sexta-feira, 8 de maio de 2009

Uma frase de Marx, reminiscências & mesas dobráveis


[s/i/c]



Contrariando o autor de O Capital


Marx diz que “a humanidade apenas se propõe os problemas que é capaz de resolver”. Mas é impossível aferrar-se a esta frase com certo grau de convicção. Ou, no mínimo, deve-se entrevê-la com mui severas reservas.

Redimensões de escala são sempre importantes. Especialmente depois que o corpo não cresce mais, porque são mais sutis. No presente, mantenho em meu quarto uma mesa dobrável, dessas que se usam em bares. Certo dia, ao olhar para ela mais detidamente, percebi que, embora meu quarto, que também faz as vezes de estúdio, embora relativamente amplo e arejado, é bem menor do que eu julgava que fosse. Ou seja, que os bares e botecos são, em geral, ambientes mais dilatados do que se pensa. Para comportar algumas dezenas de mesas dobráveis como a que eu tenho ora diante dos olhos.

Mas então, a mesa me lembrou de um tempo que não estava diante dos olhos: como pode? Um tempo em que eu almoçava em um restaurante por quilo, no bairro da Pompéia em São Paulo.

O quilo era instalado em um antiga casa assobradada. E, como eu não conhecia ninguém, buscava os ambientes menos frequentados. Invariavelmente, seguia para os altos, em que os quartos talvez tivessem a área do meu quarto atual; e em que havia, usualmente, mesas vazias; e de onde era possível descortinar a Igreja de São João Vianey e a praça adjacente, com o tráfego deslizando pela Rua Coriolano.

Era possível, assim, escapar de um problema para o qual nunca encontrei uma solução. Um problema de comensalidade. De comer juntos à volta de uma mesa sem se conhecer. É claro que acontecia de, por vezes, alguém sentar á minha mesa. Ou de o restaurante estar tão cheio, que não avulsava mesa vazia e era necessário sentar-se à mesa com outros. Então você ficava ali, mastigando o seu feijão com arroz, seu torresminho e bife ao molho madeira diante de um desconhecido , em silêncio, fingindo paulistanamente que os outros eram uma camada de invisível, uma borra, vultos indistintos ou desfocados, que, quando muito, se entrolhavam de rabo de olho, apesar de ouvir os nhoque-nhoques dos lábios e línguas, ou aquele fricativação de ar limpando os dentes por aspiração. Ou ainda o modo como se depunha três dedos da mão ao modo de toldo, durante a palitação dos dentes.

Até hoje acho impertinente dirigir a palavra a alguém que não conheço numa situação assim ou em quase qualquer outra. A não ser que tenha algo verdadeiramente imprescindível a dizer. Tal como: “Veja, a cortina está pegando fogo!” Ou então: “quase não consigo olhar mais para nada que não seja seus olhos!”

Talvez porque ache o fim essas conversas do tipo: “Tá chovendo, né?” ou “Puxa, que calor!” e que, invariavelmente terminam num “Essa semana tá fogo!”. Ou então, pura e simplesmente num “É!”. Ou ainda pior, aquela maneira de olharem para você como se você houvesse quebrado uma ética preciosa e indiscutível: solitários não se falam em restaurante por quilo.

Como na esmagadora maioria dos dias não há incêndios ou paixões, acho, então, esse problema, o da comensalidade nos quilos da Pompéia, quando se vai sozinho, durante um dia de grande movimento, e se toma lugar numa mesa—dobrável ou não—no andar de cima de um casarão convertido em restaurante, onde há uma janela em que se descortina a Igreja de São João Vianey e o tráfego da Rua Coriolano no limiar da tarde, constrangedor. E, embora esse problema me haja sido proposto pela raça humana, sei que vou morrer sem achar solução para ele.

Tudo isso talvez não dissesse a Marx, se ele por acaso sentasse do lado de lá de minha mesa desdobrável ou não, num quilo. Afinal, há certas incoerências entre a sobredeterminação da estrutura que talvez valessem mais a pena discutir, durante o almoço. Mas logo, logo eu ouviria o nhoque-noque dele mastigando. Ou a mais-valia da gastura de ouvir sua língua passando pelos incisivos, provocando aquela fricação aguda, de quando se limpa os dentes por aspiração de ar.

Quem vai aos quilos tem hora marcada para volver ao trabalho. Joga o pasto para o esôfago, pensando na produtividade, no patrão, na conta, nas crianças, na Praia Grande, no Guarujá, no trânsito, no Minhocão, na filha do vizinho, na greve dos metroviários, na final da Copa do Brasil, na gripe suína ou não. E em muitas outras minhocas, prestações, insumos.

Marx estava errado. A humanidade, desde de o ovo e da galinha, vive a se propor problemas insolúveis.




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Um comentário:

  1. Essa história de fechar blog não deveria passar por aqui. Esse texto é um bom exemplo daquilo que quem entra no afetivagem todos os dias procura encontrar: uma descrição de que nossos problemas realmente não têm uma solução cartesiana - graças a Deus! -, mas têm uma riqueza que precisa desses textos para ser descoberta. já o marx, é mais uma solução que virou problema - e que problema!

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