terça-feira, 17 de março de 2009

Forçar no espectador uma autoralidade a todo custo


Jan Veermer, Vista de Delft, 1661




A Ditatadura da Participação


Um dos problemas das novas teorias da arte é querer por força transformar o espectador em autor. O ponto aqui é muito simples. Há espetáculos em que não se tem a menor vontade de ser co-autor. Quando vou ao teatro ver uma peça de Shakespeare, por exemplo, me basta - e me basta muito - ser espectador. Do mesmo modo quando vejo um quadro de Veermer. Quando escuto em casa, nos fones de ouvido, a Missa em Si Menor de Bach, não sinto a menor vontade de modificar nada. De fazer nada. A não ser escutar. E não me sinto diminuído por isso. A beleza que sai dessa manifestação me alimenta. Da mesma forma, quando vou a um estádio, sinto-me plenamente realizado em assistir uma partida de futebol: por que deveria estar em campo, correndo atrás de uma bola e distribuindo botinadas? Espero não ser obrigado a isso, um dia (especialmente se o Ferroviário prosseguir ganhando do Ceará por 4x1).

Se todos fossem agentes não haveria espetáculo. Ou obra de arte. Mas uma barbárie inominável, uma ausência total de ordem. Uma espécie de anomia completa. E é necessária uma certa ordem para criar as coisas, para apresentá-las, para assisti-las. A noção de forma se baseia nisso. Daqui a muito pouco tempo, a posição mais subversiva será a do espectador. E por quê? Porque o espectador será aquele único, aquela exceção que incomoda e subverte. Simplesemente porque ele será o mais capaz de observar uma totalidade em que todos, a exceção dele, são agentes e, portanto e por imersão, muito mais acríticos de seus atos: não há outros, todos são artistas. Ora, não existe arte sem diferenças de percepção. O gozo que a arte propicia nem sempre é diretamente proporcional a capacidade de se "participar" (ao menos diretamente) de sua criação, execução, veiculação ou performance.

Contrariar a ditadura de uma arte impositivamente "interativa" deveria ser a bandeira de muitos artistas hoje em dia. Eles estariam na contramão de um discurso hegemônico que quer forçar a todos a participação.

Tenho certeza de que não saberia representar o Rei Lear. Ou tocar um cello numa suíte de Bach. Ou executar uma pincelada que acrescentasse o que quer que fosse a uma tela de Veermer. Ou somar um frame a um filme de Bresson. Ou ter um cinquenta avos da perícia de Ronaldinho Gaúcho com a bola nos pés. Ou acrescer meio verso a Os Lusíadas.

Há gente que se educou melhor ou teve e tem mais talento do que eu para fazer isso. Que dedicou sua vida a isso. Por que não posso desfrutar de minha condição de espectador. Ou fruir essas manifestações sem ter que "participar" delas como um agente expresso? Ao sair de um concerto onde ouvi Bach, saio com a sensação de que me humanizei mais, de que minha percepção dos sons foi alterada, que me foram ofertados novos prismas de beleza, novas possibilidades de ouvir o mundo lá fora. Não me sinto de nenhum modo passivo ou diminuído por espectar. Por que deveria? Espectar também é agir, envolver-se, humanizar-se. Somar nuances.

Em todos esses casos, creio, saio muito mais espiritualmente gratificado, do que supõe a fiolosofia vã de quem quer que eu esfregue meu rosto num pedaço de carne cru pendurado num gancho à parede de uma galeria de arte.





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Um comentário:

  1. contemplar e escutar são ações, exigem uma atividade e, concordo, são mais que suficientes para uma "participação" na obra em questão. esse texto me lembrou um autor espanhol que não leio há algum tempo, chamado Alfonso López Quintás, e o seu conceito de 'âmbito', derivado, acho, do fato de ele ter sido discípulo de Ortega y Gasset.

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