pode cancelar uma agressão), mas por uma aberta agressividade, um descarado desprezo pelas aparências. O velho estilo de interpretação era insistente, mas respeitoso; ele eregia um novo significado sobre o significado literal. O estilo moderno de interpretação cava, e no que cava, destrói; ele escava “atrás” do texto, para achar um subtexto “verdadeiro”.
ii.
Em várias instâncias modernas, a interpretação equivale à recusa filistina de deixar a obra de arte só. A verdadeira arte tem o condão de nos enervar. Ao reduzirmos a obra de arte a seu conteúdo e à interpretação deste, a domesticamos. A interpretação torna a arte digerível, cosmética.
iii.
É sempre o caso que a interpretação desse tipo indica insatisfação (consciente ou não) diante da obra, desejo de substituí-la por qualquer outra coisa.
iv.
O que a crítica pode fazer no sentido de servir a obra de arte ao invés de usurpá-la? O que é necessário, primeiro: mais atenção à forma.
v.
A nossa cultura é baseada no excesso, na superprodução; o resultado é uma drástica perda de agudeza em nossa experiência sensorial. […] O que é, ora, importante: recobrar nossos sentidos. Necessitamos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais.
vi.
A tarefa da crítica devia ser a de mostrar […] o que é, ao invés de interpretar o que significa.

Susan Sontag [Contra a Interpretação]



Nota - de fato, toda a crítica que merece este nome se propõe uma descrição (das partes, do estilo, da linguagem, dos materias, etc.) ou uma glosa (variação/contraponto). Ambas as tarefas descrição e paráfrase são muito mais modestas do que a "interpretação". E, claro, visam a forma. Conteúdo (visto como algo separado de forma) e ninharia são um só. No entanto, mais de noventa por cento do que se entende por crítica aponta para conteúdo. "Analisa" ou "interpreta" conteúdo. E a noção de forma, tão estreita quanto a que os nossos professores de literatura nos repassam no secundário, nunca chega sequer a ser entendida pela vasta maioria, como a única que verdadeiramente educa e eleva. Assim, desde o início devíamos ser educados, por exemplo, não para interpretar um texto, mas para contraponteá-lo e descrevê-lo: dizê-lo com outras palavras, percorrer suas partes.


* * *

2 comentários:

  1. Mrs. Sontag again! Adoro essa mulher e, sintonia ou não, ela está no Papel de Rascunho também.

    Beijocas saudosas, Ruy!

    ResponderExcluir
  2. Muito boas e pertinentes as observações de S.Sontag. Mas o problema maior parece estar, então, na separação entre a forma e o conteúdo. Essa compartimentalização é que seria a causa geracional desse monstrengo do conteudismo - que se acha "inteligente" - e de uma possibilidade de um formalismo estéril, que negaria, por sua vez, qualquer importância ao conteúdo, desde que a forma estivesse bem cuidada. A meu ver, o conteúdo sofre mais com essa separação, pois algo cuja forma é realmente bem trabalhada dificilmente não carrega, a reboque, um conteúdo - apenas não um conteúdo facilmente apreensível, ou processável.

    ResponderExcluir