quinta-feira, 19 de maio de 2011

Be sure it doesn't break in your hand

Joseph H. Lewis, The Big Combo, 1955


Uma paródia de história de suspense com um nome falso de autor de livros de suspense
Só se é vivo uma vez

Seu sócio precisava morrer. Que outro modo de salvar o negócio? Juros escorchavam. O Alemão, credor majoritário, apertava o cerco. Era preciso fazer algo. E havia uma apólice de cláusulas claras na seguradora. Ele não conhecia os gângsters de soeiras. Quando muito, uma fotografia de Al Capone. E não se lembrava mais com quem o achara parecido: Mussolini, Berlusconi, seu avô?
Tresvario. O primeiro era só tão calvo quanto. O segundo, apenas uma rima. E seu avôzinho um poço de bondade. Estava tão absorto nisso a caminho do escritório que teve, na hora H, de pular uma poça na calçada, pois chovera. Uma adolescente na plena flor da provocação lhe inflou a meia-idade do ego:
Ei, gato, pular assim vai virar tendência.
Ele sorriu, mas logo reentrou no saloon obscuro da mente.
Sem falar que o sócio era um homem cordial. Amigos desde o segundo ano do secundário. Apadrinharam filhos. Associaram-se a clubes. Mulheres a percorrer um previsível circuito de compras. Horas moldando o corpo na academia de fisicultura. As amantes em condomínios quase vizinhos. As crianças banhando-se na piscina da mesma colônia de férias. Em seu último aniversário, dele recebera um ipad de presente. Como adivinhara?
Mas, então, o dono de uma cadeia de farmácias, dado a tais métodos, indicou-lhe o homem. De confiança. Bastante requisitado. E o homem estudou a circunstância. Um profissional e sua meticulosidade. Mapas, horários, calibres, álibis, ângulos. Os olhos compassivos, pacientes. Não longe de bondosos. A voz pausada, monocórdia, a declinar minúcias. O traje discreto e um fragrância cítrica na loção após barba. Depois de uma semana ele perguntou ao homem: quando? O profissional disse que não tardava. Porém precipitações podiam ser fatais. E que lembrasse: não era de fazer coisas pela metade.
Nesse ínterim, o Alemão ameaçava agir. E todos no ramo sabiam: com o Alemão não se brincava. Enquanto rugisse, tudo bem. O perigo morava em seu silêncio.
Ainda assim, temeu pela segurança das crianças. Reforçou a blindagem dos carros.
Uma semanas depois encontrou o homem. Foi no reservado de um restaurante. Impressionou-o, ainda mais, seu rigor ao expor o plano. Havia decidido que, por motivos de álibi, o local seria certa livraria.
Não despertaria suspeitas. Tanto ele quanto o sócio eram senão assíduos, visitadores mais que esporádicos. E, em ele estando presente, tudo ficaria mais fácil com o inquérito. Além disso havia apenas um segurança desarmado e inepto à entrada. E quatro possibilidades de evasão: escada rolante direto para a rua; elevador; escada convencional; e um balcão, do lado oposto às demais, debruçado sobre a avenida. Não havia tanto movimento na quinta à noite. Mas, no mínimo, garçonetes e balconistas, além dos caixas. Alguns poucos frequentadores. Crucial contar com testemunhas. As ruas, à exceção dos carros estariam vazias na afluência do bairro.
O plano era simples. Ele marcaria com o amigo no café da livraria. Mas chegaria um pouco antes. Sentaria. Pediria um curto. Leria, sem pressa, as duas páginas iniciais de Killer in the Rain. Depois diria à garçonete:
Veja, estou esperando um amigo. É um tipo distraído, percebe? Deve chegar em no máximo uns quinze minutos. Um homem alto, mais ou menos da minha idade, cabelos castanho escuros, levemente grisalhos, com um portfólio na mão. Indique-lhe a mesa. Diga-lhe que já estou de volta.
Dito isso, que ele se afastasse até a prateleira mais distante, a de livros de suspense. Ficasse a folhear alguns exemplares de Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Ross MacDonald, Isidro Parodi.
Deixasse a coisa por conta. E imediatamente após os disparos, corresse ao café.
Só uma pergunta.
Diga.
Você lê livros de detetive? – ele perguntou.
Alguns. – respondeu o pistoleiro com um raro lampejo no olhar.
Que lhe parece?
Há um excesso de ficção neles. Essas coisas são mais simples na vida real.
Passaram, então, aos honorários: metade antes, metade depois. Praxe.
A quinta-feira acordada, era uma noite morna. O tráfego escorria mais desafogado. Uma lua cheia suspensa sobre avenidas. Estacionou o carro a meio quarteirão, defronte à locadora de filmes. Com um pouco de esforço – e alguma lembrança da iôga – seus joelhos não mais tremiam. E, ao subir pela escada rolante, uma leve onda de excitação vibrava-lhe o corpo. O terral moveu de leve seus cabelos.
Passou pelo segurança, um negro alto, afogado em um terno preto, peça de estatuário. E, com o exemplar do livro à mão, logo estava no café. Escolheu uma mesa ao fundo. Pediu um curto. E ao saborear o café amargo, aromático, leu o trecho sugerido que acabava nas palavras:
'I got lots of sugar' – he said.
'So, I see. What do I do for that, if I get it?'
Depois acenou para a garçonete:
Veja, estou esperando um amigo. É um tipo distraído, percebe? Deve chegar em no máximo uns quinze minutos. Um homem alto, mais ou menos da minha idade, cabelos castanho escuros, levemente grisalhos, com um portfólio na mão. Indique-lhe a mesa. Diga-lhe que já estou de volta.
À vontade, Senhor.
Afastou-se até para lá da porta de entrada, que ficava fora do alcance de vista do café, e enfiou-se na prateleira de livros de suspense.
Lá ficou, folheando The Long Goodbye. Dez minutos se passaram. De onde estava não era possível ver o café. Mas, certo momento, uma fragrância cítrica esticou-se no ambiente.
Vários tipos e estilos de passos fizeram-se ouvir sobre o granito polido. Uma bela garota subiu ao mezzanino. Um homem calvo, jeans rotos, dentuço, cara de pouco sexo, era o único a testemunhar-lhe a presença. Porém parecia mais entretido em folhear uma edição de bolso de The Glass Key.
Cada segundo no relógio era como estar prestes a fazer votos monásticos. Quinze minutos, nada. Podia voltar atrás? Chegar no balcão do café e dizer ao matador:
Veja bem, tudo não passou de um chiste. Poupe as balas. Volte para casa. Hoje tem futebol na TV: Ceará X Flamengo, pela Copa do Brasil.
E não. Queria levar a ópera à apoteose. Aos bis. Algo o atava ao prognosticado no libretto. Ainda que este o tenha custado algumas noites insones e um polpudo cheque.
Quase um quarto de hora depois, contrafeito, suando um pouco sob o ar condicionado, dirigiu-se ao café:
Que desfeita, garoto. A última vez que atrasaste assim foi quando íamos jogar contra aqueles malandros do Colégio Batista. Liguei para teu celular. Estava fora de área.
Abraçaram-se.
Na prateleira de livros de suspense, o homem calvo leu as seguintes linhas:
'I'm going to society. He's practically given me the key to his house'.
'Yeah, a glass key. Be sure it doesn't break in your hand'.
E, logo após, houve os disparos. Uma algazarra. Que nem nos filmes de gângster. Estrepolias. Gritos. As têmporas do homem calvo latejavam coladas ao solo. Mas após breve comenos, ergueu-se, achegou-se ao vértice da estante. Depois ao café. E vislumbrou, no lustroso piso de granito encerado, os dois corpos. Eram parecidos, fato.

Talvez fossem irmãos.


* * *

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