segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Deixavam um pouco de suas mãos


George Bellows, Tennis Tournament, 1920



crônica
Chat


Não faz tanto tempo, mas a idéia de conversar na intenet ainda me parecia repelente. Já é árduo bastante conversar pessoalmente. Esticar ao telefone, só por boa conversa ou causa. Cada vez mais raras quando se passa dos quarenta. Mas possível traçar o itinerário que foi bater naquele chat.

Contou o interesse de muitos anos pelo tênis. O talento de Kuerten cimentando tudo. De início, me aborreceu que, noves fora, se conversasse tanto sobre o que não era tênis. E apenas uns poucos avos de toda a fração arengada fossem para os torneios em andamento no verão norte-americano. Gastava-se uma energia enorme só para fazer contato. E outras coisas foram se desvelando. Mas o chat quando muito ainda era sinônimo de chato.

Só aos poucos o caldo foi consistindo. Quando possível perceber que algumas pessoas não passavam. Deixavam um pouco de suas mãos naquelas palavras toscamente largadas sobre a tela luminosa. Largavam um pouco da suave entropia de suas próprias vidas. Do que nelas havia de sujo e luz. De abjeto. De santo.

Ao terceiro dia, completamente rendido aos encantos da conversa eletrônica, me peguei perguntando pelo tempo em Moscou e pela exata localização de um pequena cidade no Minnesotta.

Tive de explicar o significado do termo cabala para uma adolescente australiana. E enviar reportagem geral sobre clubes do futebol brasileiro para um apostador da Romênia.
E assim, comecei.

E vieram os primeiros a me reconhecer. Heidi, a dona de casa holandesa, foi a pioneira. Dave, o aposentado inglês, me disse que havia um cavalo, campeoníssimo do turfe na Inglaterra nos idos de 50, que se chamava Filho da Puta – assim mesmo, em português. E que ele próprio possuía uma foto de Filho da Puta na parede da sala de sua casa, em Bournemouth. Troquei imeios com Gabriela, a fã argentina de Guga que mora em Mendoza e estuda Direito. Lynn, a neozelandesa, possui um tipo de humor frenético e adolescente. E uma jovem dama de Changai me lançou um catálogo de perguntas sobre o Brasil. Lhe surpreendeu e agradou que já houvesse lido Li Bai, Du Fu e Wang Wei, os poetas chineses da dinastia T’Ang. Perto de dormir, certa feita, Lola, de Amsterdam, me cantou na íntegra a bela balada ‘Road Trippin’, dos Red Hot Chili Peppers. Pude ouvir sua voz. A inflexão dela ninando nos meus ouvidos aquela quieta pré-madrugada paulistana.

Havia uma hora que os adolescentes australianos, europeus e americanos se apropriavam da conversa. E era preciso ser hábil para não ferir suscetibilidades. Volta e meia, do modo mais inesperado, sob o pseudônimo de Bueno, um bósnio rasgava o chat ao meio com roldão de tornado e frases de exaltação aos adversários de Kuerten e de agressão contra este. Um polonês lançou mensagens racistas contra jogadores de futebol negros. A sordidez da vida também está presente nos chats.

Mas o melhor é seguir distinguindo as vozes. Quarta-feira e já estava completamente fisgado. Guillermo, o portenho, provocava, dizendo que o que ele podia pegar de bom do Brasil eram dois itens: o sabor da goiabada e el gran Senna. E lhe indaguei:
--E Kuerten?
--Sí, por supuesto. – respondeu.

Uma parte de minha própria rotina começou a passar por ali. E era importante recolher as impressões mais recentes. Havia o jovem americano que recém se profissionalizara e, cheio de receios, seguia para seu primeiro torneio, em Los Angeles. Inseguro e a quem ninguém rendeu muita atenção. E não há nada a indicar que ele não venha a se tornar um novo Agassi.

Havia a cautela dos orientais. E uma enorme suplementaridade de fusos horários. Os europeus gastavam muito tempo com protocolos e cumprimentos: saudações, adeuses. Os americanos – do sul ou do norte, latinos ou saxônicos – iam mais direto ao ponto.

Maravilhado, via o mundo desfiar-se por uma pequena janela dentro da já pequena tela de cristal líquido de meu notebook. E até esquecia de abrir a janela de verdade e espiar o mundo lá fora. Com olhos de terceiro andar. Ou ouvir o vento de agosto trepidando nos caixilhos. Plugava-me ao chat logo após escovar os dentes. Tomava café chatiando. Batendo um papo eletrônico. O chat era o meu próprio e intransferível aleph. Aprendi mais alguns segundos de tênis. Alguns segundos de mundo. Recebi cartas, postais, fotos. Fiz amigos, desafetos. Fiz até amores.

Tudo virtual.

Eta vida besta.


* * *

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