sábado, 11 de dezembro de 2010

Quase sempre em duplo

Ken Price, Red Neck, 2002


Em Fiança de Flannery O'Connor

A delicadeza de Flannery O'Connor em relação à sua escritura só empata com a crueldade ao final de seus contos. São tão excepcionalmente bem escritos que dá vontade de desistir, porque não há contista que crie ao mesmo tempo diálogos que se fazem um com uma atmosfera admiravelmente bem urdida.
Um dos aspectos mais sobresaltantes neles – para não mencionar seus romances, como Wise Blood [Sangue Sábio] – é a relação entre os protagonistas, pois quase sempre os temos em duplo. O duplo mais comum é o mãe(viúva)/filho. Mas há também avô/neta, proprietária de fazenda/capataz; namorada/namorado; senhoria/inquilino. E por aí vamos.
Outro assunto recorrente é a relação entre o rural e o urbano, numa região onde isso já foi tão tenso como o Sul dos Estados Unidos em meados do século passado. Uma época, por lá, aliás, bastante semelhante - guardadas as distâncias e processos históricos dissimilares - à que vive de momento o Nordeste do Brasil: crescente onda de industrialização e urbanização.
Não há uma escritora brasileira – nem mesmo Lispector – que domine com tanta precisão a arte de escrever contos. Mas também se comenta que O'Connor era tão obsessiva com seu fazer que, poucos dias antes de morrer, com tão-só 39 anos – da mesma doença congênita que vitimara seu pai, o lúpus – debaixo de tubos e mais tubos, num hospital em Baldwin County, Georgia, ela se entregava com afinco à revisão de seus originais.
Não há irregularidades, mas precisão. E, assim, difícil escolher. A escolha vai mais por idiossincrasia. Seu conto mais famoso leva o título de “A Good Man is Hard to Find” [“Um Homem de Bem é Difícil de Achar”].
Ainda assim, arrisco. Dois contos são mesmo de tirar o fôlego de tão bem escritos: “Greenleaf” e “A View of the Woods” [“Uma Vista da Mata”].
No primeiro, ela trata do ressentimento que uma proprietária de fazenda nutre diante da prosperidade dos filhos de seu capataz. Em especial, se comparada com o que chegaram a realizar seus próprios filhos. O desprezo que ela dedica aos Greenleaf, uma família que, em casa, ela e os filhos chegam a esboçar uma imitação do modo tacanho, caipira [red neck] como falam – uma espécie de “greenlenfês” – é extrema. Mas mais extremo ainda é o que a espera ao final.
Em “Uma Vista da Mata”, O'Connor se ocupa de um velho latifundiário que possui um arrojado projeto de loteamento. E sonha com uma cidade a dimanar desse loteamento portando seu nome de família: Fortune. O velho, todavia, vê com desdém extremo a própria família. Quer dizer, para adiante dele: as filhas e com quem elas se misturaram. O fruto dessa mistura, os netos. E, de um modo ainda mais sardônico, um dos genros: Pitts. A única exceção é uma neta de oito anos, filha de Pitts, mas muito parecida fisicamente com ele próprio, e a quem ele considera a símplice portadora real do nome de sua estirpe, os Fortune. A ela o velho devota um carinho singular, avulso. Avô e neta seguem colados o dia inteiro, apesar de ela ter apenas oito anos e o velho setenta e nove. Há uma empatia intensa entre ambos. E, no entanto, a garota, para além da semelhança física, também herdou muito de seu temperamento. Inclusive certo grau de cumulado, mesquinho ressentimento diante da vida. Como se acaba constatando. Porém, aqui, o final é também inusitado. E, portanto, incontável em tão curta nota.



Nota - para mais Flannery O'Connor em Afetivagem:


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