segunda-feira, 22 de novembro de 2010

E suas quantas margens

Wols, circa 1947


Houve

Ouve a ponta do teu suspiro e a respeito do que ele é suspirado. Dança toda a tarde, mesmo parado. Ouve os sons que um dia te trouxeram um pouco de calma. Mesmo fremitando-te o corpo, as tripas. E principalmente por isto. Houve um tempo em que tudo era ritmo. Em que a possibilidade era larga e a idade curta. Houve a ignorância de poder criar sem tanta amarra. Houve um gosto de lua. De luz de sol, quando sol nem havia saído direito, de manhãzinha. Houve uma série de apostas. Uma série de atrativos. Outras tantas propostas. Houve a curiosa dispersão da criança. Houve o rio e suas quantas margens. Houve as dunas, os mangues. O oboé tocado pelos dedos de quem te quis bem. Houve os seixos no leito do rio, quando a água era transluzida por chuvas. E houve o desejo de escrever como um destrinçar semelhante a essa transparência. Houve um excesso de projetos para um mínimo de contundências. Houve uma pletora de horas gastas a pensar em afetos. E não em afetivar. Houve um calendário de inércias. De volta ao fio da palavra, houve uma margem que arrastas-te para dentro – como fosse obrigação dos outros, adivinhar! Houve o desprezo dito em hora de desfastio. Houve o tanto de sofrimento que causaste a ti e aos outros. Houve a nódoa de café na camisa que era tua preferida. Houve a soma de todos os olhares que te visaram. E não entendeste que aqueles eram a fração axial de teu olhar mesmo. Houve os gestos de bondade que amassaste com a mão e jogaste no cesto, sem se dar conta. E a louca folia de comprazer os zelos mais imediatos, com palavras agressivas, atos. Houve uma ourivesaria de estesias que enxergaste em rostos alheios e, como folha de caderno espiral, as foste destacando a cada rodeio, pois teu medo era muito mais recheio. Houve os momentos de seres adulado. Mimado. E de não discernir entre o agasalho do afeto e a dissimulação; suas furtividades, hienas. Houve tuas insônias e dentro dela muito poucos poemas. E, melhor que poemas: recreio, riso. Houve apegos enliços e mal medidos. E desapegos equívocos. Ouve as coisas como se tuas mãos pudessem tocar o sacrário delas. Ouve o mundo. E a fadiga em teus olhos.


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