sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A poesia tem de ser um pouco estúpida


Andrei Tarkovski, Andrey Rublev, 1966



Excurso sobre cinema como meio ou fim



Os cineastas para os quais o cinema não é mais que um meio assomam mais coerentes em seus planos diante daqueles para quem o cinema é um fim. É o caso de Bresson, Ozu, Rohmer, Tarkovski ou Kiarostami, por exemplo. Rohmer é um bocado desdenhoso diante do grau de contemporaneidade que reivindica seus filmes. Ele sempre os tempera de uma dialética muito refinada em relação à questão de atualidade, da “modernidade” atribuída a eles. Para Rohmer, quanto mais clássico, mais atual. Ele parece pressentir que há uma arte que não envelhece, porque se dirige às essências. Nada mais distante do “interpretacionismo” pseudo-científico de um autor como Deleuze. O que mais compraz Deleuze não é o cinema como anotação do real. Deleuze vê o cinema como uma ilustração da filosofia – o que soa equívoco. Ele não tem propriamente uma teoria do cinema, mas algumas avulsas sugestões a se filtrar. Mas se o cinema, como quer Deleuze, fosse unicamente filosofia ou história, filósofos e historiadores realizariam filmes em vez de escrever livros e proferir seminários. Ou os cineastas não teriam a chispa de poesia que encontramos num Tarkovski, por exemplo. No Tarkovski que nos diz, a propósito da elaborada (e filosófica) teoria da montagem em Einsenstein:
A idéia de um 'cinema de montagem' – de que a edição traz consigo dois conceitos e assim gera um terceiro – de novo me parece incompatível com a natureza do cinema. A arte não deve ter a interrelação de conceitos como seu objetivo último. A imagem está atada ao concreto e ao material, e, ainda assim, atinge por trilhas misteriosas as regiões além do espírito – talvez seja isso o que Pushkin implica ao dizer que a “poesia tem de ser um pouquinho estúpida”.
[Tarkovski, in Esculpir o Tempo]
Toda a leitura de cinema de Deleuze é calcada em uma reinterpretação forçada de categorias e registros do Bergson de Matéria e Memória (Matiére et Memoire). Se Bergson conhecesse o que Deleuze fez de sua teoria da “duração” (para graduá-la no sentido de uma leitura do cinema), ficaria bastante infeliz. Porque a acomodação dessas categorias e desses registros é forçada e equívoca. Não se pode transpor o que Bergson delicadamente ponderou – na linha tênue existente entre matéria e memória (que ainda reverencia a dualidade entre o ativo e o contemplativo) – para os esquemas mecanicistas de Deleuze. Não se pode pensar categorias que originalmente descrevem a vida mental para a descrição de processos de captação mecânica ou tecnológica presentes num aparelho chamado câmera. É como querer fundir sensibilidade e fotosensor.
A apropriação do pensamento de Bergson por Deleuze, ao contrário, do que ocorre em Benjamin ou Bazin, é um tanto vulgar e mecanicista. Mas, naturalmente é mais recente e, por isso, mais incensada. E, em especial, pelo fetiche gerado pela gana de Deleuze em forjar uma terminologia própria de designação dos fenômenos. Uma que se fecha sobre si mesma. Em escavar um subtexto profundamente digressivo e neo-terminologizado para se pôr no lugar de um discurso menos interpretativo e mais baseado no jogo entre o senso-comum e a intuição.
Ora, um artista sem intuição se reduz a um mau filósofo.



* * *



Um comentário:

  1. Ora,

    eu discordo que Deleuze se apege a leitura de bergson, matéria e memória, para interpretar o cinema. Não creio que ele seja reducionista e mecanicista. Também nõ concordo com tudo que ele, Deleuze, escreveu (em o Anti-Édipo principalmente), porém esse é um ataque frontal do qual eu poderia defendê-lo. Mas lembrando que esse é apenas um bilhete, um parecer sobre quem já se foi. Pelo rizoma,

    Gustavo

    ps: se você quiser ser um cozinheiro, tem que entender de cinema e saber questionar, interpretar, etc.?

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