quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Revolutionary Road

Still de Revolutionary Road, 2008, filme baseado em romance de Richard Yates


Richard Yates

Há aqueles escritores que são lidos na tenra juventude e prosseguem sendo referência pela vida afora. Esse fenômeno deve acontecer a qualquer leitor mais atento ou compulsivo. O das releituras.
No meu caso, Ernest Hemingway [por The Sun Also Rises e os contos], assim como F. Scott Fitzgeral [pelo Great Gatsby, sobretudo, mas também Tender is The Night assim como alguns dos contos] foram decisivos.
É uma prosa que simultaneamente encanta pelo apuro formal bem como por nos fazer compreender melhor a perplexidade desse mundo tão próprio que é a sociedade norte-americana. E não menos pelo intenso apelo visual presente nas memoráveis páginas de ambos.
Num certo sentido, eles foram (e prosseguem sendo) mais importantes e mais divertidos de ler do que, digamos, Joyce.
É claro que Joyce é muito mais experimental e ousado. E, no entanto, há uma espécie de lacuna quando o ponto é dotar os assuntos tratados de uma instância física. A percepção dos gestos em Joyce não chega a ser tão aguda. A prosa em Joyce parece estar menos carregada de vida. Dessa fisicalidade enfeitiçante, que vaza das páginas dos dois autores americanos. Desse êxtase material.
E o que ocorre é que em Hemingway e Scott Fitzgerald, essa instância física – não só do corpo das pessoas, mas da singularidade dos objetos – apresenta-se avassaladoramente ali, presentificada. E, melhor, em geral traduzida em poucas e certeiras palavras. Um efeito difícil de obter. Ausente ou mal posto, deslocado na maioria dos prosadores seja em que idioma. E, quem sabe, uma característica mais de escritores americanos – no sentido mais amplo, que abrange também tudo que está a sul do Rio Grande – do que de seus pares europeus, excessivamente siderados por sistemas abstratos ou firulas filosóficas.
Provavelmente Hemingway seja, nesse aspecto, mais completo que Scott Fitzgerald porque se sai melhor tanto em “locações” urbanas quanto rurais. Enquanto o autor de O Grande Gatsby é demasiado urbano. Há também uma simpatia na prosa de Hemingway por gente pobre, excessivamente velha ou por crianças, que a torna irresistível. Além disso Hemingway se abre a culturas outras, que não a americana. Há o seu fascínio pelas touradas, pelo sul da Europa, por Cuba, pela África, etc. Se é possível pressentir um virtuosismo maior em Fitzgerald, há uma maior verdade em Hemingway. É algo análogo ao que se dá na música entre Mozart e Bach. 
A prosa de Scott Fitzgerald nos revela o jogo do poder. A de Hemingway, o poder do jogo. Em uma há cintilância e sofisticação - e o preço de se chegar até elas. Na outra, há o sol, o mar, o pé descalço; a garrafa de vinho deixada para gelar no leito de um rio basco. E não é à toa que o título na Inglaterra para The Sun Also Rises seja simplesmente Fiesta. Ou que o retrato da "geração perdida", vagando de um a outro café parisiense, escrito por Hemingway, quase um duplo de Fiesta, intitule-se A Moveable Feast [Uma Festa Móvel]. Nas duas prosas há a impossibilidade plena do amor. Em uma há o calhorda que esbofeteia a amante quase por cálculo. Na outra há uma gorda prostituta que ri e se reserva o direito de corrigir a mentira. Ou a fatalidade de uma ferida de guerra que impede sua consumação.
Recentemente, li um romancista americano que segue na mesma linha dos citados acima. Sinestesia pura. Que bebe neles de algum modo. Seu nome é Richard Yates [1926-1992]. Talvez ele seja mais prolixo que os outros dois – e, em especial, do que Hemingway, onde a medida da concisão é extraordinária – mas não menos intenso quanto a essa tradução de gestos para palavras. E ao fato de sua prosa estar firmemente calcada na vida.
Seu primeiro romance, Revolutionary Road [1961] é um primor. O tema recai sobre os conflitos de um jovem casal que busca o sucesso em uma comunidade endinheirada e nova-rica, do subúrbio, na próspera Connecticut, durante os glamurosos anos 50.
Ela tem alguma ambição de ser uma atriz de teatro e conforma-se mal ao papel de dona de casa. Ele mantem um emprego rendoso e burocrático, embora nutra aspirações intelectuais; e de uma forma um tanto desajeitada incentive os esforços dela. Isso, embora, em determinado momento, haja uma inversão de valores: seja ela que mova céus e terra para que se mudem para a Europa, onde ele pudesse desenvolver melhor seus dotes. Eles têm filhos pequenos – um casal –, moram numa bela casa: um gramado, uma colina, árvores, vizinhos. Porém uma série de fatores, que têm muito mais a ver com o egoísmo de cada, entram em conjunção para inviabilizar esse projeto europeu. E o final da história passa longe de um happy end.
Embora na terceira pessoa, a trama é claramente narrada a partir do ponto de vista do marido, Frank H. Wheeler. Trinta anos, bem sucedido, bem apessoado, ele é, contudo, assombrado por uma difícil relação com os pais, já mortos. Assim como pelo fato de haver algo em suas mãos que simplesmente não funciona. Uma espécie de inaptidão para trabalhos manuais. Em certa evocação que ele faz dos pais está, aliás, presente esse mal-funcionamento das mãos e uma certa culpabilidade por conta: "de meia-idade à época de seu nascimento, e já cansados de haverem criado dois outros filhos, eles se foram envelhecendo decididamente mais e mais exaustos à medida que ele os foi conhecendo melhor, até que extenuados de vez, morreram com semelhada entrega, em seus sonos, num espaço de seis meses de um para o outro. Mas nunca houvera nada de cansado nas mãos de seu pai, e nenhum amontoar de tempo e esquecimento turvaram a imagem delas à luz de sua mente".
O livro é exuberante. E inclusive foi adaptado para o cinema. Numa versão um tanto blockbuster, no entanto. Ressalto este aspecto para deixar bem claro que assistir um filme baseado numa obra literária nada tem a ver com lê-la – algo tão moeda corrente entre nós.
Na verdade são duas coisas completamente diversas. Inclusive quanto ao ritmo, a concentração, o suporte, a linguagem (em termos semióticos), etc. Ou seja, nenhum filme, por mais acabado que se apresente, quanto a suplementar uma obra literária, exime o espectador de ler essa obra. Não constitui um sucedâneo dela. Não se pode discuti-la, tomando como base o filme. O filme é outra coisa que não ela. [Aqui, talvez a única exceção a confirmar a regra seja justamente o Journal d'un curé de campagne (1951), o filme de Robert Bresson decalcado do romance de Georges Bernanos].
De outro modo, em vida, Yates  jamais teve a ressonância de Hemingway ou Fitzgerald. Seus livros que mais vendiam, não vendiam mais que 12.000 exemplares e estiveram fora de catálogo até o início da década de 90, quando, então, a partir do esforço de um crítico, foram sucessivamente reimpressos. Inclusive seus contos.  De momento, suas ações conhecem estável alta na bolsa de valores literária. E, embora não os reivindique, Yates assoma como alguém que deriva, de um modo bastante próprio, as lições desses dois mestres da prosa.


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