terça-feira, 1 de setembro de 2009

Por meio de uma luz oblíqua e cinza


L.S. Lowry, Ordsall Lane, Salford, 1927


Sedex ou Carta Registrada?


Há já uma distância entre esta sala de agência de publicidade e este cartão com a reprodução de um quadro de Lowry, que releio de novo. E de novo me vem a imagem de jangadas na Enseada do Mucuripe, as miúdas lavandeiras passeando em volta:

“É pra mandar por Sedex ou carta registrada?”, me pergunta o office-boy.

São quase três e meia da tarde. E Miles Davis despeja um assurdinado “I Fall in Love too Easily” na sala da agência.

Eis o meio-ambiente ideal para se pensar na morte da bezerra. Ou de uma manada delas. Ou então, se é ou não razoável responder a este cartão que a moça me mandou desde Manchester.


Revejo o frio dia de outono. E chegar a Piccadilly Station para uma estação de águas no olhar dela. E logo ambos seguindo até pequenas livrarias escondidas em porões. A loja de stationery, o bazar arranchado no velho prédio vitoriano de esquina. O pistácio escorrendo sobre o pudim; as cadeiras altas num balcão debruçado sobre a rua. O anoráqui púrpura e as gastas botas verdes que ela usava. Ela me presenteando com uma edição do Lucky Jim, de Amis, comprado num pequeno sebo. A meditação das vidraças. Os jornaleiros apregoando o Mirror, com vozes tão distorcidas. Como são adoráveis os pregões em qualquer cidade do mundo. As lojas de caridade – a Oxfam, onde chapéus do Equador custavam a bagatela de quinze libras. As de roupas usadas, e ela comprando um colete verde, de curdorói.

Ao centro da praça a estátua da Rainha Vitória sempre constipada, com seu véu na cabeça e as generosas bochechas, sob aquela chuva fina e o dia gris.

E então estamos na galeria de arte, sob um relógio austero, subindo as escadarias até dar no salão onde os homens-palito de Lowry passeiam sua solidão desconjuntada por uma cidade vermelha e sem remissão. Ela sentada, tão quieta, artesã de silêncios, contemplando por entre arcos três salões iluminados em diferentes intensidades. Bastante, bastante quieta. Uma ruminação de séculos.

Mais adiante, estamos no ônibus para Longsight. E logo fazendo compras num mercado indiano. Barganhado teatralmente. Voltando para casa com duas garrafas de vinho romeno. Cozinhando. Jantando, rindo, brincando com Dizzy, o bichano. Tramando acordes de bossa nova num pequeno violão de cravelhas rijas, impossível de afinar. E nos despindo sob uma profusão de cobertas no aconchego do quarto aquecido por inércia: a samambaia-cabelo-de-moça no peitoril da janela quando o dia amanhecia, tarde, por meio de uma luz oblíqua e cinza:


“Por Sedex, por favor”, respondo, enquanto afixo o cartão no painel de cortiça.



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