segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Com sinuosa renda


Richard Long, River Avon Mud Drawing, 1986





Canção


o amor é rio
isso, simples como seja

não é fácil de entender
um rio não se entrega
de bandeja

ao contrário de um canal
segue para a barra
nada cartesiano
regando as terras através
com sinuosa renda
de meandro

daí que, mesmo
de uma reta não tendo o rito
posto em paralelo a seu motivo
encontra-o a cada curva
no infinito




* * *

Não há senhas


Vasili Kandinsky, Eternidade de versos sem palavras, 1902




Palavra-passe



Madrugada,

o desassossego corta

finas fatias de silêncio

e passos pulsam

no coração suavíssimos.



Das ameias já quase

se divisa alvorada;

os olhos veem verdade

e tudo que busco

verte-se corpo afora

como uma palavra-passe

que antecede cidade.



Abraço madrugada.

Beijo os olhos lentos, espalmo

dedos por toda dobra, parte,

cada: ilhas, segredo.

E lhe digo:

me dê uma senha!



Mas ela comprime os olhos,

ameaça abrir dia,

sorri só lábios

e diz baixinho

brasa de breu

na última lenha,



o verniz sofreado:

não há senhas!





* * *


domingo, 30 de agosto de 2009

Porque se faz gentil o que ela mira: Dante


Dante e Beatrice, iluminura veneziana do sec. XIV




XXI

'Ne li occhi porta la mia donna Amore'


Ne li occhi porta la mia donna Amore,
per che si fa gentil ciò ch'ella mira;
ov'ella passa, ogn'om ver lei si gira,
e cui saluta fa tremar lo core,
sì che, bassando il viso, tutto smore,
e d'ogni suo difetto allor sospira:
fugge dinanzi a lei superbia ed ira.
Aiutatemi, donne, farle onore.
Ogne dolcezza, ogne pensero umile
nasce nel core a chi parlar la sente,
ond'è laudato chi prima la vide.
Quel ch'ella par quando un poco sorride,
non si pò dicer né tenere a mente,
sì è novo miracolo e gentile.

Dante Alighieri


XXI

'Nos olhos conduz minha amada Amor'


Nos olhos conduz minha amada Amor,
Por que se faz gentil o que ela mira;
Qualquer ao passar por ela, torna, vira
E em quem ela saúda vibra um tremor.
Assim que, quando baixa a vista, perde a cor
E seu máximo defeito então perspira:
Pois dela fogem a soberba e a ira.
Ah, damas, fazei-me coro em seu louvor.
Toda doçura, toda humilde cautela
Nasce no coração de quem fala com ela,
E ela abençoa a quem primeiro a vê.
E ao que parece quando sorri em mercê
Coisa alguma igual se paralela,
Se novo, gentil milagre se antevê.





Nota - para mais de Dante a Beatriz na Vita Nova, em Afetivagem, aqui.




* * *

Há tantos fictícios litorais: Dickinson


Henri Matisse, Port de Collioure, 1907



'I many times thought Peace had come'



I many times thought Peace had come

When Peace was far away --

As Wrecked Men -- deem they sight the Land --

At Centre of the Sea --



And struggle slacker -- but to prove

As hopelessly as I --

How many the fictitious Shores --

Before the Harbor be –



Emily Dickinson



'Tantas vezes pensei que a Paz tinha chegado'



Tantas vezes pensei que a Paz tinha chegado

Quando tão distante estava –

Como náufragos – em erro veem o litoral divisado

No meio do mar alto



E esforçam-se em vão – por sinais

Tão desolados quanto os meus,

Em provar: há tantos fictícios litorais

Antes do porto.



* * *


sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O social lança sobre o relativo a cor do absoluto: Weil


Wols, Camp de Milles, 1940



Três Citações de Weil



i.

“A arte não tem futuro imediato porque toda arte é coletiva e já não há vida coletiva (há apenas coletividades mortas), e também por causa da ruptura do pacto verdadeiro entre o corpo e a alma. A arte grega coincidiu com o começo da geometria e com o atletismo, a arte da Idade Média com o artesanato, a arte da renascença com o começo da mecânica, etc. Depois de 1914, há um corte completo. A própria comédia é mais ou menos impossível: só há lugar para a sátira (quando foi mais fácil compreender Juvenal?). A arte só poderá renascer do seio da grande anarquia – épica, certamente, porque a infelicidade terá simplificado muitas coisas... É inútil de sua parte, portanto, invejar Da Vinci ou Bach. A grandeza, em nossos dias, deve tomar outros caminhos. Aliás, ela só pode ser solitária, obscura e sem eco... (ora, não há arte sem eco).” [p. 169]

ii.

É o social que lança sobre o relativo a cor do absoluto. O remédio está na ideia de relação. A relação sai violentamente do social. É monopólio do indivíduo. A sociedade é a caverna, a saída é a solidão. A relação pertence ao espírito solitário. Multidão alguma concebe a relação.” [ p. 180]


iii.

Seria preciso que o futuro chegasse sem deixar de ser futuro. Absurdo que somente a eternidade cura”. [ p.22]




Nota - extraídas de A Gravidade e a Graça [Le Pesanteur et La Grâce], Ed. Martins Fontes, 1993, tradução de Paulo Neves.



* * *

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Tamanho amor ao mi, si, sol, ré, lá, mi


Capa do álbum Baden, 1968



A Pessoal Impessoalidade do Mago das Seis Cordas

-Ou Baden Powell e a possessão pela música


Roberto Baden Powell de Aquino, o garoto de Varre-Sai, cidadezinha do norte fluminense, quase no Espírito Santo, parece ter sido tocado por esse Espírito e varrido com seus dedos de mago com tamanho amor as seis cordas de seus robustos violões Hopf, desenhados especialmente para ele, que quase é preferível nada dizer, senão ouvi-lo. Em 26 de setembro próximo, e nove anos que ele nos deixou. Mas também nos deixou a inconfundível beleza de sua música.

Não é fácil explicar Baden. Ele sempre caminhou entre muitas fronteiras. Entre popular e erudito. Entre choro e Bach – um pouco ao modo de Villa-Lobos. [Mas de um Bach abrasileirado até a raiz dos cabelos]. Entre a Europa e os Afro-Sambas. Entre o romantismo derramado de Chopin e a imobilidade contemplativa, minimalista, calcada nas progressões de escalas, contrapontos e fugas da música barroca. Entre a compaixão cristã e o animismo dos orixás. Tudo isso encruzilhava-se no violão de Baden. E não há outro violonista brasileiro que sequer possa chegar perto do que ele realizou. [Talvez Rafael Rabello, se não tivesse morrido tão jovem].

Baden é inexplicável. O som que arranca do pinho é ao mesmo tempo sujo, porque ele não tem nada dos maneirismo asuavizadores da técnica clássica, e, no entanto, transparente e cristalino como água de rio depois de um dilúvio de chuvas. E essa transparência só revela um formidável desejo de traduzir [e renovar] uma tradição musical que, nele, parecia inata.

A magia de seus dedos sobre as cordas eram a confirmação de que “a inspiração é uma tensão das faculdades da alma que torna possível o grau de atenção indispensável à composição em planos múltiplos”, como quer Simone Weil. E, em algumas de suas performances é quase impossível juntar no ouvido o modo como ele consegue colar os baixos típicos do choro aos elaborados dedilhados derramando-se sobre as primas, tão característicos da música erudita ao violão.

Em quase qualquer outro país, um músico dessa envergadura seria cultuado como um patrimônio nacional, esculpido em praças, nomeado em avenidas e/ou escolas e edifícios públicos, tema de incontáveis teses em universidades.

O único documentário sério sobre Baden, no entanto, foi produzido pela TV Alemã, chama-se Canto on Guitar [e pode, aliás, ser visto em três partes, na íntegra no Youtube]. O filme documenta a feição do disco homônimo e traz interessantes cenas de bastidores, de um jovem Baden exultante com o resultado dos takes gravados. Ou brincando com seus músicos de apoio.

Mas é também no Youtube que se pode achar um de seus momentos mais sublimes: a execução de seu Prelúdio em Lá Menor para uma plateia polonesa em meados dos anos 80. A longa peça, de nove minutos, se assemelha a alguns dos Estudos de Villa-Lobos. A peça é de desafiar qualquer mão direita ao violão. É sólida, extremamente bem construída. Mas muito mais comovente é a interpretação de Baden. O modo como ele explora a dinâmica da coisa verte todo o amor que ele nutria pelo violão. E uma concentração absoluta parece atravessar seu corpo franzino como uma entidade. E, então, ao final, o cansaço, a expressão de humildade em seu semblante, ao tirar os vastos óculos de hipermétrope e debruçar-se sobre o tampo do instrumento, em contido agradecimento: pura poesia. [Para assistir essa performance, clique aqui].

Este ano o Cine Ceará homenageou Che Guevara. Para quem não sabe, Guevara executou a sangue-frio dezenas de simpatizantes de Fulgencio Baptista contra os muros de Havana durante as escaramuças da revolução em Cuba. Mas é homenageado, no Brasil, em Fortaleza, num festival de cinema. É de se sonhar um dia em que alguém da grandeza de Baden Powell, que ao mundo só legou beleza e poesia, possa ser um nome homenageado em eventos assim. Quem sabe quando gravarem um único filme de respeito sobre ele produzido em seu próprio país.

E é ainda Simone Weil quem nos diz que “o poeta é uma pessoa; no entanto, nos momentos em que atinge a perfeição poética, é percorrido por uma inspiração impessoal. É só nos momentos medíocres que sua inspiração é pessoal; e então não é verdadeiramente inspiração.” Na vasta maioria de suas performances, o autor de “Berimbau” parecia percorrido por essa pulsão impessoal.

Saravá, Baden!


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Encontraste algum dia


Katerina Lanfranco, Dolphin in Wave, 2003



A Joaquim Cardozo


Com teus sapatos de borracha

Seguramente

É que o seres pisam

No fundo das águas.



Encontraste algum dia

Sobre a terra

O fundo do mar

O tempo marinho e calmo?



Tuas refeições de peixe;

Teus nomes

Femininos: Mariana; teu verso

Medido pelas ondas;



A cidade que não consegues

Esquecer

Aflorada no mar; Recife,

Arrecifes, marés, maresias.;



E marinha ainda a arquitetura

Que calculaste;

Tantos sinais de marítima nostalgia

Que te fez lento e longo



João Cabral de Melo Neto




Este é, talvez, o mais belo poema escrito de poeta a poeta da poesia brasileira. Não soa nada retórico ou derramado. É expresso no tom contido, sóbrio de Cabral. E nele a essência da poesia de Cardozo se faz presente, assim como sua própria personalidade: a discrição, até no pisar silencioso e leve [“sapatos de borracha”]; a inclinação à, com palavras, "pintar" marinhas, às vezes num levíssimo e translúcido guache de aguarela ["o tempo marinho e calmo?"; "teu verso medido pelas ondas"]; a estranha cifra que se esconde por trás de certos nomes de mulheres ["Teus nomes femininos:/ Mariana"]; a presença do Recife, que, aqui, se alça quase como um tropo de memória, história inscrita na individualidade ["A cidade que não consegues/ esquecer/ aflorada do mar;/ Recife”]; o padrão de cálculos para a sinuosidade, repleta de uma sensualidade ondeada e voluptuosa da arquitetura de Niemeyer, de quem Cardozo foi engenheiro calculista ["E marinha ainda a arquitetura/ que calculaste"]; a ausência de pressa no verso e na vida e - em geral, no verso, a predileção pela linha longa - ainda quando fatiada em versos menores por intermeio de um segmento do sentido, de encadeamento [“lento e longo”]: Cardozo publicou seu primeiro volume de poesia, Poemas [1947], aos cinquenta anos e por iniciativa de alguns amigos que praticamente cuidaram da edição quase à sua revelia. O livro conta com um instigante prefácio de Drummond. O poema-encômio de Cabral, acima, no entanto, é de uma rara perfeição. Ele não declara de fora, como num discurso o que o amigo é, mas o faz de dentro de sua própria singularidade. Diferente do tom laudatório ou excessivamente retórico de alguns poemas escritos - inclusive por gente da altura de Drummond ou Bandeira - para seus pares de ofício. É, portanto, mais que um poema de circunstância, a ponto de ser incluído em antologias, entre os melhores poemas de Cabral. Aliás, há mais de meia-dúzia de poemas escritos de Cabral para Cardozo, o que dá testemunho da enorme ascendência do autor de Signo Estrelado sobre o poeta de O Cão Sem Plumas. Em termos de paisagem, no entanto, os dois são quase antípodas: Cardozo é o mar, o mangue, as restingas, o litoral; Cabral, o agreste, o solo gretado e os engenhos de cana. O melhor site sobre Joaquim Cardozo em disponibilidade na rede foi organizado por Maria da Paz Ribeiro Dantas e pode ser encontrado aqui. O site disponibiliza praticamente toda a obra poética do autor de "Recordações de Tramataia". Maria da Paz Ribeiro Dantas é também autora de três instigantes livros sobre o poeta, além de tradutora e poetisa in her own right. Recentemente se publicou, pela Nova Aguilar, um volume de Obras Completas de Joaquim Cardozo - um projeto há muito em trâmite - e que, aliás, me foi enviado de presente, desde o Rosarinho, no Recife, por Maria da Paz Ribeiro Dantas, a quem publicamente agradeço a generosa prenda.



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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Dezenove andares, dezessete anos


Anselm Kiefer, Auszug aus Aegypten [Partida do Egito], 1984



As Lágrimas no Aquário

O outono em São Paulo é uma região de brumas quando sai a noite. E a noite saía, no que eu descia a ladeira da Eugênio de Lima em direção à Paulista. A umidade do ar colava na testa. As bordas dos guarda-chuvas se entre-roçavam. Eu passava em revista a inércia no rosto dos passantes. Dos postes as lâmpadas largavam um tom amarelo-obscuro. Pingos. As pessoas não eram bem corpos. Eram só vultos – manchas numa tela tachista. E o lusco-fusco do tráfego escorrendo com o vagar de um sorriso de mártir.
A pele dela era da cor do alvaiade. Seus lábios emolduravam os dentes entre o veludo e o vime. Contraste. O castanho-claro do cabelo escorria quase até a cintura, demarcada por um suéter cinza e o braço esquerdo da jaqueta cáqui balançando, desleixadamente, na oca frialdade do fim-de-tarde. Do outono. Seus olhos eram um meio termo entre os de Margarete e Sulamita, fugas da morte, como em Celan: algo lentos, viçosos, de um verde-guache discreto. As pernas desciam bem conformadas por um jeans surrado que ia bater em fios sobre um par de botas de camurça.
Eu esquecera de chorar em casa. Deixara as lágrimas no aquário. E pensava na seca, nos saques. Na família, nos amigos distantes. Quando a ideia de São Paulo me vinha à mente, presto confundia-se com Lilith, a tela de Kiefer. E, ainda assim, como numa ínfera passagem de Dante, ambas, cidade e tela, já não eram mais um, e não chegavam a ser dois. Eu era um homem com o meu tempo, e pretendia o esclarecimento. E morava num condomínio em que, três horas atrás, um garoto de dezessete anos saltara dezenove andares abaixo. No que é possível pensar numa queda livre de dezenove andares. Como a grama do jardim aproximaria a partir de um décimo nono andar sem elevador? O que se veria do lado exterior, no úmido ar de outono, das janelas envidraçadas: os condôminos lendo jornal, vendo TV, brincando, namorando, vestindo-se para o turno da tarde de trabalho?
Ela às vezes escorava-se no namorado. Trocavam beijos. A garoa amainara. Havia uma infiltração no teto da parada do ônibus. Ambos envergavam calças com os fundos decaídos quase aos joelhos. O rapaz trazia a cabeça raspada, à skinhead. E a moça, de róseos dedos, volta e meia lhe acariciava a calva. Eles estavam vivos. Postavam-se para além do abrigo, ao relento. Suas carícias atraíam olhos. Um rapaz de cavanhaque e boné movia-se em torno deles, a estar com um olho na garota. O mesmo, imóvel, fazia um senhor de seus cinquenta e muitos.
Nesse meio tempo úmido, no alto da Serra do Mar, onde os jesuítas resolveram assentar um colégio, eu pensava no Nordeste. Nas praias de deserto e coqueiros. De coqueiros que vieram dos confins da Ásia. De desertos que vieram dos confins dos tempos. Na água doce e salobra dos cocos. Pensava nos saques e distritos repletos de pó, gretas, desolamento, mercearias de ladrilhos irregulares, cumeeiras altas, pés-direitos não forrados, e as telhas acima das garrafas de cachaça e pilhas de rapadura, ao lado de surrões de farinha e feijão mesclados a batatas fritas embaladas a vácuo e latas de conserva. Teias. Muitas teias.
O senhor de seus cinquenta e muitos parecia trazer o rosto esculpido à canivete. Era um rosto sem piedade. Nele pousava a estupidez dos políticos, que, de algum modo, o terno negro sublinhava. Podia passar por um coronel e sua truculência. Mas o que aquele homem que visivelmente não esperava o ônibus fazia, senão invejar a posição do skinhead, que enlaçava a garota? E, logo, nove pessoas, numa parada de ônibus, invejavam. Invejavam a juventude, o desleixo. A intensidade dos toques em público. E não ter que pagar contas.
O rosto sem piedade do senhor de cinquenta e muitos tomou um táxi. O rapaz de boné e cavanhaque embarcou no “Avenidas”. A senhora gorda, que trazia a bolsa sob o braço, como se a qualquer momento fosse abrir um zíper no próprio flanco para guardá-la, tomou o “Morro Grande”. E toda a efêmera comunidade da parada de ônibus como que se desfez substituída por outra. O jovem casal galgou os batentes do “Pinheiros”. E a noite cresceu como um magistrado de martelo em riste proclamando uma sentença inapelável: tempus edax rerum!
Os carros prosseguiram na sua lentidão agônica. Os ônibus se sucederam. Talvez, naquele crepúsculo atingiram subúrbios tão remotos quanto certos distritos do Sertão. Talvez se destinaram a distâncias tão imponderáveis quanto a que se transpõe na rapidez de uma queda dezenove andares abaixo. Outros talvez nem chegaram: desistiram a meio-caminho. Por causa de uma pedra, de um agouro, da necessidade de manter as aparências de um casamento, de uma lágrima, de um milagre de São Francisco.
Tomei o ônibus. Há dias em que cicatrizes mais íntimas supuram com frutas podres. E o lusco-fusco do tráfego escorrendo com o vagar do sorriso de um mártir. Eram só vultos, como manchas numa tela tachista. As pessoas não eram bem corpos. Pingos. Dos postes as lâmpadas largavam um tom amarelo-obscuro. Eu passava em revista a inércia no rosto dos passantes. As bordas dos guarda-chuvas se entre-roçavam. A umidade do ar colava na testa. E a manhã saía no que eu subia a ladeira da Eugênio de Lima vindo da Paulista. O outono em São Paulo é uma região de muitas brumas quando sai o dia.





Nota – crônica originalmente publicada em O Povo [10.05.98]


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terça-feira, 25 de agosto de 2009

Flurp!


Juan Miró, Dog barking at the moon, 1952



Uma pressão de almofadas

Certos animais domésticos, antes de muita gente por aí, começam a se tornar importantes. E importar alguma coisa nos dias de hoje é estar apto a consumo, ser um ser para o mercado. Ser consumidor. Há cada vez mais produtos destinados a animais: rações para cada faixa de idade, adereços e conveniências próprias a cada bicho. Coleiras anti-alérgicas, coletes e até hotéis. O número de anúncios de TV usando bichos cresceu bastante nos últimos tempos.

Mas também, sair para passear com os cachorros está se tornando um hábito em certos bairros fortalezenses. A prática não era muito comum só uns poucos anos atrás. E ainda parece um tanto exótica. Vagamente europeia. Ou, quando muito, paulistana. E especialmente paulistana do bairro de Perdizes – onde hoje em dia só é possível caminhar com olhos bem abertos no chão, protegendo-se da absoluta merda.

Animais domésticos podem contribuir positivamente para a economia afetiva de uma família. Cachorros são afeiçoados, atenciosos, um tanto disponíveis. Gatos estão mais para a auto-suficiência e uma certa malandragem arisca. Pássaros são regulares e colorem o ambiente. No caso de papagaios, refletem um tanto o nível de educação de seus donos.

O certo é que já há veterinário agindo como psicólogo. Isso pode soar risível mas deve ter seu lado de verdade. Pelo menos de tanta verdade quanto aquelas psicólogas infantis que, no Jornal Nacional, aconselham os pais a não dizer nomes feios na frente dos pequenos. Ou de que o que eles precisam: “é amor”.

De longe, o episódio mais insólito com animais de que tive notícia foi vivido por um conhecido há cerca de dois anos atrás. Digo insólito porque me falta outro adjetivo.

Ele fora convidado para uma festa. Aquelas reuniões mornas em que professores de pós-graduação reúnem seus orientandos para confraternizar e, veladamente, distribuir futuros encargos ou recrutar outros tantos incautos. Meu conhecido não era orientando. Tão-só amigo de uma. E, logo, sem nenhuma intimidade com os donos da casa. Os anfitriões eram um casal simpático e polido. Meia-idade. Sem filhos. Doutores e pós-doutores. Tão paulistanos quanto a pronúncia italianada de certos gerúndios.

Era inverno. A casa era ampla, nos subúrbios ao Sul de São Paulo e confinava com um riacho que talvez brotasse nas imediações da represa de Guarapiranga, que não distava muito dali. Esse conhecido, um sujeito bastante corpulento, gordo mesmo, chegou relativamente tarde, rebocando um vasto sobretudo – espécie de marca registrada. Descobrindo uma vaga na ponta de um sofá, fincou-se regiamente e com ênfase no macio assento, daqueles que fazem flurp. E, de resto, foi magnificamente servido de uísque e canapés. As conversas eram protocolares, mas havia uma bela uspiana sentada ao lado de meu conhecido, este se comprazia com olhos castanhos claros da menina, e ela desandava a teorizar sobre a função do coro na tragédia grega clássica.

À certa altura, porém, o casal anfitrião começou a dar com a falta do poodle miniatura que tratavam como a um filho. E entenderam dar uma busca coletiva em todos os compartimentos da casa. E quanto mais procuravam mais o bicho desaparecia.

Um tanto alheio à grita geral, sozinho na sala em meio a vozes distantes, meu conhecido ergueu-se para ir ao banheiro. Foi aí que deu com o pobre cão esmagado no sofá. Seu peso fora deamasiado para o miúdo vivente. E aquele flurp longe de ser das almofadas constituíra um suspiro último.

Vexado, seu primeiro impulso, depois de consultar os lados, foi enfiar o miúdo cadáver no bolso do sobretudo. Depois, quando todos já de novo no ritmo da festa, ele seguiu discretamente pelo amplo jardim até a beira do riacho.

E eliminou a prova de tão estranho crime.




Nota - crônica originalmente publicada na extinta revista virtual Nariz de Cera.

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Não fosse por igual trágica


Detalhe da Praça dos Leões, no Centro de Fortaleza


À prova de memória



Fortaleza é uma cidade à prova de civilização. Há cerca de duas décadas, desmataram uma perna de mangue, a leste. Em vez da delicada flora sub-aquática que lá estava há séculos, medrou um shopping tão horrendo que se pode encontrar uma réplica dele, sem tirar nem pôr, em Leamington-Spa, no coração da Inglaterra. E isso apenas contribuiu para que seus habitantes se afastassem de sua história. De qualquer vestígio dela. E o shopping sugou para Leste todo o investimento que deveria ter sido posto no Centro, em democracia. Em benefício de todos. Em fortalecimento de um senso realmente cívico de história. E o Centro de Fortaleza, mais ainda do que os de outras grandes metrópoles brasileiras, virou um fantasma de si. E que, talvez, na calada da noite siga a assombrar o sono asséptico dos que vivem no conforto novo-rico – sem qualquer vestígio de passado – dos que moram nos novos bairros do Leste.
É engraçada – não fosse por igual trágica – essa compulsiva necessidade das elites brasileiras de se mover para longe dos mortos. Alguns deles [poucos em sinceridade, verdade seja dita] sonharam muito alto os sonhos que incomodam.
Não à toa que, em uma cidade como Camocim, por exemplo, exatamente sobre o cemitério mais antigo, se plantou a nova estação rodoviária...
Essa necessidade inconsciente e coletiva, bem brasileira, de se desapegar – em fuga – de todos aqueles que apostaram que a prosperidade do, então, porto mais importante do Ceará, viria do eixo cais/ferrovia. Os dois projetos fracassaram miseravelmente em Camocim. E, então, que tal lascar por cima dos que sonharam esses projetos exatamente o que, em boa parte os esgotou: as estradas de rodagem e o transporte em lombo de caminhão e ônibus? Ergueu-se então a rodoviária sobre as ossadas daqueles vetustos e incorrigíveis visionários. Mas a perspectiva de seu sonho, de sua utopia, não menos foi reposta sob o os alicerces do novo terminal. Como fosse necessário esquecer um sonho incômodo em favor da mediocridade dos diascorrentes.
Assim também Fortaleza. Nela o shopping está para o Centro assim como em Camocim a rodoviária para o Cemitério. A incômoda vizinhança de um passado subversivo pela própria força de sua eloquência.
E é preciso estar atento às metáforas de Fortaleza: a Praia do Futuro [essa dispensa comentários]; o Castelo Encantado; a Parangaba ou Porongaba [beleza, em língua-geral]; o Parque Araxá [que combina o europeu 'parque' à agilidade do termo indígena 'araxá'= chapada; ou luminosidade que existe antes do nascer do sol]; a Água Fria; e o que há de expressamente português em nomes como Aldeota, Varjota, Torreão, Outeiro, etc.
Sei que tudo isso é sonhar alto e acordado. É querer demais. Devaneio apenas. Mas de sonhar baixo é feita a mediocridade dos dias e dos que se trancam na academia ou em seus quartos com livrinhos de filósofos em traduções de quinta categoria. E se há grandes trabalhos a serem feitos – e os há – é bom que comecem logo. E a todo instante. E já. E em subversividade.
Sem lapso de demora. A contrapelo. A cada gesto. A cada dia. Incomodando a mediocridade de boa parte dessa gestão municipal, que de resto catou na academia seus atuais quadros administrativos. Em teoria, estaria tudo no melhor dos mundos. Porém, com as exceções de praxe, os acadêmicos pensam o mundo exilados dele. Desterrados do próprio solo que pisam. Das ruas mesmas pelas quais circulam, no refrigerado conforto de seus carrinhos pagados à prestação.
E, no entanto, gente como Nirez ou Christiano Câmara bem sabe que não é assim. Eis porque num esforço avulso, sem quase ou nenhum amparo oficial, vem colecionando a cidade com um amoroso zelo.
Cada imagem. Cada palavra. Cada hábito. Cada gesto possível de ser salvo.
Pela promessa de sua sanidade.



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segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sem receio do rótulo realista


Yasujiro Ozu, Tokyo Story, 1953


Filmar alicerça em verdade..


E por uma acomodação da fórmula da verdade que se encontra em Santo Tomás. Ele nos diz que “a verdade segue a existência das coisas” ["Veritas sequitur esse rerum"].

Então, a arte refrata a verdade dessa existência. Quanto menos essa existência for refratada, menos haverá arte. É um ponto de partida realista - porém não de um realismo naturalista ou naïf. Mas de um que nos redime de criar somente a partir das criações artísticas pré-existentes. Do acervo ou iventário do criado. Especialmente daquele acervo sancionado pelo prêt-a-porter da onda acadêmica em voga. Da teoriazinha e do elenco de autores da vez.

De momento, há muita voracidade por uma arte vicária, que vive de citações. Ora, só se pode citar algo que está próximo da própria experiência do realizador e se imbrica em seu cotidiano. Ainda que em estranhamento. Qualquer citação que é feita com propósitos apenas eruditos ou “livrescos” recai em desautorização. Não se faz cinema acadêmico, de pós-graduação. Isso não existe. Se faz cinema. Ponto. O mesmo vale para música ou literatura ou pintura ou qualquer modalidade de arte.

Além desse aporte realista, há também o decorum em relação à figura humana. O corpo humano pode ser entrevisto como a obra-prima da criação. Seu ponto culminante. Logo, o tratamento dado a ele deve ser, no caso do cinema, o de tocá-lo com a objetiva somente aquele mínimo suficiente para nele encontrar a emenda necessária à sequencia das ações. Isso equivale a abrir uma enorme cesura para o espaço off, bem como para os objetos, paisagens e outros seres que o cercam. É assim que se implicita, sem fazer força, uma pá de coisas. E este último ponto também indica, entre outras, uma segura direção de arte. Eis porque o still life [a natureza morta], o luzir dos objetos surge tão central nos filmes de Ozu.

Ambos os dispositivos descritos acima – realismo e decorum – apontam para local. O local é o lugar em que seres humanos e coisas se encontram presentificados no cotidiano. Também é o lugar em que seres humanos encontram - veem-se, na dimensão da presença - os corpos uns dos outros. E o corpo humano é algo tão sublime que o austero Pascal dele disse: 'no momento da morte a alma chora porque deve separar-se dessa maravilha que é o corpo'.

O corpo é um local que torna o local local. Não pode ser "vendido" separadamente.

O local é um corpo. Espetacularmente. Especularmente. Esplendidamente. As rugas no rosto da lavadeira, a crosta de sol nas costas do pescador são relevos. Prolongam dunas, lagos, rios. A inércia deles após dias sem conta de trabalho diário sob um sol indiferente. O corpo resulta disso. Da tua conversa com o mundo.


O corpo e a paisagem. O corpo é a paisagem. Nele refratada.

Quando com uma câmera nunca se surfa inteiramente em transparência. Embora a transparência seja o alicerce do melhor cinema. O de Bresson. Ou de Ozu. É a mesma sutileza que se trai na analogia que Joaquim Cardozo traça entre cinema e rio, no poema "Cinematógrafo":


"E molhada nessas águas-imagens, impercebida e rastejante
Uma insinuação de presenças invencíveis se propaga"

As imagens da verdade não adernam ou naufragam. Emergem à flor d'água da tela, mesmo quando estão no fundo. Como pequenos seixos sob límpida água de rio. As imagens da verdade.

Invencíveis.



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sábado, 22 de agosto de 2009

Entre provisoriedades, mover-se comovendo


John Baldessari, Haste Makes Waste [Pressa Faz Merda], 1973




Novas Mídias, Algumas Parcas Propostas & Triar

Novas Tecnologias, novas mídias, novos recursos de TI. É tudo de mais provisório com que se pode trabalhar hoje em dia. Desde os suportes até as redes de sociabilidade, tudo surge e passa numa vertigem espantosa. Sugere que outros suportes, os de décadas passadas, demoraram demais da conta até desaparecer.
Tomemos o vinil, como exemplo. Os velhos bolachões pareciam eternos. O sistema mais à mão de “pirateá-los” era a fita cassete. Mas as boas fitas cassetes não eram exatamente baratas e, à sua vez, eram bem pouco práticas, uma vez que você tinha que localizar no contador de seu aparelho de som – se ele tivesse um – o espaço reservado a uma determinada canção. Justo aquela, que você queria ouvir de novo e de novo. Haja rewind!
Mas, sem dúvida, o tempo dos vinis e das fitas cassetes foi lento e longo se comparado com o tempo dos novos suportes digitais.
Muitos já ficaram para trás: o disco floppy, o disquete rígido, por exemplo, não tiveram muita chance. Hoje em dia, sua capacidade de armazenagem se comparada à das pen-drives ou de certos HD externos, por exemplo, parece uma piada. E a capacidade de armazenamento destes, em breve, será fichinha diante de engenhocas que surgirão em menos de dois anos e das quais sequer suspeitamos. Serão menores que a cabeça de um alfinete? Poderão ser pregadas ao corpo, como um pequeno piercing? E se puderem ser tatuadas?
Foi tudo muito rápido. Está sendo tudo muito rápido. E tudo será ainda mais rápido.
A primeira vez que ouvi falar em internet, em termos práticos, foi em 1991, numa universidade inglesa. Um colega que fazia doutorado na área de física me contara, maravilhado, que havia trocado mensagem por escrito, através do computador, com pesquisadores do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco. Eu nem me ative muito aquilo. Tinha de gastar bastante tempo e alguns 'cents', respondendo às cartas que os amigos enviavam. Seguia com elas para a agência postal do campus duas vezes por semana. Elas eram, junto com uma ou outra matéria avulsa nos jornais ingleses, a cota que eu podia juntar de notícias sobre o Brasil. E era uma cota escassa. Vez por outra, meu pai me mandava um exemplar de Veja ou do jornal O Povo, que chegavam, no mínimo com uma semana de atraso. Diante dessa transa postal, a incipiência da internet, ainda parecia algo remoto, que não se sabia se iria vingar ou não. Telefonar para o Brasil, à época, era caríssimo. Impraticável. Fazíamos isso quatro ou cinco vezes ao ano, em datas especiais.
Mas quão rápido avançaram as novas mídias!
Em 1993, quando trabalhava como redator publicitário em uma agência, já de volta a Fortaleza, havia me rendido ao editor de texto – já que nunca fora um grande datilógrafo e entendia que os editores iam bem com meu modo de revisar um texto vezes sem conta; trocando o lugar das palavras, testando o melhor fluxo das frases, o melhor ritmo para elas. Nosso diretor de arte também já se beneficiava de programas que hoje seriam bisavós dos sofisticadíssimos softwares de desenho gráfico. Mas tudo isso ainda sem a internet.
Em 1995, ministrando aulas no curso de história da Universidade Estadual do Ceará [UECE], ao final do ano, recebi um trabalho em disquete. Foi o primeiro nesse suporte. E veio junto com um bilhete desafiador: “internete-se”!
No ano seguinte, comprei meu primeiro pc, um IBM Aptiva. Para a época, uma máquina, cheia de recursos. Eu achava o máximo, então, poder ouvir música no computador enquanto escrevia. Ou fazer uso do editor de texto em casa, não na agência de publicidade ou na faculdade. E lembro que imprimia tudo antes de ler. Porque a leitura, de verdade, para mim, passava por algo impresso, algo no papel. Eu ainda não aprendera a ler “no monitor”. E, de outro modo, só cheguei a conectar esse computador, um ano e meio depois, quando fui morar em São Paulo. E foi, então, no augusto ano de 1997, que, de fato, a internet entrou de roldão na minha vida. E para não mais sair.
Mas se comparada a hoje, era ainda precaríssima: conexão discada. Caía a todo instante. As páginas demoravam séculos para carregar. Os softwares de navegação travavam. A quantidade de jornais, veículos de comunicação ou universidades que já haviam aderido com razoável grau de confiança ao novo veículo ainda era incipiente. Basta dizer que o escritor norte-americano que seria objeto de minha tese de doutorado possuía 11 referências no programa de busca mais sofisticado da época (o Altavista). Hoje, no Google, ele possui nada menos de 56.700 referências. É quase a informação de dez anos atrás multiplicada por 5000.
Eis, aqui, também um dos problemas que, cada vez mais teremos pela frente: saber chegar á informação que desejamos, descartando, no processo, muitos acidentes de percurso, desvios inúteis ou o que, ora, chamamos de spams.
Em especial, sinto algo que segue bastante nesse sentido se analiso o comportamento de uma área que se beneficiou enormemente dos avanços das novas mídias: o audiovisual.
Nesse campo, à analogia de muitos outros, as novas mídias digitais provocaram uma verdadeira revolução. Desde o barateamento das câmeras e gravadores de captação de som até os processos de edição não-linear, feitos em casa, por softwares de fácil manipulação, que democratizaram enormemente a possibilidade da confecção de uma peça—seja ela um longa metragem, um videoclipe, um vt publicitário ou mesmo um documentário para web. Nunca a imagem, em termos de custo desceu para tão perto da escrita. E nunca o mundo e seus fenômenos foi mais filmado. Desde quedas de jatos, tornados tropicais a prosaicos acidentes domésticos.
E, no entanto, tudo isso tem impactos que só serão dimensionáveis algum tempo adiante.
E por quê? Porque, por exemplo, a informação sobre o que se produzia nas diversas tradições nacionais de cinema, era veiculada, num tempo pré-internet, de modo incomensuravelmente mais lento e rarefeito: em mostras de cinemas de arte, cinematecas, cineclubes, etc. E, portanto, consistia num maior desafio. Hoje, um cinéfilo, pode acessar quase qualquer cinemateca nacional via internet. Pode, sem sair de casa, ter acesso a filmes raríssimos, que seriam quase ganhar na loteria poder assisti-los só uns poucos anos atrás.
Mas, se isso é extremamente sedutor por um lado, por outro também preocupa. Afinal, dentro da incomensurabilidade da internet é preciso estabelecer limites, traçar recortes, fazer escolhas, sob pena de tentar abraçar “tudo”. E “tudo” não se dá ao abraço, sem que se perca um bocado. Sem que se perca uma atenção, de fato, mais consequente.
Atenção, sobretudo, com processos que não são ou não foram virtuais. Que datam de antes da chegada da “virtuália”. Que, sem dúvida, vão ser afetados por ela. Mas precisam ser trabalhados com um razoável grau de distanciamento e radicação.
Conversando com jovens realizadores cearenses de audiovisual ou assistindo às suas produções percebo uma grande e saudável abertura para o cosmopolitismo, para a informação nova, venha ela de onde vier—Irã, Bélgica, Taiwan, China, Argentina, África, Leste Europeu, etc. Mas do contrário, vejo também uma resistência muito forte a buscar situar-se melhor diante de referências locais. Enquanto especificidade histórica no mapa. E não falo, aqui, de regionalismos tacanhos. Mas justamente no indecifrável charme que há em tingir todo esse cosmopolitismo de cores locais. Ou vice-versa.
Essa defasagem—ausência sistemática dos assuntos locais diante de veios cosmopolitas, com as exceções de praxe—tem, de resto, sido fomentada por uma linha didática, tanto em algumas ONG's quanto na principal escola de formação local [Vila das Artes], que concede muito pouca ênfase a aspectos locais [históricos, etnográficos, etc.] Os únicos assuntos a propiciar um trabalho que seja verdadeiramente cosmopolita: o sentido de vincular à informação que vem de fora, o saber local. Sem isso, o audiovisual vira uma espécie de “vale-tudo”. Mas um “vale-tudo”, cujos códigos – supostamente de vanguarda – só são decifrados, compartilhados ou referendados por uma pequena leva de esotéricos ou iniciados. Gente que faz audiovisual. Não sei se isso é sábio. Acho que não é.
Porque não é interessante, aqui, qualquer saber. Senão, um saber esteado em uma tradição. Uma tradição coletiva. Por menos que essa expressão nos soe alvissareira nos lábios ou no ouvido, hoje em dia.
Os estados brasileiros que conseguirem conjugar melhor, no plano do audiovisual, o emprego desses novos recursos [que se renovam vertiginosamente e possibilitam a um contingente bem mais amplo de grupos e indivíduos a feição de uma peça audiovisual] consorciando-os às suas respectivas bases históricas, culturais, saltarão corpos e corpos adiante dos demais, onde só o deslumbre com as novas tecnologias e com os experimentos de vanguarda soam como falsas sereias que o tempo encarregar-se-á de repôr no devido lugar.
Não como um testemunho forte. Recorrentemente buscado, como atestado de memória, inteligência e integridade. Mas como mera curiosidade de época. Como os cabelos no laquê, o bambolê, o bombom-chicles, o Kichute, o Crush, a calça boca-de-sino, a profusão de twitters na porta do carro, os óculos 3D, o Homem de Seis Milhões de Dólares, certas gírias, as vinhetas de Hans Donner, etc.
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Ouro e azul-ultra-mar quase Vermeer: em acaso?


Gabriel Andrade: still de Uma Encruzilhada Aprazível, 2007


Uma Foto [& Vontade de Cinema..]


Ao contrário do que muitos podem pensar, não há qualquer efeito nesta foto. E é a minha foto predileta das que documentam a ação da equipe durante as gravações de Uma Encruzilhada Aprazível. E, claro, não porque apareça nela. Mas por razões bem outras. Ivo [Lopes Araújo] e Eudes [Freitas] estão adiante, com uma câmera Sony Z-1 no tripé e usando um capuz preto, para, no excesso de luz, divisar melhor o enquadramento, no visor em meio à ardente manhã de sol caindo em placa sobre a planície sertaneja. Tão concentrados ambos seguem na faina, que mal se percebe que há duas pessoas junto à câmera. Encontro-me alguns passos atrás deles, tomando notas. A tomada foi feita, por Gabriel [Andrade] em contra-mergulho, rente a um capinzal [que mais se assemelha a um campo de trigo], nas proximidades de Aprazível. O mais adorável dela é que a paisagem surja assim, em primeiríssimo plano; e a equipe, bem mais acessória, ao fundo. Como se, em programa, designasse que o essencial tem a precedência sobre o secundário. Paisagem, esse estado de espírito.


A cada vez que vejo esta foto há uma e só uma coisa: vontade de cinema! Desejo de cinemar.



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A Pulsão Sublime


Cartaz promocional de L'Argent, Robert Bresson, 1984



Sobre o conceito de sublime

-Alguma teoria antes que me expulsem [de vez] da academia

O conceito de sublime vem sendo sucessivamente revisto ao longo das últimas décadas. Ocupa, de fato, um volume bastante significativo da obra de teóricos, críticos e estetas tais como Jean-François Lyotard e Barnett Newman. O desdobramento da formulação desse conceito, seu manejo é, desse modo, acessível e de literatura relativamente ampla. De fato, a reapropriação do conceito clássico de sublime – tal qual se encontra no pseudo-Longino, em Kant, em Burke – por pensadores e estetas contemporâneos é empreendida mediante uma forte revaloração ética e uma renovada atenção diante da actualidade histórica. Em especial, da que provêm da releitura de eventos históricos traumáticos (caso das violências de estado, das guerras, dos genocídios).

O conceito de Sublime, em sua raiz, assenta-se basicamente em duas ideias. A primeira é a de que se trata de uma pulsão que escapa ao controle dos sentidos humanos. Uma pulsão formidável e violenta. A segunda, a de que é algo que detém um estatuto de durabilidade e vasta extensão. De todo modo há algo que ronda o numinoso investido nesse conceito.

Ao menos é assim que o Pseudo-Longino, já no séc. III d. C., dispõe a questão ao dizer primeiro que “não é persuasão mas ao êxtase que a natureza sublime conduz os ouvintes”. E, posteriormente que sublime é “na realidade, aquilo que suporta um reexame frequente, mas contra o qual é difícil e mesmo impossível resistir, e que deixa uma lembrança forte e improvável de apagar”. E nessa última acepção bem se pode esboçar uma analogia entre o sublime e o trauma psicanalítico. Sendo que aquele se processa por uma sensação de prazer superlativo (ou êxtase), enquanto este por uma sensação de dor, ameaça ou constrangimento extremos.

Mas durante muito tempo essa noção de sublime não foi tocada. Praticamente não se especulou sobre ela por mais de mil anos. E então ela foi retomada pelos estetas classicistas laicos do séc. XVIII. Sobretudo os alemães, mas antes destes um inglês: Edmund Burke. O fato de não haver especulação sobre o sublime durante um lapso tão longo deve provir certamente do modo como se organizava o pensamento da Idade Média, que identificava beleza à Divindade e, logo, a algo implicitamente sublime, não havendo, portanto, uma necessidade de distinção ente “sublime” e “belo”, como ocorreu posteriormente.

O sublime tal qual entendido por Burke, em fins do séc. XVIII, é vinculado a fenômenos da natureza que produzem “perplexidade”, e que ele define como sendo “aquele estado de espírito em que todos as motivações são paralisadas por um certo grau de horror”. Mas de um horror [ou espanto] que também produz uma espécie de prazer ao invés de pura intimidação, abjeção ou medo. Produz o que ele nomeia de “pleasurable horror” [“terror aprazível”]. Burke traça ainda uma importante separação entre o sublime e o belo. Para ele o sublime é grandioso e incircunscrito, enquanto o belo é dimensionável, mimoso ou maneirista. Essa distinção posteriormente será retomada e aperfeiçoada por Kant, primeiro em um tratado incipiente e quase amador (Observações sobre o sentimento do belo e do sublime) e depois sistematicamente em sua Crítica do Juízo.

O sublime é algo que repõem o cósmico e a dimensão num plano modal, de relação indissociável. Ou seja, um fenômeno que redimensiona a escala humana no cosmos. Ou que pelo menos, em algum ponto desestabiliza essa escala humana no mundo, contrapondo-a a uma espécie de vestígio ou indicação de absoluto. A noção de sublime põem o homem em vertigem. O mar, o céu ao crepúsculo, uma forte tempestade, as altas montanhas, a passagem de um cometa, o empuxo de uma alta queda d’água são exemplos desses fenômenos de grandeza natural que nos atingem e comovem – e que Kant caracteriza como sublime dinâmico. Mas há também, de acordo com Kant, um sublime matemático que teria a ver com uma noção de infinidade, de desmesura num senso mais abstrato. Em largos rasgos, o belo é entrevisto como algo mais dimensionável e redutível a categorias da razão, enquanto o sublime como algo que só parcialmente pode ser apreendido por ela, porque desmesurado diante da capacidade humana para apreender. E, também por isso, o sublime indica mais para ausência que para a presença.

O certo é que não há muitas referências do poeta norte-americano George Oppen a essa literatura filosófica mais ou menos canônica sobre o sublime. Suas alusões à questão assomam enviesadas, embora a forma como a corteje para seu próprio procedimento como escritor seja de uma evidência aterradora – como, de resto veremos ainda adiante – e forje uma opção extrema por uma modalidade de escrita que, em todos os planos, distava anos-luz da escrita da maioria de seus contemporâneos não objetivistas. E, aqui, muito especialmente, no sentido político.

Outro ponto a sustentar a cerrada crítica que Oppen reiteradamente tece a seus colegas de geração - exceção feita a Resnikoff - segue pela quase ausência de ironia em sua poética - sobretudo a da segunda fase (que não por acaso é retomada após 24 anos de silêncio). Ao sarcasmo, ao niilismo e à deliberada obscuridade de [Louis] Zukofsky, um de seus mais estreitos colaboradores no movimento objetivista, Oppen irá endereçar palavras diretas e mesmo ásperas: “if you want to say no say/ no if you want to say yes say yes in loyalty”. Dito assim, até parece que a própria poética de Oppen é de uma comovente clareza ou transparência. [Ela está longe disso, embora não seja obscura ou tão "livresca", digamos assim, quanto à de Zukofsky].

Do contrário, Oppen, pode soar um bocado opaco, mas não "obscuro" – especialmente no primeiro e nos três últimos de seus livros. Aliás, era justo ele quem dizia: "palavras não podem ser inteiramente transparentes". Embora, a seu modo, buscasse essa transparência. Por isso mesmo, devemos entender essa busca pela transparência e pela anti-ironia não de uma forma plana, mas como propósito ou programa. Como uma circunstância modal. Mais ou menos como a palavra ‘busca’ na frase: “a verdade é também sua busca”.

O que postar no lugar da ironia como forma expressiva? No caso de Oppen? A expressão do “medo” ou "espanto" [fear] que, segundo Blau DuPlessis, “no léxico de Oppen é um termo que continuadamente pode ser glosado pelo sinônimo ‘terrível espanto’ [‘terrific awe’] - um enlevado senso da rara e estranha coisa que é notada ou proferida.” A relação com a estética do sublime é quase imediata se, por exemplo, transpormos para Oppen um comentário que Jean-François Lyotard endereça ao pintor-scholar Barnett Newman: “a grandeza do discurso é verdadeira quando testemunha da incomensurabilidade do pensamento ante o mundo real”.

Mas, se quisermos ir além, nesta senda, basta lembrar que para Oppen - e contrariando o William Carlos Williams que dizia ser o poema “uma pequena máquina feita de palavras” - “o poema NÃO é feito de palavras, ninguém pode fazer um poema enfiando palavras nele, é o poema que produz as palavras e contém seu sentido”. E, logo em seguida, no mesmo texto: “quando um homem está apavorado pelas palavras, talvez esteja no ponto [de escrever]”.

Para Oppen assim como para Newman não há a priori. Oppen nos diz que é incapaz de determinar “o processo pelo qual um verso surge”. A respeito disto nos fala DuPlessis, em um ensaio de 1975, que “se torna claro que Oppen fica ou ficará surpreso ou atemorizado porque escreve deliberadamente despojado de certezas e absolutos, relutando em aceitar um quadro de referência apriorístico.” Quase parafraseando o comentário de DuPlessis sobre Oppen, Lyotard dirá de Newman, treze anos depois, que “a presença é o instante que irrompe o caos da história e lembra ou chama apenas, que ‘há’ antes de qualquer significado daquilo que há.” Bem entendido, a radicalidade do ‘agora’ (‘now’) dos quadros de Newman – que, aliás, pode ser aproximada da teoria da história do último Walter Benjamin ( quando este nos fala do Jetztzeit, a ‘agoridade’, ou tempo do ‘agora’) – estaria para as artes plásticas assim como o “medo” (fear) ou o “terrific awe” (“terrível espanto”) de Oppen está para a poesia. Assim como o “agora” de Newman suspende a temporalidade, o “terrível espanto” de Oppen suspende a narrativa. Em seu poema sobre os cervos na floresta ("Psalm" [“Salmo”] - para ler este poema com uma versão em português, aqui), o instante de medo ou perplexidade nos olhos da manada de cervos abole o tempo e instaura o reino da verdade. Ambos, Newman e Oppen, estão interessados no que Mark Rudman detecta no autor de Of Being Numerous, como sendo “images that retain a trace of the sacred [“imagens que retém um traço do sagrado].” Ou, de forma analógica, algo expresso pelo próprio Newman ao nos dizer “do desejo humano de, nas artes, expressar sua relação com o Absoluto” [que] “tornou-se identificado e confundível com os absolutismos da criação perfeita – com o fetiche de qualidade – assim que o artista europeu vem sendo continuadamente envolvido pelo embate moral entre noções de beleza e desejos de sublimidade.”



Nota - para exemplo de sublime no cinema, assistir Chuva [Regen] de Joris Ivens. Ou L'Atalante de Jean Vigo. Ou alguns dos filmes de Tarkovski ou Bergman ou Dryer. Ou qualquer dos 14 filmes de Robert Bresson. Na literatura brasileira há dois exemplos máximos: Os Sertões e o Grande Sertão: Veredas. Dos cineastas brasileiros o que mais se aproximou do sublime foi Joaquim Pedro de Andrade. Especialmente em seu O Padre e a Moça. Ou, mais recentemente, Luiz Fernando Carvalho, em sua adaptação de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Pode-se mencionar também, em sua modesta proposta - mas que é bem mais ambiciosa do que assoma à primeira vista - o documentário Sertão de Acrílico Azul Piscina, de Marcelo Gomes e Karim Ainouz. Assim como certa concepção de ritmo e fotografia divisáveis em alguns momentos nos documentários de Alexandre Veras e Cao Guimarães.



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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Cidade queimada de sol


Antônio Bandeira, Urbanisme, 1955




Decolagem com Antônio Bandeira
Fortaleza é um tabuleiro de xadrez colorido, em que o sol dá xeque-mate à tristeza o dia todo.
[Herman Lima]


Então vem o melhor de Fortaleza: o nome de certas ruas emolduradas por oitizeiros, porque é preciso sombra para caminhar e algum quebra-luz para limpar os olhos da cal e do sol.
Mas antes Fortaleza vista de cima: uma coleção de lagoas, o mangue, e ruas riscadas por Mondrian. Não há vestígio do que é recurvo, desvio no tempo, ladeira, azulejo, voluta.
Do avião, tudo assoma bem mais funcional: fronteira entre mar e cidade. A leste, o distrito rico, que prossegue baixando de altura da Beira-Mar para o Sertão.
Para o sul, serras. E a oeste – um oeste vasto – a planura dos bairros pobres, onde, se o sobrevoo é noturno, o lá embaixo é penumbra sem andares, e luzinhas piscando inúteis anelos.
À noite, o mar.
Aterrissar em Fortaleza: calor. A fala cearense – que contem riquezas não menos concretas que “água quebrada a frieza”.
Chegar em Fortaleza é ter sede. Beber. Mijar. Aceitar uma boa sugestão de o quanto tempo e lugar são só um. E tão fortes. Como habitar uma cidade assim?
A paisagem agora segue embaçada. Ou são os olhos? Partir outra vez. O que diria Camile, Maria Helena. O que diria Wols. Sim, o que veria Wols?
Prosseguindo em travelling mental, literal.
Podia ainda falar dos pregões. Do Abrigo Central e do refresco de pega-pinto. Da engenhosa aleatoriedade com que molhados e secos são dispostos do interior para a fachada das lojas, no Mercado. Couros, palhas, pacientes alvíssimas rendas; equlibristas esculpidos em levíssimo buriti. O excesso de doçura nos confeitos. De cadências de triângulo: os vendedores de chegadinho. Da carne das frutas e do regime das marés. Do campanário da Igreja do Carmo. Da chuva que aplica glacês sobre a textura das dunas, estriadas pela relíquia de passadas chuvas. E, ainda uma vez, do desperdício de nomes bonitos pela cercania: Messejana, Parangaba, Iparana, Mucuripe, Paupina, Sabiaguaba, Precabura, Tiaia, Passaré, Sapiranga, Aquiraz, Parreão, Maraponga, Opaia, Araxá. Todos que, em maioria indígena, nomes de gente não são. Ou dos crepúsculos mínimos. Ou da sutileza que o tempo quase não estaciona-se em quatro. O de como amena sopra a cruviana em agosto.
Mas é pontual dizer: o segundo melhor de Fortaleza é partir.




Nota – este pequeno texto foi publicado em O Povo no aniversário da cidade de Fortaleza, no dia 13 de abril de 1997. Para uma resenha sobre o livro de memórias Imagens do Ceará, de Herman Lima, clique aqui. Algum tempo atrás, intrigado de haver tantos nomes sem nenhuma maior relevância para a memória e a história local, enquanto não havia uma única menção ao memorialista e contista de Tigipió, arrisquei escrever um pequeno verbete sobre Lima para a Wikipédia. E que pode ser achado aqui. De resto, o pintor Antônio Bandeira, a exemplo de Herman Lima, foi uma daqueles raros espíritos que conjugaram local e universal com uma desenvoltura que deveria ser melhor apanhada, como sugestão, pelas novas gerações. É o que hoje faz gente como Diatahy Bezerra de Menezes, em toda sua discrição. O próprio título de uma de suas obras, em dois volumes, dá atestado disso: O Pensamento Brasileiro de Clássicos Cearenses. [grifos nossos].


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domingo, 16 de agosto de 2009

veio me dizer assim: cummings


Herbert Bayer, Birthday Picture I, 1970



'your birthday comes to tell me this'



your birthday comes to tell me this


—each luckiest of lucky days
i’ve loved,shall love,do love you,was


and will be and my birthday is



e.e. cummings




'seu aniversário veio me dizer assim'



seu aniversário veio me dizer assim


—a cada novo dia de sorte em que
tenho amado,devo amar,te amo,foi


é e será meu aniversário,sim




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E pedras preciosas um pensamento: MacCaig


Richard Serra, 1967



Unposted Birthday Card

I would like to give you
a thought like a precious stone
and precious stones a thought
couldn't think of.

When you see the lolling tongues
in the shadows, I would like to change them
to gentle candles whose grace
would reveal only yours.

I would like to place you
where the fact of the fairytale
and the fact of the syllogism
make one quiet room
with a fire burning.

I would like to give you
a whole succession of birthdays
that would add up only
to this one: that would be
without years.


Norman MacCaig


Cartão de Aniversário não Postado

Eu gostaria de te dar
um pensamento como uma pedra preciosa
e pedras preciosas um pensamento
não podem pensar.

Quando vês línguas arfantes
entre sombras, gostaria de trocá-las
por suaves velas cujas graças
apenas revelariam a tua.

Eu gostaria de situar-te
onde o fato do conto-de-fadas
e o fato do silogismo
armassem o mesmo espaço
com uma lareira ardendo.

Gostaria de te dar
toda uma sucessão de aniversários
que se somariam apenas
a isto: tudo se daria
sem anos.



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