quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ao fim do romance perfeito

©2009-2010 Blue-Fish


A Última Frase do Gatsby



“So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past”.


F. Scott Fitzgerald


[“Assim nos debatemos, barcos contra a corrente, gerados de volta incessantemente no passado”].


* * *

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Estranha a seu tempo e aos Países Baixos: Veermer por Ungaretti

Jan Veermer, A Lady at the Virginals with a Gentleman, 1625

Jan Veermer


La sorte di Veermer è tra le più straordinarie non tanto per la sua tarda comparsa nel campo della fama, quanto pela luce de gloria definitiva che gli è venuta dall'elogio di Marcel Proust. É noto che fino al 1866, fino alla segnalazione fattane sulla “Gazette des Beaux-Arts” alla fine di quell'anno, Théophile Thore chiamato de solito Bürger, pseudonimo con il quale aveva firmato il saggio su Veermer, l'opera de Veermer era passata, anche da vivo, quasi inosservata. Anche come uomo é straordinario ingegnato a non lasciare di sé alle cronache altra traccia salvo quella derivata dal proseguimento con semplicità delle peripezie d'una vita di buon padre di famiglia e di modesto cittadino di Delft. Il fatto più saliente accadutogli fu d'essere stato scelto dai suoi colleghi della Ghilda a esercitare durante un anno le funzioni di decano. Era cattolico e, in quegli anni, poteva in Olanda non essere sempre facile tirare avanti con tranquillità a chi lo fosse: ma non trapela affatto, dalla sua pintura né dalla sua biografia, che gli fosse difficile, e nemmeno che problemi religiosi potessero inquietarlo.
Ma la sua pittura se manifesta come insolita ai suoi tempi e prima, insolita nei Paesi Bassi, i anche altrove. Dei pittori che in Europa lo precedettero o furano suoi contemporanei, solo un dipinto gli si può avvicinare. Si tratta della Madonna col Bambino di Piero della Francesca.
[…]

Giuseppe Ungaretti


[Extrato inicial de um artigo retirado de Per Cognoscere Ungaretti – Antologia delle opere a cura di Leone Piccioni – Mondadori, Milano, 1993]


Jan Veermer


O destino de Veermer está entre os mais extraordinários nem tanto pela sua tardia aparição no campo da fama, quanto pela luz de glória definitiva que lhe advém do elogio de Marcel Proust. É de notar que até 1866, até a menção feita na “Gazette des Beaux-Artes” ao final daquele ano por Théophile Thore, vulgo Bürger, pseudônimo com o qual havia escrito o ensaio sobre Veermer, a obra de Veermer era passado; ainda que viva, quase despercebida. Também como homem é extraordinário engenho o não deixar de si à crônica outro traço salvo a derivação com simplicidade da peripécia de uma vida de bom pai de família e modesto cidadão de Delft. O fato mais notável que lhe ocorreu foi o de haver sido escolhido por seus colegas da Guilda a exercer durante um ano a função de decano. Era católico e, por aqueles anos, poderia na Holanda nem sempre ser fácil sê-lo com tranquilidade: mas não manifesta-se de todo, na sua pintura ou na sua biografia, que lhe fosse difícil sê-lo, ou sequer que problemas religiosos pudessem inquietá-lo.
Porém a sua pintura se apresenta estranha a seu tempo e, antes, estranha aos Países Baixos, e também alhures. Dos pintores que na Europa o precederam ou foram seus contemporâneos, só uma tela pode-se-lhe avizinhar. Trata-se da Virgem com o Menino de Piero della Francesca.
[…]


CODA

De interesse este artigo de Ungaretti sobre Veermer. Aliás, Veermer é um pintor bastante amado por poetas [para um poema de Murilo Mendes sobre Veermer, clique AQUI e veja ao final da postagem]. De outro modo, o autor de Il Porto Sepolto, viveu alguns anos no Brasil e foi professor da USP. Posteriormente, num ciclo de palestras, em São Paulo, em 1966, conheceu e teve uma ligação amorosa – que prolongou-se por carta durante anos – com uma poeta ítalo-paulistana. À época tinha 78 anos; ela, 26. Ungaretti foi também um grande tradutor – inclusive de Homero e dos clássicos. Mas também verteu para o italiano vários poetas brasileiros, como Drummond, Bandeira, Mário de Andrade e Vinícius de Moraes, entre outros. Nutria um particular apreço pela “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, que verteu assim para o italiano:


Canzone dell'esilio

La mia terra ha la palmiera
D'onde canta il sabïà;
Qua anche trillano gli uccelli,
Ma il gorgheggio è un altro là.

Ha più stelle il nostro cielo,
I verzieri hanno più fiori,
C'è più vita ai nostri boschi,
Vita la più trova amori.

Se di notte penso, solo,
Il piacere cerco là,
La mia terra ha la palmiera
D'onde canta il sabïà.

Ha la terra mia splendori,
Non li trovo uguali qua;
Se – di notte, solo – penso,
Il piacere cerco là;
La mia terra ha la palmiera
D'onde canta il sabïà.

Non permetta Iddio ch'io muoia
Si non prima torne là
E rigoda gli splendori
Che qua mai non troverò,
E riveda la palmiera
D'onde canta il sabïà.


Nota – as palavras “palmiera” [palma, palmizio] e “sabiá” não existem no idioma italiano. Ungaretti as manteve com ligeiras variâncias de sílabas ou acentuação e introduziu notas para ambas.

* * *

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

é provável que goste do arrepio: cummmings

 Harry Holland, Lovers, 1982




'i like my body when it is with your'

i like my body when it is with your
body. It is so quite new a thing.
Muscles better and nerves more.
i like your body. i like what it does,
i like its hows. i like to feel the spine
of your body and its bones, and the trembling
-firm-smooth ness and which i will
again and again and again
kiss, i like kissing this and that of you,
i like, slowly stroking the, shocking fuzz
of your electric fur, and what-is-it comes
over parting flesh… And eyes big love-crumbs,

and possibly i like the thrill

of under me you so quite new


e.e. cummings



'gosto de meu corpo quando está junto'

gosto de meu corpo quando está junto
do seu. É mesmo uma tal novidade.
Muscula melhor, há mais nervos.
gosto do seu corpo. do que ele faz,
dos seus modos. gosto de sentir a coluna
de seu corpo e os ossos, e a trêmula
firme-maciez a qual beijarei
de novo, de novo e de
novo. gosto de beijar isso, aquilo em você
gosto, pulsando lento, de sentir o batimento
da sua pele elétrica, o que quer que venha
da carne bifurcada... E olhos, grandes farelos de amor,


é provável que goste do arrepio

de que sob mim você siga tão cio


* * *

domingo, 12 de dezembro de 2010

Um Homem de Bem é Difícil de Achar

Robert Aldrich, Kiss Me Deadly [A Morte num Beijo], 1955


Revirando um conto de O'Connor


I. Contextura


Há um correspondente em outras linguagens artísticas para uma determinada expressão. Para um estilo – essa palavra que hoje tornou-se quase palavrão. E soa tanto redutor que se jogue sobre o fazer literário de Flannery O'Connor o rótulo de “gótico sulista”. Ao modo como se põe no mesmo saco autores tão distintos – e tão estigmatizados por um rótulo – como os ditos “regionalistas de 30”, no Brasil.
Escritores que, de resto, tiveram um impacto tremendo na lusofonia. A ponto de serem tomados como modelo pelos “claridosos” – a geração de escritores que inaugura o modernismo em Cabo Verde e sente nos escritores brasileiros uma espécie de empatia e desenredamento da cor local raramente plasmado pelo que lhes chegava de uma Lisboa um tanto sufocada pelo inauguro do salazarismo.
Na verdade, “regionalistas de 30” só existem na mente pouco fértil de pseudo-escritores (ou pseudo-críticos) como Diogo Mainardi – que, à parte sua midiática presença em programas como Manhattan Connection ou algo semelhante, caso de Edney Silvestre – jamais emendou duas setenças que sequer pudessem lamber as botas do que segue proposto por Graciliano Ramos em Infância ou Memórias do Cárcere. Ou por Lins do Rego em Fogo Morto ou Pedra Bonita.
Assim, os autores sulistas dos Estados Unidos são entrevistos com a mesma reserva, pelo patriciado de Nova York, de New England, com que autores do Nordeste do Brasil são entrevistos no Eixo Rio-São Paulo, e mais a Sul. As latitudes apenas invertem-se e, no caso do Brasil, mesmo em seu eixo mais "central" (ou seja, onde o país é mais província, como em São Paulo, a cidade) não chegam a atingir o clima europeu – prerrogativa de Buenos Aires, Montevidéu, Santiago do Chile, na América do Sul.
Mas voltemos a O'Connor e a correspondência com outras linguagens. Está claro que se há um equivalente para a literatura de O'Connor, isso se dá com certo cinema no qual, de uma ou de outra forma, se pode vislumbrar um jogo de afecções pessoais mais bem tramado. Um cinema confeccionado na década de 50, fotografado em preto e branco e retratando os últimos estertores do American Dream.
Mas talvez seja melhor, em vez de pôr um rótulo nesse cinema, apenas falar mais sobre ele.
A solução mais fácil seguiria, então, por aproximar a quota de humor negro de O'Connor do filme noir. Mas se deve desconfiar das soluções fáceis. E, no caso, escritores como Raymond Chandler e Dashiell Hammett estão obviamente mais próximos do filme noir. Seus protagonistas são, em geral, detetives profissionais, aparentemente misóginos; mas, em verdade, frágeis anti-heróis, em especial quando confrontados a fortes figuras femininas.
O fato de o humor negro de O'Connor aproximar-se de algum cinema – a granel, tido equivocamente como mais “psicológico” – dos anos 50 não nos deve enganar. Não nos deve enganar até mesmo o fato de um autor como Cormac McCarthy haver fornecido cinco décadas depois material semelhante ao de O'Connor para ser adaptado à tela pelos hábeis irmãos Cohen, em No Country for Old Men. O romance é de 2005; o filme, de dois anos depois. E ambos são extremamente legíveis e assistíveis.
Essa assistibilidade, aliás, é um aspecto a se destacar em O'Connor. A visualidade de seus relatos é limítrofe. O modo como a paisagem – em geral da Georgia, do Sul – assoma tão intensa e suplementada por diálogos estilizadamente idiomáticos, que o leitor “vê” o que era para estar apenas sugerido na escrita.
Assim, parece um tanto manifesto que se possa vislumbrar algo análogo à narratividade de O'Connor em alguns dos filmes de Howard Hawks, de John Huston, de Anthony Mann, de Billy Wilder, de Robert Aldrich, de Nicholas Ray, de Samuel Fuller, de Sidney Lumet, de Don Siegel. Até mesmo de Sam Peckinpah. Ou de forma mais distante, por conta do excesso de maneirismos, de Hitchcock.
E, no entanto, não de realizadores que, aparentemente, estariam mais próximas dela ou por raízes irlandesas, caso de John Ford; ou pela densidade das personagens, caso de Chaplin – em especial, em seus filmes falados; ou mesmo pela origem sulista, caso de Robert Altman. E, em todos esses casos, o que ocorre é uma pulsão para o épico que inexiste em O'Connor. Embora, paradoxalmente, ela toque em questões mais épicas que qualquer um desses realizadores.
De resto, Huston chegou a adaptar Wise Blood, o romance mais ressonante de O'Connor, para a tela, numa produção modesta, em 1979. E é um filme enxuto, simples, estimável. Onde se pode destacar, em especial dois aspectos: a captação de certo colorido, de certa ambiência sulista; e a esplêndida performance de Harry Dean Stanton.
Feito este arrodeio, podemos passar uma vista sobre “A Good Man is Hard to Find” [“Um Homem de Bem é Difícil de Achar”].


II. A coisa em si quase em si

uma paráfrase da trama [se você deseja ler o conto sem saber o final da história (um dado importante), é mais razoável que veja esta sinopse depois da leitura], o conto pode ser encontrado online, aqui – e sua extensão em livro, na edição que manuseio, é de apenas 17 páginas:




A protagonista de “A Good Man is Hard to Find” é chamada simplesmente de “a Avó”. A Avó é viúva e mora com filho Bailey; com a esposa deste, que é sempre chamada tão-só de “a mãe das crianças” [“the children's mother”]; e as crianças: John Wesley, June Star, cerca de dez e oito anos, respectivamente, e uma menininha de colo, que é referida apenas como “o bebê”.
Há muita coisa entrelinhada sobre “a Avó”. Ela é expansiva, comunicativa, exuberante. Ela é também protestante, mas isso não está expresso. Ela é vaidosa, o que está muito bem expresso. Ela é voluntariosa; o que conforma o próprio enredo do conto. É dominadora, uma vez que quase sempre logra estabelecer sua vontade acima das do filho e da nora.
Junto com a neta, June Star, a Avó forma a dupla de estrelas da companhia, em família. Já que o filho, Bailey, e sua mulher, “a mãe das crianças”, são tipos grises, aparentemente sem qualquer appeal, embora se mostrem bem mais coerentes, cuidadosos e responsáveis pelos demais.
A família sai em viagem de férias e, de pronto, a Avó sugere que não se deve ir à Flórida – para onde já se havia ido em outras temporadas – porém ao Tenessee, onde havia parentes e conhecidos não visitados a tempos por ela. A proposta é, de imediato, descartada pelo filho Bailey, assim como pelas crianças.
As crianças são bastante distintas. Especialmente quanto ao humor. E isso parece ser importante para O'Connor – como uma sorte toda particular de livre-arbítrio. Livre-arbítrio até para rir ou não de certas situações ou observações. O tema do riso ou do siso, recorre também, da mesma forma, em outro conto da autora, “Greenleaf”, onde a reação de também dois irmãos diante de certa declaração da mãe é inteiramente diversa.
Em “Um Homem de Bem...”, o garoto, John Wesley – que certamente não porta este nome em vão, pois nada aparece assim tão gratuitamente nos relatos de O'Connor – apesar de responder à Avó com certa crueza de modos em algum momento, é, no íntimo, um espírito pouco tenaz ou obstinado. É um fraco. Como, aliás, costumam ser os personagens masculinos de O'Connor. Ou o próprio pai de John Wesley, que é filho único de mãe tão opressora. E, de resto, John Wesley é quase uma piada diante do terrível gênio da irmã, June Star.
Logo ao início da viagem, ao ouvir a Avó contar um episódio da juventude, onde, de resto, há um ranço racista extremamente forte a reação dos irmãos é oposta. O garoto ri à bandeiras despregadas. A garota, não. Porém a reação da garota não se dá pelo racismo contido na anedota, senão pelo fato de um o pretendente da Avó, quando jovem, sempre lhe presentear com melancias. E aqui se propõe um conflito recorrente nos contos de O'Connor: entre o rural e o urbano.
A avó rebate o argumento da neta, ao dizer que o tal pretendente, falecido há poucos anos, tornou-se um homem muito rico. E foi mesmo um dos primeiros a comerciar a Coca-Cola na Geórgia. Mas há outros sinais de que os tempos estão de muda.
As crianças leem revistas em quadrinhos o tempo inteiro. A Avó, na hora do lanche, come um reforçado sanduíche de manteiga de amendoim com carne de vitelo recheada de cebolas e ervas aromáticas. Porta seu gato num cesto. E veste-se com uma exuberância e uma vaidade que não se elastece à nora. Ou seja, os sulistas brancos começam a entrar na ciranda de desenfreado consumo do Norte; dos yankees, seus vencedores na sangrenta Guerra Civil. A guerra que se estendeu por cinco anos e opôs o industrializado Norte, ao Sul agrário e mitológico – a lendária Dixieland (ou Dixie) dos confederados, conduzidos pelo General Robert E. Lee, brilhante estrategista de campo, que venceu várias vezes exércitos do norte que somavam quase o dobro de seu contingente.
Guerra cujas cicatrizes jamais foram completamente apagadas. Que destruiu material e moralmente o Sul do país.
Há também dois outros personagens importantes em “Um Homem de Bem é Difícil de Achar”: Red Sam, o dono de uma espécie de misto de posto de gasolina, churrascaria, dancing e cine-poeira de beira-de-estrada; além de um serial killer fugido recente de um presídio de alta-segurança e que se autodenomina “o Desajustado” [“the Misfit”].
A fuga do bandido tem mesmo uma ampla repercussão midiática. Tanto que já na véspera da viagem, a Avó teme que se possa cruzar na estrada com um tipo assim, já que os jornais alertam: ele se fora em direção à Flórida: “I wouldn't take my children in any direction with a criminal like that loose in it” [“Eu não levaria meus filhos nessa direção se soubesse que tem um criminoso como esse solto por lá”] . Mal sabe ela que será ela própria quem conduzirá a família até o serial killer.
Já Red Sam, o proprietário da churrascaria, é importante no conto por duas razões. A primeira, por ser uma espécie de, digamos, equivalente masculino da Avó. Pragmático, expansivo, conversador. Mas também repressor da mulher. Assim como a Avó é do filho e da nora.
À altura que a família atinge a churrascaria de Red Sam – cuja publicidade ataca todos os costados da rodovia, à certa altura – é hora do almoço. E, quase de imediato, diante do deslustre de Bailey, o filho, e “da mãe das crianças”, quem realmente “conversa” são a Avó e Red Sam.
O assunto é o de o quanto os velhos tempos eram melhores, etc. e etc. Tempos em que se podia dormir com a porta apenas encostada, como evoca Red Sam, para em seguida lamentar – aliás, com o título do conto – que, no presente, “um homem de bem é difícil de achar”.
Só um pouco antes disso, a Avó passa recibo dessa mesma 'ética protestante' ao afirmar que “it isn't a soul in this green world of God's that you can trust” [“Não há uma só alma nesse viçoso mundo de Deus em que se possa confiar”]. Aparentemente, a sensatez nos contos de O'Connor dificilmente está nessas pessoas extracomunicativas como a Avó, como Red Sam, porém em quem se desdobra em cuidados com os outros a despeito de uma rotina um tanto cinza, como “a mãe das crianças”. Ou Bailey, o pai. Personagens deslustradas de charme.
De novo na estrada, a Avó, que praticamente faz a narração da viagem, segue apontando para o pitoresco, para o belo, para a exclamação, começa a evocar a visita que fez, ainda jovem, à certa casa de fazenda, antiga, faustosa. A Avó lembra-se da casa, porque haviam justo passado pelo cruzamento da estrada que conduzia até ela.
A evocação é tão vívida que a Avó sente vontade de revisitar a casa. E, de pronto, inventa uma mentira sedutora: uma vasta quantidade de prata da afluente família que a habitava  estaria supostamente escondida em algum lugar da casa, num compartimento secreto. Isso inflama as crianças. E a Avó as incentiva. O pai diz que não. Não irá se desviar da rota. Porém o protesto das crianças é veemente. Ele acaba cedendo.
Aqui a vitória é a da volubilidade, do capricho da avó. De seu egoísmo. De seu apetite por satisfazer um desejo pessoal, que em nada beneficiaria os demais. Mesmo que ela lance mão de subterfúgios para justificar a visita, como o fato de ser educativo para as crianças visitar uma antiga casa de fazenda. É óbvio que o que ela pensa, em primeiro plano, é nela. É em matar a saudade de um recanto bonito de sua juventude. Retornam, então, cerca de uma milha na rodovia e tomam a estrada carroçável que conduz à tal casa. A estrada é tão acidentada e estreita que o pai pensa em desistir. Mas a Avó diz que eles já estão quase lá. Logo ao dizer isso lhe vem uma certeza inesperada: a tal casa ficava no Tenessee, não na Georgia, onde eles ainda se encontram, quase na fronteira sul do estado. Ou seja, sua memória lhe pregara uma peça. E, no entanto, tarde para retroceder. Remendar o soneto. Ela mete a família numa íngreme e perigosa estradinha vicinal por um capricho pessoal. Depois descobre que essa via estreita e íngreme não vai dar em nenhum antigo casarão de fazenda. E, no entanto, é incapaz de revelar a verdade.  E imediatamente em seguida se dá o inusitado: o carro capota e tomba da estrada, restando equilibrado em um dos flancos no fosso de um dique. Ninguém sai ferido com gravidade, porém a situação é vexaminosa. E há ferimentos leves, reparos a se fazer no carro. 
Alguns minutos depois a família vislumbra um automóvel provindo lentamente através das mesmas íngremes colinas que eles haviam cruzado. A Avó acena vivamente para o automóvel, que tem um aspecto de carro de funerária. O carro desaparece nas curvas abruptas e reaparece diante das árvores até estacionar diante dos acidentados. Dele saem três tipos mal-vestidos e armados. Um deles é reconhecido, quase de imediato, pela Avó em histeria, como sendo o serial killer recém-escapado da penitenciária e que chama a si próprio de The Misfit [O Desajustado].
O facínora sente-se lisonjeado pela extensão da própria fama, embora admita que "but it would have been better for all of you, lady, if you hadn't of reckernized me." [“havera de ter sido mior pra vocês tudo, dona, se você num tivesse me rerconhecido”].
Nesse instante, Bailey diz algo tão duro para a mãe que as crianças sentem-se chocadas. E o próprio bandido enrubesce. Este seu desaforo, que provavelmente concentra muito, uma vida inteira, é das poucas coisas que não são reproduzidas literalmente no conto e leva ao bandido dizer:
"Lady, don't you get upset. Sometimes a man says things he don't mean. I don't reckon he meant to talk to you thataway." [“Dona, não se apoquente. Às vezes um homem diz coisas que num tenciona. Num levo em conta ele ter falado com você des'jeito”].
O que se segue é um banho de sangue. Começando por pai e filho, a família é levada para o matagal das redondezas pelos comparsas do Desajustado e só se escutam os tiros. Estabelece-se então um diálogo inesperado entre a Avó e o serial killer. Este conta sua vida atribulada. E ela, consciente de haver sido responsável pela tragédia da família, apela para a religiosidade, e pede que ele reze. Estabelece-se então uma espécie de involuntária discussão em torno da questão da graça divina.
Ao final, em desespero, diz a Avó ao bandido que pode lhe passar uma boa soma em dinheiro. E este lhe responde de modo direto: “Lady, there never was a body that give the undertaker a tip.” [“Dona, nunca houve um corpo que desse gorjeta ao agente funerário”].
Mas, em seguida, ao discutir a figura de Jesus, o bandido aparentemente se comove. A Avó declara, então, que ele é, na verdade, um de seus filhos e o toca no ombro. Ao sentir-se tocado “The Misfit sprang back as if a snake had bitten him and shot her three times through the chest.” [“o Desajustado cambou para trás como se uma víbora o tivesse mordido e atirou nela três vezes à altura do tórax”].
Um dos comparsas voltava de haver eliminado “a mãe das crianças”, o bebê e June Star, no matagal. E ao se deparar com o cadáver da Avó:

"She was a talker, wasn't she?" Bobby Lee said, sliding down the ditch with a yodel.
"She would of been a good woman," The Misfit said, "if it had been somebody there to shoot her every minute of her life."
"Some fun!" Bobby Lee said.
"Shut up, Bobby Lee," The Misfit said. "It's no real pleasure in life."

[“Era conversadora, héin?” Bobby Lee disse, deslizando pelo flanco do dique com um dengue na voz.
Ela havera de ter sido uma boa muié”, disse o Desajustado, “se tivesse quem atirasse nela a cada minuto da vida dela”.
“Isso é engraçado!” disse Bobby Lee.
Cala a boca, Bobby Lee”, o Desajustado disse. “Num tem mesmo prazer nessa vida.”]




 III. Interpretações

Há várias. Carradas, camadas delas. Nenhuma vale a leitura do conto.

* * *

sábado, 11 de dezembro de 2010

To stand still

[s/i/c]


Quem fica?


Segundo declaração recente e aparentemente pouco hábil de nossa atual prefeita, Luizianne Lins, nosso próximo prefeito pode ficar parado. Ela diz que consegue elegê-lo, mesmo assim.

Mas será que o reflexo de um poste banha-se nas águas do mesmo rio? E, bem, ao menos num poste se pode afixar coisas interessantes. Menos estopantes que política partidária, quem sabe. Do tipo: "Baby, I am so sorry. I love you".

Isso de eleger até um poste deve ter sido tão-só uma metáfora mais forte de nossa prefeita. Não devemos esquecer que Luizianne tem aspirações artísticas. Chegou, aliás, a dirigir um curta de ficção, que ela própria escreveu aí pelo começo dos 90. Chama-se: Beija-me com os Beijos da tua Boca. Baseia-se supostamente no Cântico dos Cânticos. Não foi exatamente um sucesso de público. Tampouco de crítica, embora haja ganhado uma premiação no Cine Ceará, em 1993, o que não quer dizer muito. 

Deve andar nas gavetas. Faz tempo. 

Como se diz por aí: como prefeita, Luizianne é ótima cineasta. Ou será contrário?

Lá sei. Quem fica parado é poste. 



*  *  *

Com um sorriso não acompanhado pelo corpo

[s/i/c]

Um Conto Forçosamente Curto

Trabalhando na garagem. Cortando pequenas placas retangulares de folha de flandres. E apondo-as um furo perto de uma das extremidades. Lhe pergunta:
O que é isso?
Responde baixo, enquanto a furadeira ressoa. Pergunta de novo.
Um negócio que eu quero fazer – diz, com um sorriso não acompanhado pelo corpo.

*   *   *

Quase sempre em duplo

Ken Price, Red Neck, 2002


Em Fiança de Flannery O'Connor

A delicadeza de Flannery O'Connor em relação à sua escritura só empata com a crueldade ao final de seus contos. São tão excepcionalmente bem escritos que dá vontade de desistir, porque não há contista que crie ao mesmo tempo diálogos que se fazem um com uma atmosfera admiravelmente bem urdida.
Um dos aspectos mais sobresaltantes neles – para não mencionar seus romances, como Wise Blood [Sangue Sábio] – é a relação entre os protagonistas, pois quase sempre os temos em duplo. O duplo mais comum é o mãe(viúva)/filho. Mas há também avô/neta, proprietária de fazenda/capataz; namorada/namorado; senhoria/inquilino. E por aí vamos.
Outro assunto recorrente é a relação entre o rural e o urbano, numa região onde isso já foi tão tenso como o Sul dos Estados Unidos em meados do século passado. Uma época, por lá, aliás, bastante semelhante - guardadas as distâncias e processos históricos dissimilares - à que vive de momento o Nordeste do Brasil: crescente onda de industrialização e urbanização.
Não há uma escritora brasileira – nem mesmo Lispector – que domine com tanta precisão a arte de escrever contos. Mas também se comenta que O'Connor era tão obsessiva com seu fazer que, poucos dias antes de morrer, com tão-só 39 anos – da mesma doença congênita que vitimara seu pai, o lúpus – debaixo de tubos e mais tubos, num hospital em Baldwin County, Georgia, ela se entregava com afinco à revisão de seus originais.
Não há irregularidades, mas precisão. E, assim, difícil escolher. A escolha vai mais por idiossincrasia. Seu conto mais famoso leva o título de “A Good Man is Hard to Find” [“Um Homem de Bem é Difícil de Achar”].
Ainda assim, arrisco. Dois contos são mesmo de tirar o fôlego de tão bem escritos: “Greenleaf” e “A View of the Woods” [“Uma Vista da Mata”].
No primeiro, ela trata do ressentimento que uma proprietária de fazenda nutre diante da prosperidade dos filhos de seu capataz. Em especial, se comparada com o que chegaram a realizar seus próprios filhos. O desprezo que ela dedica aos Greenleaf, uma família que, em casa, ela e os filhos chegam a esboçar uma imitação do modo tacanho, caipira [red neck] como falam – uma espécie de “greenlenfês” – é extrema. Mas mais extremo ainda é o que a espera ao final.
Em “Uma Vista da Mata”, O'Connor se ocupa de um velho latifundiário que possui um arrojado projeto de loteamento. E sonha com uma cidade a dimanar desse loteamento portando seu nome de família: Fortune. O velho, todavia, vê com desdém extremo a própria família. Quer dizer, para adiante dele: as filhas e com quem elas se misturaram. O fruto dessa mistura, os netos. E, de um modo ainda mais sardônico, um dos genros: Pitts. A única exceção é uma neta de oito anos, filha de Pitts, mas muito parecida fisicamente com ele próprio, e a quem ele considera a símplice portadora real do nome de sua estirpe, os Fortune. A ela o velho devota um carinho singular, avulso. Avô e neta seguem colados o dia inteiro, apesar de ela ter apenas oito anos e o velho setenta e nove. Há uma empatia intensa entre ambos. E, no entanto, a garota, para além da semelhança física, também herdou muito de seu temperamento. Inclusive certo grau de cumulado, mesquinho ressentimento diante da vida. Como se acaba constatando. Porém, aqui, o final é também inusitado. E, portanto, incontável em tão curta nota.



Nota - para mais Flannery O'Connor em Afetivagem: