sábado, 30 de outubro de 2010

Um 'Midrash' realista, cético, fervoroso

Mark Gertler, Jewish Family, 1913




Isaac Bashevis Singer

Quando ainda estudante de graduação em História, dei com o nome de Isaac Bashevis Singer nas prateleiras da biblioteca do Centro de Humanidades. E fui fisgado de imediato pelo seu nome – que jamais ouvira antes. Como é possível? Pude reconhecer que se tratava de um nome judeu. Mas também seu nome me remetia para as máquinas de costura. Máquinas que foram utilizadas por minha avó. E com grande perícia. Máquinas, cujo distribuidor, na pequena cidade em que nasci, era amigo de meu pai.

Após esse encanto para todos os efeitos irracional, tirei o livro de Singer da prateleira. E, aí, sim, percebi estar diante de um grande prosador. Se dispusesse de tempo ou de uma maior facilidade para aprender línguas, teria aprendido o iídiche apenas para desfrutar, de fato, da prosa de Singer no original. Ela parece revestida de uma integridade que a previne contra qualquer modismo ou afetação. 


A tradução, para o inglês naquela edição fora empreendida, no entanto, por ninguém menos que Saul Bellow. E os contos – que prendiam justamente pelo fato de serem excepcionalmente bem contados – pareciam refratar as intenções de Singer, como alguém que, apesar de completamente cético diante da tecnologia e das modernas facilidades de comunicação, tratava a vida com certo joie de vivre. E, em especial, num certo conto longo: Gimpel, The Fool [Gimpel, O Idiota].

Só depois fiquei sabendo da obsessão de Singer com a questão da tradução. Do fato de ele discutir com seus tradutores o teor de cada palavra na esteira da frase.

Nos dias de hoje há tão-só cerca de três milhões de pessoas capazes de ler em iídiche – e, ainda assim, sem fluência, a maioria. O que é escrever para menos de três milhões de pessoas? O que é escrever em uma língua que está desparecendo? O que se sente ao pôr no papel palavras que se sabe, dentro em pouco, farão parte de uma língua morta, serão matéria para linguistas? Que sequer possui termos que designam facilidades modernas como “metrô” ou “via-expressa”? O que escrever num idioma que é já quase arqueologia?

No entanto, a coerência narrativa – e obviamente moral – dos relatos de Singer me fisgaram de imediato. Assim como um pressentido descaso pelo que seguia em moda – em todos os níveis, inclusive o acadêmico. E não menos seu senso de devoção ao local e ao pequeno, ao microscópico, ao frágil: as pequenas aldeias polonesas e guetos de população predominantemente judaica, que ele deixara para trás ao migrar para Nova York - Singer morreu aos 88 anos, em 1991. 

Falar dessas comunidades é falar da Shoah. É falar, um pouco por tabela não periódica, de Primo Levi, de Paul Celan. E, no entanto, os temas de Singer não passam por um certo teor de vitimização que, quando se adentra nesses domínios, é quase impossível fugir dado a barbárie dos acontecimentos.

Os temas de Singer recaem muito mais sobre modos de vida pequenos, segregados, vividos em tempos mortos, já tão passados. Vividos nessas comunidades asquenazes de antes da II Guerra. 

Em Gimpel, por exemplo, temos o idiota da aldeia. Mas também um homem operoso. Que passa de ajudante de padeiro a proprietário da melhor padaria do local. A população, por chacota, o faz casar com uma das mulheres mais promíscuas do lugarejo. Eles geram, então, uma prole numerosa. Sendo que nenhum dos filhos é do próprio Gimpel. Ele é um homem de tão boa-fé, contudo, que, uma vez, chegando em casa, ao surpreender a mulher com outro, na cama, ao invés de tomar medidas de imediato, segue, ao invés, ao rabino em busca de orientação. 

O rabino, salvo engano, ele próprio um dos amantes da mulher de Gimpel, lhe convence que nossos sentidos são falhos. E o que Gimpel vira, não se tratava de uma pessoa, mas da sombras de uma viga sobre as cobertas. E até lhe prescreve uma oração. Apaziguado, o idiota volta para a casa e prossegue com a vida. Uma enfermidade grave, no entanto acomete sua mulher. E esta, em seus estertores, manda chamar-lhe e abre o jogo: a ilegitimidade dos filhos, o compulsivo adultério com aldeia e meia, o modo como todos a ele se referiam às suas costas em tom de deboche. Atordoado com as revelações da mulher, Gimpel pondera insone, madrugada adentro, à espera da hora de fazer o pão. Uma das vinganças que imagina é a de acrescer algumas medidas da própria urina na massa do pão.

Mas então, algo acontece. Extenuado, ele cai num sono profundo. E nesse sono há um sonho em que um conhecido lhe vem do Além para lhe dissuadir de qualquer vingança. Que não fizesse isso, porque sua ficha no Além estava limpíssima. Ao despertar, reconciliado, ele toma algumas decisões. Uma delas é a de passar o rentoso negócio da padaria aos filhos. E também adotar como princípio, certo trecho do Livro da Sabedoria, que diz da possibilidade de tudo. De o que não é ou não pode ser concreto aqui e agora, ser possível de realizar-se sobre outras circunstâncias, em outro tempo, outro local, etc. [e não tome-se isto como utopia política mas como condição existencial]. Assume também a postura do nômade, do errante, que sai de aldeia em aldeia, contando midrashim, pequenas histórias edificantes, sobretudo aos mais jovens e às crianças.

Além de admiravelmente bem estruturadas, as narrativas de Singer prendem pelo fato de em qualquer momento abdicarem da moral da história. E talvez nisto resida o seu maior encanto.

Abaixo segue um linque para uma bela entrevista com Singer na Paris Review, em que, além de falar do papel do escritor e sua relação com o jornalismo, o ensino e as modernas facilidades, ele nos diz coisas como:

Well, the Yiddish writer was really not brought up with the idea of heroes. I mean there were very few heroes in the Jewish ghettos—very few knights and counts and people who fought duels and so on. In my own case, I don't think I write in the tradition of the Yiddish writers' “little man,” because their little man is actually a victim—a man who is a victim of anti-Semitism, the economic situation, and so on. My characters, though they are not big men in the sense that they play a big part in the world, still they are not little, because in their own fashion they are men of character, men of thinking, men of great suffering. It is true that Gimpel the Fool is a little man, but he's not the same kind of little man as Sholom Aleichem's Tevye. Tevye is a little man with little desires, and with little prejudice. All he needed was to make a living. If Tevye could have made a living, he wouldn't have been driven out of his village. If he could have married off his daughters, he would have been a happy man. In my case, most of my heroes could not be satisfied with just a few rubles or with the permission to live in Russia or somewhere else. Their tragedies are different. Gimpel was not a little man. He was a fool, but he wasn't little. The tradition of the little man is something which I avoid in my writing.

Bem, o escritor de tradição iídiche não cresceu com a ideia de heróis. Quer dizer, houve poucos heróis nos guetos judaicos—poucos cavaleiros e condes ou gente que duelava, etc. No meu caso, não penso que escreva na tradição do “zé-ninguém” do escritor iídiche, porque esse “zé-ninguém” é de fato uma vítima—um homem vitimizado pelo anti-semitismo, a condição econômica, e por aí vamos. Minhas personagens, embora não sejam grandes homens no sentido de desempenharem uma ação decisiva sobre o mundo, ainda assim não são “zés-ninguéns”, porque a seu modo são homens de caráter, de reflexão, de grande capacidade de sofrimento. É verdade que Gimpel, o Idiota, é um “zé-ninguém”, mas não do mesmo tipo do “zé-ninguém” a exemplo do Tevye, de Sholom Aleichem. Tevye é um “zé-ninguém” de aspirações mesquinhas, e pouca predisposição. Tudo que ele necessitava era ganhar a vida. Se Tevye houvesse logrado ser bem sucedido, não teria sido expulso da aldeia. Se pudesse ter casado suas filhas, teria sido um homem satisfeito. No meu caso, alguns dos meus heróis não se contentariam com alguns rublos ou com a permissão de viver em um lugar qualquer da Rússia ou onde mais fosse. Suas tragédias são diferentes. Gimpel não era um “zé-ninguém”. Ele era um idiota, mas não era mesquinho. A tradição do “zé-ninguém” é algo que evito em meus escritos.

Ou ainda:

I think that journalism is a healthier occupation for a writer than teaching, especially if he teaches literature. By teaching literature, the writer gets accustomed to analyzing literature all the time. One man, a critic, said to me, “I could never write anything because the moment I write the first line I am already writing an essay about it. I am already criticizing my own writing.”

Acho que o jornalismo é uma ocupação mais salutar para um escritor que o ensino, especialmente se ele ensinar literatura. Ao ensinar literatura, o escritor acaba acostumando-se a analisar a literatura o tempo todo. Um sujeito, um crítico, me disse: “Eu jamais poderia escrever nada, porque logo à primeira linha já estou escrevendo um ensaio a respeito. Já estou criticando minha própria escrita”.

Para a entrevista na íntegra:



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