quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Em sombras compondo chamas: Ponge


[s/i/c]



resenha
Rosa, véu e uma partida de coisas

Francis Ponge – o objeto em jogo, de Leda Tenório da Motta, Iluminuras-Fapesp, 111 ps.
5 ensaios breves sobre a obra de Francis Ponge junto com 7 traduções de poemas

A primeira ocasião em que Borges foi posto em inglês, o editor da revista, manifestamente desavisado, apôs o conto – tratava-se de um conto – na seção de ensaios. Lábeis as fronteiras entre gêneros literários. Francis Ponge (1899-1988), que lia o Dicionário Littré como se fosse uma coleção de novelas, passeava, divertindo-se, por essa labilidade.

Em aprioridade para Ponge, nada de muita música e esse horror de ser classificado como poeta. “A verdadeira poesia não tem nada a ver com o que se encontra hoje nas coleções poéticas”, resmunga ele.

E o que Ponge diz da Filosofia? “Diria que a filosofia me parece vir da literatura, como um de seus gêneros... E que em matéria de gêneros, prefiro outros. Menos voluminosos. Menos tominosos. Pior do que isso, eles não tem nunca novas verdades sobre o seu homem, embora tenham revirado o tema de ponta a cabeça”.

Seus “poemas” apresentam-se como prosa, o mais das vezes (“proemas”). E ele próprio se reivindica, não sem certa insolência, artiste en prose. Ainda que nessa prose (ou seria melhor dizer nessa pose), na diagonal e com desvio, alexandrinos clássicos se encontrem, em disfarce, camuflados em meio a prosa corrente pela maestria de Ponge, assim como nos sambaquis grandes bancos de conchas, búzios e cascos de ostras são trincados e aboleados pela ação dos ventos e o fluxo das marés até formarem um bloco aparentemente uniforme.

Valéry assegurava que a perfeição e a simetria do búzio não será atingida nunca pela mais precisa mão humana. Ponge compra um briga com isso. E, no entanto, ele não quer fazer melhor. Ele quer dizer o objeto. Só que ao dizer o búzio, a concha, o camarão, a fatia de carne, o pinho, molda coisas de um artificiosismo preciosista e humorado. Será mesmo possível “dizer o” ou tão-só “dizer do”? Ou o possível não é senão uma paráfrase que passa a anos luz de distância do objeto dito?

Nos cinco ensaios presentes em Francis Ponge – o objeto em jogo, Leda Tenório da Motta nos ficciona 'proêmios' à obra deste autor que é já hoje um clássico da poesia francesa. Prefácios às conchas, aos pinhos, à laranja, à chuva, ao musgo, ao camarão, ao seixo, à samambaia, a toda uma partida de coisas. A uma gana de expressão. Voragem pelo dizer. E prefácios, em si, de uma expressão que não sonega um refinado humor: “não há cubos nem em Ponge nem no cubismo”; “o rosa em questão é de uma tonalidade que lhe sugere, num primeiro momento, ‘marotice’, porque lembra a perna das mulheres árabes que se velam... mas deixam a ver o tornozelo. Rosa maroto, pois”.

Pode-se pressentir que o partido das coisas é também o da dificuldade ou o da impossibilidade de traduzi-las; que Ponge entusiasmou-se mais com Braque que com os surrealistas; que o descritivismo pongiano é o “desafio de um amante posto à prova”; que idéias são epifenômenos e causam fastio; que a tradição não deve passar por cima dos objetos; que Ponge se expande por silepses de desconcertante duplo pertencimento; que, como em Borges, há a felicidade de uma biblioteca legada pelo pai; que há um automatismo, aliás, análogo ao dos filmes de Bresson – que nada tem de surreal; que há algo de proverbial e arcaizante em Ponge – e justo por ele conhecer e reciclar magistralmente a tradição das letras francesas (em especial, o classicismo do sec. XVII).

Em Francis Ponge – o objeto em jogo, como no famoso verso de Camões, “transforma-se o amador na coisa amada”. Ou seja, Leda expressa Ponge num português proverbial e, algo, arcaizado. Analogia e afinidade eletiva. Muito mais invenção que paráfrase. Mimo e sabor que há em termos e expressões como “airoso”; “que tais”, “descontentada”; “perolante”; “a horas tantas”; “céleres”; “deriva” (usados como substantivos).

Há teses e teses. E até se pode discordar de algumas. Por exemplo, a de que existe “uma extraordinária ausência de história” nos textos de Ponge. Em parte. Sob certo prisma. Em ironia. Mas a discutir. Pois mais avante, via de regra e por um formidável jogo de denegações, a própria Leda, nos informa que “tudo isso [ no caso, ‘a língua provençal dos trovadores da Aquitânia de Carlos Magno, do príncipe de Nerval’] está na história da Montpellier da infância do Ponge Occitão. No Languedoc francês – aliás evocado no poema ‘Le Platane’ (‘O Plátano’)”.

Mas qual a fronteira entre ficção e crítica? E o que quer fazer Leda senão investir contra qualquer esquematismo conceitual mais rígido nos alertar para esse impasse? O mundo não é muito mais que um léxico. Ah, essa imprescindível serventia dos dicionários!

Machado de Assis nos diz no Quincas Borba que “quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de idéias e de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra”.

Francis Ponge não concordaria exatamente com estas palavras que, de certa forma, tão bem descrevem sua tarefa. Tarefa, de resto, siléptica, descritiva, semelhante a de João Cabral – que, aliás, lhe dedicou um poema. Mas qualquer tipo de leitura se faz densa exatamente por meios defeituosos e contradições tão aparentes (como o rosa maroto no tornozelo das mulheres árabes) quanto veladas (como o restante de seus corpos). E é por isso que os ensaios presentes nesse pequeno volume de crítica, também poderiam, por sua graça airosa, marota – e sem nenhum demérito de sua inata qualidade acadêmica figurar, mesmo aos olhos de um leitor medianamente familiarizado com as traquinagens do autor de O Partido das Coisas, em uma seção de contos.






Nota - há uma tradução de um poema de Francis Ponge Aqui.

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