sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Lição de minimalismo, aula nº1: pobreza


Lambe-lambe em Aracaju na década de 70 [Silas de Paula]




Nota - foto pescada do Facebook de Silas de Paula [clique na foto para vê-la em amplo].



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Tudo no mundo é uma questão..


Charles and Ray Eames, Elephant Chair, 1945



gertrudes chegou


primeiro, pense quantos alfinetes cabem na cabeça de um elefante. segundo, freie seu desejo de esmagar algumas cabeças com patas de elefante e torturar algumas amantes com dedos de alfinetes. depois conte quantos elefantes cabem na sua cabeça delirante, enquanto você segue alfinetando gregos e troianos. hoje, jante carne de elefante e palite os dentes com alfinetes. tudo no mundo é uma questão de cabeças, alfinetes e elefantes.



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quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Maus hálitos, remelas, muco, vastos silêncios


John Cassavetes, Love Streams, 1984





Impossíveis bonitos possíveis

-Os amores impossíveis são os mais bonitos!
-Não sei se concordo.
-Como, não? Logo você que vive traduzindo Dante.
-O que acho bonito em Dante passa longe da impossibilidade do amor, mas o que ele escreveu, com a maestria com que escreveu - não só sobre amor. Apenas. Além disso, eram tempos outros... Tenho certeza de que os amores mais bonitos são possíveis. E, em especial, possíveis onde há rotinas, maus hálitos, remelas, muco escorrendo do nariz, vastos silêncios, o esquecer de comprar o gás, crianças chorando fora de hora, contas a pagar. E, ainda mais especialmente, aqueles sobre os quais nunca ninguém escreveu. Nem escreverá. Mas existem e existem, chama viva de encontro humano. Ao largo do clichê do jornal, longe de câmeras e sets de luzes, à distância de divãs em consultórios, não cantado por prosas, versos,  à parte de posts em redes de comunicação. Infinitamente mais ricos, diversos que nos roteiros dos filmes. Muito mais veementes que qualquer forma de exposição que soa tão mais coletiva e rala quanto a individualidade que cada um busca avidamente afirmar publicando-se despudoradamente e se tornando um só a mais dentro dessa massa informe que é comunicar-se à distância, em público.

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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Quase como sem que as sombras daqui antes lá estivessem


Otto Müller, Zwei Mädchen in den Dünen [Duas Garotas nas Dunas], 1924




Poema de Páscoa


Apesar da cópia das chuvas
o Siupé ainda rompe ao mar
por fios distintos --- sortidos
bancos de areia em seu leito
Poucos minutos antes, alaga
o curso em cisterna de pingos
recentes, e segue roendo duna
mais alta. Água morena e
menos salobre que a suspeita
ocorre macia, riscando à giz
de pequenas espumas muro
e areia. Pios de aves vários
coaxar de sapos em altercação
canina, vagos chocalhos e
cabras, nas encostas cerradas
da contramargem. Leste, à luz
oposta, distância, vermelhos de
telhado, arabesco de casuarinas
vão sinuoso mas plano, indistinção
vegetal de guindastes, no porto, lá
no enfim de tudo, coqueiros e alga
ao longo. Quase como sem que
as sombras daqui antes lá estivessem
e a ave dissesse as palavras
Taíba, Pecém, Siupé, e logo
por um acontecimento branco
onde nada tem a ver com palavras
o olho ressumasse o mar







Nota - embora a etapa do ano nada tenha de pascal, todo tempo é tempo de libertação. Após um fim-de-semana na Taíba, transcrevo, então, um poema escrito lá, durante a Páscoa de 2005. Originalmente o texto foi publicado em uma revista portuguesa chamada Cyberkiosk, que não mais existe. E posteriormente reproduzido no blogue de poesia Modus Vivendi, mantido pela portuguesa Ana Roque.


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sábado, 19 de setembro de 2009

Ninguém sem água: Auden


Gianfranco Frattini, 1983



First Things First


Woken, I lay in the arms of my own warmth and listened
To a storm enjoying its storminess in the winter dark
Till my ear, as it can when half-asleep or half-sober,
Set to work to unscramble that interjectory uproar,
Construing its airy vowels and watery consonants
Into a love-speech indicative of a Proper Name.

Scarcely the tongue I should have chosen, yet, as well
As harshness and clumsiness would allow, it spoke in your praise
Kenning you a godchild of the Moon and the West Wind
With power to tame both real and imaginary monsters,
Likening your poise of being to an upland county,
Here green on purpose, there pure blue for luck.

Loud though it was, alone as it certainly found me,
It reconstructed a day of peculiar silence
When a sneeze could be heard a mile off, and had me walking
On a headland of lava beside you, the occasion as ageless
As the stare of any rose, your presence exactly
So once, so valuable, so very now.

This, moreover, at an hour when only too often
A smirking devil annoys me in beautiful English,
Predicting a world where every sacred location
Is a sand-buried site all cultured Texans do,
Misinformed and thoroughly fleeced by their guides,
And gentle hearts are extinct like Hegelian Bishops.

Grateful, I slept till a morning that would not say
How much it believed of what I said the storm had said
But quietly drew my attention to what had been done
– So many cubic metres the more in my cistern
Against a leonine summer — putting first things first:
Thousands have lived without love, not one without water.

W. H. Auden



Primeiro as Prioridades


Acordado, nos braços de meu calor mesmo ouvia
a tempestade apreciando sua tempestuosidade no breu do inverno,
Até meu ouvido, semi-adormecido ou semi-sóbrio,
Pôr-se a rejuntar esse tumulto exclamativo
Erguendo suas arejadas vogais e úmidas consoantes
Em uma fala de amor que apontava para um Nome Próprio.

Dificilmente a língua que teria escolhido, ainda assim, tanto
Quanto a aspereza e a inépcia permitiam, falava em teu louvor
Reconhecendo-te afilhada da Lua e do Vento Oeste,
Com o poder de domar tanto monstros reais quanto imaginários,
Apreciando teu aprumo de estar num município serrano,
Aqui verde de propósito, ali azul por puro acaso.

Ruidosa como era, sozinho como, de certo, me encontrou
Reconstruiu um dia de peculiar silêncio
Em que um espirro se escutaria a uma milha, e então eu caminho
Numa península de lava a teu lado, a ocasião tão atemporal
Quanto a contemplação de qualquer rosa, tua presença exata
Tão única, tão valiosa, tão aqui e agora.

Isso, ademais, numa hora em que um tanto em recorrência
Um diabo afetado me perturbava em belo inglês,
Predizendo um mundo em que cada sítio sagrado
É  lugar sepulto sob areia como fazem os texanos cultos,
Desinformados e bastante extorquidos por seus guias,
E brandos corações são extintos como bispos hegelianos.

Agradecido, teria dormido até uma manhã que não diria
No quanto cria do que eu disse que a tempestade dissera
Mas aos poucos chamaria minha atenção para o que acontecera
—Uns tantos metros cúbicos a mais em minha cisterna
contra um verão leonino—propondo primeiro as prioridades:
Milhares viveram sem amor, ninguém sem água.







Nota – reza a anedota que o magnífico último verso deste poema foi ouvido, por Auden, dito por uma prostituta, num presídio de Nova York, quando em fila os prisioneiros eram levados para o banho. Na segunda estrofe, verso 3, o único trecho em que se dá a revelar, na tradução, o sexo da pessoa amada, transponho para o feminino por pura opção pessoal – quando se sabe da assumida e aberta homossexualidade de Auden. Talvez porque poemas de amor não tenham gênero, no fim de tudo. [Esta postagem foi feita em uma lan house, imaginem, na Taíba!]


* * *

Eu não me rendo a isso: Roubaud


Joseph Beuys, Bathroom of Circe, 1958




Dans l'espace minime

Je m'éloigne peu souvent de cet endroit comme si l'enfermement dans un espace minime te restituait de la réalité, puisque tu y vivais avec moi.

A sa descente, et comme à sa montée, le soleil pénètre, s'il y a du soleil, et suit son chemin reconnaissable, sur les murs, les planchers, les chaises, courbant, couchant les portes.

Je suis là beaucoup, à le suivre des yeux, à interposer ma main, sans rien faire, penser, complément d'immobilité.

Tu n'habites pas ces pièces, je ne pourrais dire cela, je ne suis pas hanté de toi, je n'ai plus, maintenant, que rarement l'hallucination nocturne de ta voix, je ne te surprends pas en ouvrant la porte, ni les yeux.

Cela qui m'occupe, entièrement, et me détourne du dehors, de m'éloigner, de quitter les chambres, les mouvements de soleil, c'est l'espace, l'espace seul, tel que tu l'avais empli d'images, de tes étoffes, de ton odeur, de ta sombre chaleur, de ton corps.

Disparaissant, tu n'as pas été mise ailleurs, tu t'es diluée dans ce minime espace, tu t'es enfouie dans ce minime espace, il t'a absorbée.

La nuit sans doute, si je m'éveille dans la nuit, avec l'angoisse de poitrine, la fenêtre énorme, à me toucher les yeux, bruyante, la nuit sans doute, je pourrais te donner forme, parler, te refaire, un dos, un ventre, une nudité humide noire, je ne m'y abandonne pas.

Je m'abandonne à l'allongement des fenêtres, de l'église, au golfe des toits à gauche de l'église, où se lancent les nuages, soir après soir.

Je laisse le soleil s'approcher, me recouvrir, s'étreindre, laissant ta chaleur un moment, pensant, sans croire, ta chair remise au monde, ravivée.



Jacques Roubaud




No espaço mínimo

Quase não me distancio deste lugar como se o encerramento num espaço mínimo te restituísse à realidade, já que nele vivias comigo.

No declive, como no aclive, o sol penetra, se há sol, e segue seu usual caminho, sobre as paredes, o piso, as cadeiras, vergando, deitando as portas.

Lá permaneço bastante, seguindo-o com os olhos, interpondo a mão, sem nada fazer, pensar, complemento de imobilidade.

Não habitas estes compartimentos, não se pode assim dizer, não sou assombrado por ti, agora não possuo mais, a não ser raramente, a alucinação noturna de tua voz, já não te pego abrindo a porta ou os olhos.

Isso me ocupa, totalmente, e me desvia do ar livre, de me distanciar, de sair dos quartos, os movimentos do sol, é o espaço, o só espaço, no modo como o havias ocupado de imagens, de teus panos, de teu cheiro, de tua sombra quente, do teu corpo.

Ao sumir, não foste posta alhures, mas diluída neste mínimo espaço, afundada neste mínimo espaço, ele te sugou.

À noite sem dúvida, se acordo à noite, com angústia no peito, a janela enorme, a me tocar os olhos, ruidosa, à noite sem dúvida, posso te dar uma forma, falar, te recompor, dorso, ventre, uma nudez úmida negra, não me rendo a isso.

Rendo-me ao alongamento das janelas, da igreja, ao golfo de telhados à esquerda da igreja, onde se lançam as nuvens, tarde após tarde.

Deixo vir o sol, me encobrir, apagar-se, largar um pouco de teu calor, pensando, sem crer, tua carne reposta no mundo, reanimada.






Nota – “No Espaço Mínimo” é um dos poemas que integram o livro Quelque chose noir [Algo de Negro (ou Qualquer coisa negra)], escrito por Jacques Roubaud em luto pela perda da esposa. A série de poemas do livro compõe uma das mais pungentes elegias contemporâneas.




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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Cuja presença revela o agora: Dante


John Flaxman, Beatrice and Dante, 1807




III.

'A ciascun'alma presa e gentil core'



A ciascun'alma presa e gentil core

nel cui cospetto ven lo dir presente,

in ciò che mi rescrivan suo parvente,

salute in lor segnor, cioè Amore.

Già eran quasi che atterzate l'ore

del tempo che onne stella n'è lucente,

quando m'apparve Amor subitamente,

cui essenza membrar mi dà orrore.

Allegro mi sembrava Amor tenendo

meo core in mano, e ne le braccia avea

madonna involta in un drappo dormendo.

Poi la svegliava, e d'esto core ardendo

lei paventosa umilmente pascea:

appresso gir lo ne vedea piangendo.



Dante Alighieri




III.

'Em toda alma cativa de gentil favor'



Em toda alma cativa de gentil favor,

cuja presença revela, de fato, o agora

para que minha escritura soe em demora,

saúdo seu senhor supremo, o Amor.

Eram já quase três horas, e o fulgor

esplendia em cada estrela céu afora

quando o Amor surgiu fora de hora

e sua chegada me causou horror.

Mas parecia alegre, o Amor, retendo

meu coração, e embalando prosseguia

em seus braços, a que amar entendo.

Quando a despertou, sem remendo

Ela, em recato, pôs-se à mesa e comia

Enquanto Ele aos prantos foi desaparecendo.





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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Que não seja a loquaz


Hélio Oiticica, Metaesquema Nº237, 1958



Tese & Elegia


há uma diferença
porque vivemos
em tempos de descrença
e de que tudo são extremos

suplementos, diferenças
postiças ou arregladas
que cada um estrategia
com sua personalidade
no ritmo de uma doença
que se chama identidade

o conceito que a tudo panacearia

no entanto, tudo assoma mais sofisticado
tanto mais se complica
e viver, que já é complicado
de fato, se torna uma trica

em especial, na academia
quando se é incapaz
de se sair dela para outra via
que não seja a loquaz

fala sobre o mundo em pós-graduação
como se -ah, insídia falaz -
só isso fosse capaz
de dar conta de uma solução

e, então, a solução assome sempre relativa
porque o absoluto, a morte, o fim, a verdade
não mais entram na deriva
dessa descartável relatividade




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terça-feira, 15 de setembro de 2009

De um argumento, a perspicácia


Jamie Isenstein, Clap Magic [Aplauso Mágico], 2007



Bem Pobrezinha


Até um tempo atrás, quando ela menorzinha, costumava assistir os desenhos do Discovery Kids com minha filha Mariana - pois a mais nova, Isabela, não é muito de se deter em frente à TV. E o certo é que, nos intervalos, em todo anúncio de brinquedos, ela dizia: "Oh, Pai, compra pra mim". Lembrando de um episódio antigo, passado na família de uma amiga, resolvi reverter o argumento. E, então, ela já com cinco anos e menos insistente por todo brinquedo que a TV quer que as crianças consumam a qualquer custo ou número, disse para ela: "Oh, Nana, compra pro papai". Ao que ela respondeu: "Papai, você não sabe, mas eu sou bem pobrezinha".




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Diante de um tabuleiro de xadrez: três citações


Ingmar Bergman, Det sjunde inseglet [O sétimo selo], 1957



O cinema tratado em 3 mini-tratados



Sem tempo/saco para este blogue, largo três citações: Bresson, Tarkovski e Cassavetes. A de Bresson remete em linha reta para certo filme de Bergman [O Sétimo Selo]. A de Tarkovski é um mini-tratado de semiótica e tradução. A de Cassavetes lembra o "descaso" pela ténica em si de Buñuel [embora Buñuel trabalhasse como um dos mais refinados diretores de fotografia da história do cinema, Gabriel Figueroa - ou por isso mesmo] :

i.
Escrever um bom poema é meio como diante de um tabuleiro de xadrez ganhar um lance da morte.”
[Robert Bresson]


ii.
No cinema, o elemento literário deve ser ‘filtrado’; ele deixa de ser literatura assim que o filme for concluído. Uma vez terminado o trabalho, tudo que resta é a transcrição escrita do filme. A decupagem técnica, que não pode, por qualquer definição ser chamado literatura: assemelha-se mais à descrição de algo que se viu feita a um cego.”
[Andrei Tarkovski]


iii.
"Prefiro um pouco fora de foco. Não quero que se admire a imagem. Não se cessa de olhar – e é aí que a gente sente".
[John Cassavetes]



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terça-feira, 8 de setembro de 2009

Segunda no Parque


Gamboa, no Parque do Cocó, em Fortaleza



Ei!


Ontem, no feriado, caminhei por uma hora no Parque do Cocó. O parque parece com qualquer parque urbano de qualquer metrópole brasileira. Estão sempre construindo algo. O Ibirapuera em São Paulo, por exemplo, já está coalhado de pequenos edifícios - o que inclui uma pavorosa "oca" desenhada por quem? Por Niemeyer, claro. No Parque das Pedreiras, em Curitiba, ao menos a Ópera de Arame é mais bela, e se ajusta melhor, pela trânsparência e leveza, ao entorno da vegetação e dos rochedos.
No Cocó - a exemplo dos demais - há uma mancha excessiva de gente. Uma mácula rondando-o. Pairando acima. Em certos trechos, um mau-cheiro de ureia. Noutros o de capim pisado e repisado pelos acolchoados tênis que calçam o desenvernizado novo-riquismo de nossa burguesia. A sinalização é de gosto duvidável. E enormes condomínios foram erguidos – sabe-se lá driblando que legislação urbana – na franja oeste do parque.
Com imensas varandas, dando as costas à avenida e virando-se para ele. Quantos vereadores imbecis foram subornados para permitir tanta desfaçatez, como sempre, nunca se vai saber...
Ainda assim o parque é um belo local: é mangue! E a vegetação dos manguezais é sempre bonita. Em certa trilha quase se fecha inteira, com as copas das árvores, de ambos os lados da alameda, tocando-se e formando um formidável túnel de invulgar beleza para se passar por baixo.
De tipos humanos havia de tudo. Desde um pai com uma criança – já não tão de braço – sempre no braço, assoviando, como se tentando atrair os passarinhos, que deviam assustar-se com seus trilos, até aqueles seres um pouco rechonchudos metidos em malhas colantes e falando sobre o quanto a aposentadoria de fulana está se depauperando, passando por um sujeito com uma pequena filmadora, aparentemente gravando um galho com um pequeno animal esmagado e mosquitos em torno.
Em geral, achei o parque mais ressequido do que esperava, depois de um ano de tão copiosas chuvas. Ao menos, uma clareira em que se costumava jogar futebol ainda permanece vasta lagoa, já um tanto rasa nesses começos de setembro.
Mas o detalhe mais precioso ocorreu no final. Quando já saía da seção das trilhas para a praça, um grupo de escolares chegava do subúrbio ao parque, tutelados por duas ou três “tias”. À minha frente caminhava um senhor de meia-idade, um tanto gordo e de gestos incisivos à cada passada. Um garoto, de seus onze anos, que antecipara-se ao grupo, ao se deparar com esse senhor e seu modo mecânico de andar disse-lhe:
–Ei, bicho fei'!
Em que outro local do mundo, um garoto de onze anos, vindo em uma excursão escolar, poderia ser mais maliciosamente sincero [e politicamente incorreto]? E há também que se notar essa rima entre o 'ei' inicial e o dialetal [e charmoso] 'fei' que fecha a frase, por a língua portuguesa falada no Ceará buscar essas assonâncias como um cassaco busca o olho das árvores para nidificar.

O senhor de meia-idade? Seguiu: mecânico, impassível.

De emblemático, naquele momento mesmo, encontraram-se a rua e o shopping-center. O interior e a capital. As cadeiras na calçada à noite e as guaritas dos condomínios. O ônibus e as vastas camionetes refrigeradas. A feira e as lojas de grife. A bodega e a lojinha de conveniência. A fala e a escrita.



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O supremo amor


Capa original do álbum A Love Supreme, do quarteto de John Coltrane, 1965




-->
Coltrane

quatro acentos em prece
e a precedência de Deus
todo o som ao que parece
vem de um adeus
a tudo que não é dito
em louvor e salmo
com o exclusivo fito
de tornar a vida um lago calmo
ao extremo
onde o vento sopra onde quer
a desenhar na água
um amor supremo




Nota - para um poema de Michael S. Harper sobre Coltrane, traduzido em Afetivagem, clique aqui. //A parte final da suíte de que é composto o álbum A Love Supreme é como se Coltrane "declamasse" no sax um poema que ele próprio escreveu e encontra-se no encarte. Muitos entrevêem o poema/tema musical como uma homenagem aos pregadores afro-americanos (como, de resto era o caso de um tio de Coltrane). O poema fecha com as seguintes palavras: "Elation. Elegance. Exaltation. All from God. Thank You God. Amen." ["Elação. Elegância. Exaltação. Todas dons de Deus. Obrigado, Senhor. Amém."]

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'Gostava' de ter ido..


Christian Rohlfs, Hunde [Cachorros], 1925


Dois Vira-Latas e um final com o verbo em tempo português na madrugada


Depois de um dia, no meio de livros, dicionários, coisas bolorentas - só interrompido para uma pequena caminhada à tarde, no parque - faltou cigarro. O ponto é que já eram quase duas da madrugada. Sem problema. Vou sempre ao posto de gasolina mais próximo, dois quarteirões. A qualquer hora do dia. Ou da noite. Jamais tive problemas com isso.

Hoje, no entanto, ocorreu uma quase epifania. Após comprar os cigarros e ouvir os queixumes do frentista porque o Fortaleza ameaça derrapar para a terceira divisão, subia a pequena ladeira, um pouco sombria, do quarteirão, em cuja quina há o posto. De, repente, lá de cima, vinham dois vira-latas em disparada. Pareciam tão ímpios e livres na madrugada, que tive vontade de segui-los, na embalada. Ao se acercarem de mim, diminuíram o passo, passaram às minhas costas e rosnaram. Virei-me. Encarei-os. Fiz a clássica pose de apanhar a pedra imaginária no asfalto da rua. E eles retomaram o embalo madrugada afora com ainda maior ritmo e vivacidade. Livres, como só vira-latas podem ser.

Talvez tenham ido bater no Equador ou nas Filipinas. Gostava de ter ido com eles.



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domingo, 6 de setembro de 2009

Até tornar o espírito: Dante


André Masson, Myself Drawing Dante, 1940



XX
'Amore e 'l cor gentil sono una cosa'

Amore e 'l cor gentil sono una cosa,
sì come il saggio in suo dittare pone,
e così esser l'un sanza l'altro osa
com'alma razional sanza ragione.
Falli natura quand'è amorosa,
Amor per sire e 'l cor per sua magione,
dentro la qual dormendo si riposa
tal volta poca e tal lunga stagione.
Bieltate appare in saggia donna poi,
che piace a li occhi sì, che dentro al core
nasce un disio de la cosa piacente;
e tanto dura talora in costui,
che fa svegliar lo spirito d'Amore.
E simil face in donna omo valente.

Dante Alighieri


XX
'Amor e coração, uma só cousa'

Amor e coração, uma só cousa
Como propõe o sábio em seu ditado,
Logo, ser sem o outro, um só ousa
Feito alma racional sem racionado.
A natureza a cada faz apaixonado:
Amor por amo, e o coração repousa-
O na moradia em que o tem hospedado
Por estadia breve ou longa pousa.
Na mulher, então, surge a beleza
Que apraz aos olhos, e, dentro do peito,
Ateia a chama do desejo ardente
Que por tanto tempo o inflama, acesa,
Até tornar o espírito do Amor refeito
E da mulher extrair o homem valente.




* * *

sábado, 5 de setembro de 2009

Tudo que mundo a despeito do homem


Robert Adams, 1976



Bach



no mangue, mais perto do fluxo do rio
das estrias nas conchas, da pinga
de chuva sobre a areia das dunas
—translúcida água de restingas
com lodos, seixos tal qual ou o pavio
das estrelas na lua nova ou na tuna
as aquosas rubras flores em agosto—
assim a música de joão sebastião
luz não sobre vidro, mas sobre rosto
de água, espelho que olhar só convém,
a saber, porque nada pode ser mais irmão
de tudo que é mundo a despeito do homem




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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Suficienciando este nosso mundo mortal: Auden


Nan Goldin, Nan and Brian in Bed, 1983



Lullaby


Lay your sleeping head, my love,

Human on my faithless arm;

Time and fevers burn away

Individual beauty from

Thoughtful children, and the grave

Proves the child ephemeral:

But in my arms till break of day

Let the living creature lie,

Mortal, guilty, but to me

The entirely beautiful.


Soul and body have no bounds:

To lovers as they lie upon

Her tolerant enchanted slope

In their ordinary swoon,

Grave the vision Venus sends

Of supernatural sympathy,

Universal love and hope;

While an abstract insight wakes

Among the glaciers and the rocks

The hermit's carnal ecstasy.


Certainty, fidelity

On the stroke of midnight pass

Like vibrations of a bell

And fashionable madmen raise

Their pedantic boring cry:

Every farthing cost,

All the dreaded cards foretell,

Shall be paid, but from this night

Not a whisper, not a thought,

Not a kiss nor look be lost.


Beauty, midnight, vision dies:

Let the winds of dawn that blow

Softly round your dreaming head

Such a day of welcome show

Eye and knocking heart may bless,

Find our mortal world enough;

Noons of dryness find you fed

By the involuntary powers,

Nights of insult let you pass

Watched by every human love.


W. H. Auden



Acalanto


Deita tua cabeça adormecida, meu amor,

Humana em meus braços sem fé;

Tempo de febres a queimar então

A singular beleza de

Crianças pensativas, e a cova

Prova quão efêmera a criança:

Mas em meus braços até o raiar do dia,

Que a criatura viva aninhe-se,

Mortal, culpada, mas para mim

Integralmente bela.


Alma e corpo não têm fronteiras:

Para amantes que jazem sobre

Sua tolerante vertente encantada

Em ordinária calma,

Solene a visão que Vênus envia

De simpatia sobrenatural,

Amor universal e esperança;

Enquanto um lampejo abstrato desperta

Entre geleiras e rochedos

O êxtase carnal do eremita.


Decerto, fidelidade

Ao toque da meia-noite passa

Como o dobrar de um sino

E dândis loucos alteiam

Seu enfadonho alarido pedante:

Cada quarto de centavo custa,

Tudo que as temíveis cartas prevêem,

E deve ser pago, mas que nesta noite

Nem um sussurro, nem uma idéia,

Nem um beijo ou expressão se percam.


Beleza, meia-noite, a visão morre:

Deixa a cruviana que sopra

Suave sobre tua cabeça em sonhos

Mostrar um dia bem-vindo

Ao olho, abençoando o peito que pulsa,

Suficienciando este nosso mundo mortal;

Luas de aridez te encontrem nutrido

Por forças involuntárias,

E que passes noites de insulto

Assistidas por todo humano amor.




* * *

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O que mais temos: Lawrence


Robert Talbot, Wheat, c.1854




On the Balcony

In front of the somber mountains, a faint, lost ribbon of rainbow]
And between us and it, the thunder;
And down below, in the green wheat, the labourers
Stand like dark stumps, still in the green wheat.

You are near to me, and your naked feet in their sandals,
And through the scent of the balcony’s naked timber
I distinguish the scent of your hair; so now the limber
Lighting falls from heaven.

Adown the pale-green, glacier-river floats
A dark boat through the gloom – and whither?
The thunder roars. But still we have each other.
The naked lightnings in the heaven dither
And disappear. What have we but each other?
The boat has gone.


D.H. Lawrence



Na Varanda

Diante das serras sombrias, uma débil, escassa faixa de arco-íris
E entre nós e ele, o trovão;
E lá abaixo, no trigal verde, os lavradores
Firmam-se como cepos negros, quietos no trigal verde.

Você está rente a mim, seus pés nus nas sandálias,
E apesar do aroma de madeira crua da varanda
Distingo o aroma de seus cabelos; e então a ágil
Faísca cai do céu.

Abaixo no rio-enregelado em verde pálido flutua
Um barco escuro em meio à treva – e até onde?
O trovão ruge. Mas ainda temos um ao outro.
As faíscas nuas no céu sacodem
E somem. O que mais temos senão um ao outro?
O barco se foi.



* * *

Para além da baía de meus braços: Walcott


Georges-Pierre Seurat, Port-en-Bessin, 1888



Midsummer, Tobago


Broad sun-stoned beaches.


White heat.

A green river.


A bridge,

scorched yellow palms


from the summer-sleeping house

drowsing through August.


Days I have held,

days I have lost,


days that outgrow, like daughters,

my harbouring arms.


Derek Walcott



Verão a meio, Tobago


Amplas praias limadas de sol.


Calor branco.

Um verde rio.


Uma ponte,

coqueiros em ressequido amarelo


desde a casa de praia, sonolenta

dormitando agosto afora.


Dias que ganhei,

dias que perdi,


dias que cresceram, feito filhas,

para além da baía de meus braços.



* * *

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Pelo meio da cidade descontente: Dante


Dorothea Lang, The Road West, New Mexico, 1938


-->
XL
'Deh peregrini che pensosi andate'
Deh peregrini che pensosi andate,
forse di cosa che non v'è presente,
venite voi da sì lontana gente,
com'a la vista voi ne dimostrate,
che non piangete quando voi passate
per lo suo mezzo la città dolente,
come quelle persone che neente
par che 'ntendesser la sua gravitate?
Se voi restaste per volerlo audire,
certo lo cor de' sospiri mi dice
che lagrimando n'uscireste pui.
Ell'ha perduta la sua Beatrice;
e le parole ch'om di lei pò dire
hanno vertù di far piangere altrui.

Dante Alighieri


XL
'Ah, peregrinos que passais pensando'
Ah, peregrinos que passais pensando
Quiçá em coisa que não está presente,
Vós vindes da mais distante gente,
Como atesta a veste a vos cobrir o bando.
Que ao passar nada seguem pranteando,
Pelo meio da cidade descontente,
Como seres que inadvertidamente
Ignorassem o pesar que a está martirizando?
Mas se vos detivésseis um pouco a ouvi-lo,
O pesaroso coração me diz
Que partiríeis com os olhos a rasar:
O burgo perdeu sua Beatriz;
E contado o fato em mais diverso estilo
Tem a capacidade de fazer chorar.



Nota - para mais de Dante em Vita Nova: aqui. [E de lá há um linque para um terceiro soneto traduzido].


* * *

Uma menos remota distância


Antônio Bandeira, Capri, 1957




Vinte e Tantas Casas & uma Ilha Solteira



Dizem que amor é trabalho diário. Talvez. Mas se assim for, além de egoísta, tem muita gente preguiçosa neste mundo. Acho que a sugestão foi feita por um amigo alemão, Helmut Schmmitz, que por seu turno, a pescou do filme “Sur”, de Solanas. Helmut era um apreciador de tangos e um sujeito de refinados humores.
A etimologia, essa ciência deliciosamente imprecisa, nos diz que trabalho, a palavra neo-latina equivalente a work, Arbeit, vêm de ‘trepalium’, um instrumento de tortura, espécie de pau-de-arara da época do Império Romano.
Mas, também é fato que muita gente trabalha, e com prazer. E o fruto desse trabalho é algo de uma incomensurável responsabilidade.
Entre essa parcela, encontra-se a dos arquitetos. Estes têm de modelar o palco em que famílias inteiras vão medrar e se dissipar no espaço dos anos. Uma responsabilidade à toda prova.
Seguia pensando nisso no que caminhava de manhã bem cedo, pelas ruas da Aldeota, nas cercanias da casa de meus pais. Conheço de certas ruas, cada casa, um tanto como se elas e não seus donos, fossem os amigos íntimos. E me exaspera um bocado saber que estão construindo um segundo pavimento improvisado sobre aquela platibanda. Ou o que é pior, a fachada será maquilada com lambris para a instalação de um consultório, um escritório de engenharia, uma locadora de vídeos.
Porém, ao mesmo tempo, alguns dos sítios mais impressionantes são casas demolidas. Digo melhor, parcialmente demolidas, justo na etapa em que elas ainda resguardam o assoalho e um certo vestígio de divisão, do que um dia foram paredes. Espécie de maquetes vazadas, plantas baixas ao vivo e literalmente. Espectros do que foram nos muitos anos em que habitadas por duas ou três gerações. Fortaleza não suporta mais que esse lapso.
Ela era uma senhora baixa metida em um vestido inteiriço e amarelo-claro. Era um pouco obesa. E pisava com vagar e olhos comprimidos a calçada. Portava uma sacola de feira, dessas em plástico verde, e caminhava junto aos muros, com cílios longos, grisalha, absorta em seus pensamentos:
“Desculpe, a senhora não é a avó do Valdir?”, eu disse.
“Héin?”, ela exclamou, revoltando o corpo para trás.
Repeti a pergunta noutros termos e pausadamente.
Foi só quando ela me avalizou sem mais receio:
“Ah, você é o jornalista, o, o -- o que mora em São Paulo”, disse.
“É, bem -- na verdade, esse é meu irmão Flávio. Eu sou o Carlos, o mais velho, sou professor. E..”
“Sim, sim. Você falou Valdir. Eu chamo ele de Júnior, por causa do pai dele que também era Valdir. É um menino de valor. Inteligente. A mulher dele é que não presta, viu? Última vez que eles estiveram aqui, com meu marido doente, imagine que ela queria por que queria que eles ficassem com o quarto dele. E eu disse, ‘não enquanto eu viva for’. Meu marido morreu, ano passado.”
“Sinto.”
“O Júnior é que está morando no fim do mundo, meu filho, com a mulher e minha bisneta. É uma cidade, um interiorzinho desses de São Paulo: Ilha Redonda.”
Ao se despedir, ela disse:
“Meu nome é Maria José -- e acrescentou -- apareça. A minha casa é aquela do muro baixo, de azulejos. Minha família já teve vinte e tantas casas. E, agora, no fim da vida, moro de aluguel. Apareça, vocês são uns meninos ótimos. O Júnior sempre fala em vocês. Minha casa é a do muro baixo, todo mundo sabe.”
“Ilha Redonda”, ponderei. Velha mímica das palavras. Eu havia estado com o neto dela, certa noitada em julho passado, no apartamento de Flávio, em São Paulo. Na verdade, Valdir, professor de Física em início de carreira, morava em Ilha Solteira, próximo à fronteira do Mato Grosso do Sul. E pensei, no quanto para ela uma ilha redonda, simétrica, acessível, junção de duas metades, devia soar menos remota que uma ilha solteira.



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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Por meio de uma luz oblíqua e cinza


L.S. Lowry, Ordsall Lane, Salford, 1927


Sedex ou Carta Registrada?


Há já uma distância entre esta sala de agência de publicidade e este cartão com a reprodução de um quadro de Lowry, que releio de novo. E de novo me vem a imagem de jangadas na Enseada do Mucuripe, as miúdas lavandeiras passeando em volta:

“É pra mandar por Sedex ou carta registrada?”, me pergunta o office-boy.

São quase três e meia da tarde. E Miles Davis despeja um assurdinado “I Fall in Love too Easily” na sala da agência.

Eis o meio-ambiente ideal para se pensar na morte da bezerra. Ou de uma manada delas. Ou então, se é ou não razoável responder a este cartão que a moça me mandou desde Manchester.


Revejo o frio dia de outono. E chegar a Piccadilly Station para uma estação de águas no olhar dela. E logo ambos seguindo até pequenas livrarias escondidas em porões. A loja de stationery, o bazar arranchado no velho prédio vitoriano de esquina. O pistácio escorrendo sobre o pudim; as cadeiras altas num balcão debruçado sobre a rua. O anoráqui púrpura e as gastas botas verdes que ela usava. Ela me presenteando com uma edição do Lucky Jim, de Amis, comprado num pequeno sebo. A meditação das vidraças. Os jornaleiros apregoando o Mirror, com vozes tão distorcidas. Como são adoráveis os pregões em qualquer cidade do mundo. As lojas de caridade – a Oxfam, onde chapéus do Equador custavam a bagatela de quinze libras. As de roupas usadas, e ela comprando um colete verde, de curdorói.

Ao centro da praça a estátua da Rainha Vitória sempre constipada, com seu véu na cabeça e as generosas bochechas, sob aquela chuva fina e o dia gris.

E então estamos na galeria de arte, sob um relógio austero, subindo as escadarias até dar no salão onde os homens-palito de Lowry passeiam sua solidão desconjuntada por uma cidade vermelha e sem remissão. Ela sentada, tão quieta, artesã de silêncios, contemplando por entre arcos três salões iluminados em diferentes intensidades. Bastante, bastante quieta. Uma ruminação de séculos.

Mais adiante, estamos no ônibus para Longsight. E logo fazendo compras num mercado indiano. Barganhado teatralmente. Voltando para casa com duas garrafas de vinho romeno. Cozinhando. Jantando, rindo, brincando com Dizzy, o bichano. Tramando acordes de bossa nova num pequeno violão de cravelhas rijas, impossível de afinar. E nos despindo sob uma profusão de cobertas no aconchego do quarto aquecido por inércia: a samambaia-cabelo-de-moça no peitoril da janela quando o dia amanhecia, tarde, por meio de uma luz oblíqua e cinza:


“Por Sedex, por favor”, respondo, enquanto afixo o cartão no painel de cortiça.



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