sexta-feira, 27 de maio de 2011

E não por escolha ou capricho

Jules Bastien-Lepage, The Blind Beggar, 1882

O Engenheiro

No geral, encontravam-se quando a mulher do outro seguia para o mesmo carteado que a dele, pois as duas haviam sido colegas de turma no Colégio Santa Cecília ao final dos 80; e as crianças estavam para a colônia de férias.
Ele tomou um gole, embora aquele vinho chileno sulfuroso, devastasse seu estômago na quase imediatez da gastrite. Podiam passar meses sem se ver. Quando se encontravam, no entanto e em geral, no apartamento do outro, ouviam música. Falavam sobre cinema e a cidade e música e automobilismo. E a música para cinema, que, do prisma deles, era, no geral, aceita com apreço mais que vanguardices eletroacústicas.
Quando à cidade, embora nem sempre se dessem conta, era tomada de um ângulo comparativo. Uma espécie de urbanismo comparado. Em que se comparava o aqui e o já com a breguice desbragada dos anos 80, o "tempo deles". 
Versavam sobre Fórmula-1 e alguns poucos conhecidos ainda em comum de que tinham notícia. Sobre televisão e a fealdade de hábitos da elite local, recém-endinheirada e de verniz sem volume. Reminiscenciavam viagens de quando mais jovens. Tentativas de morar fora e outras formas de morar que, quase sempre, redundaram em roteiros de torna-viagem. Nem sempre confortáveis ou exitosos. Presepadas e farras pré-nupciais. E os inevitáveis tiques dos amigos. Eventualmente assistiam alguma coisa na internet. 
O outro, cujo pai era um diretor de cinema já na vehice -- a "melhor idade", como se diz nas metáforas atuais, que só pioram a coisa -- e desfrutando de alguma notoriedade, tocava sempre nessas questões delicadas, orbitando em torno de paternidade, afeição, carreira. Um dos trunfos desse veterano realizador, aliás e na intimidade, era o de haver comido uma beldade convertida em atriz de novela das oito -- o que, a despeito de não haver sido privilégio propriamente raro, de algum modo causava espécie. No mínimo soava a privilégio num país assim desmesurado, continental. Mas tudo isso parecia longo meandro. Suplemento. Rota ao largo, digressiva e longa, alameda, até se chegar ao ponto: mulheres, afetos.
O outro, vestido um pouco mais para informalidade de quem está em casa, restava de pé, sandálias descalçadas, atrás do balcão. Dali podia alcançar os copos nos armários, as garrafas no refrigerador, às suas costas. E só em noites de maior excitação, sentava-se em um banco alto, por um pouco, do lado oposto ao dele. Às vezes dedilhava o violão. Ou tirava algumas notas no piano de armário. E mordiscava com mais frequência os potes com amêndoas – castanhas de caju, amendoins – dispostos no granito escuro do balcão da pequena cozinha que antecipava a sala-de-estar.
Ele postava-se do lado da sala. Sempre sentado em um banco alto, escorado à parede. Bebia com mais vagar. Ás vezes, alternando com água mineral. E, ao discorrer sobre um assunto com algum realce, apeava do banco alto e dava uns poucos passos sempre até o mesmo ponto, como tivesse medido a distância pelo percorrer dos ladrilhos ao modo de uma rayuela mental; a falar feito se reportasse a uma circunstância numerosa. A tentar expor a essa audiência mais ampla o seu sistema. 
Em sua reserva particular de apreço, o pé-direito baixo e o vazamento da cozinha mínima para a pequena varanda, através da sala, garantiam ao apartamento, junto com as luzes – de hidrargírio, é verdade – mas contidas por quebra-luzes de vidro denso, uma atmosfera aconchegante e até certo ponto arejada. Levemente atravancada, no entanto, pela profusão de computadores, samplers e instrumentos musicais que se concentravam numa bancada aplicada à parede em linha com a porta de entrada.
Quando a longa divagação, que frequente murchava aos poucos, em lento fade, um diminuendo – que, de uso, ia desbastando a porção das palavras nas frases e mesmo o maço das frases, em proporção inversa aos cigarros apagados nos cinzeiros e as taças de vinho tomadas – perdia momento para pausas um pouco mais estiradas, era como se estivessem no ponto. O de enfrentar fantasmas.
O anfitrião três vezes contou de como a havia perdido, ainda muito jovem, e, então, por um formidável golpe de acaso, a reconquistado. E casado com ela, como estavam há já mais de década. Mas para tanto lançou mão de três versões. E, embora as três grudassem alguma parecença, espaçavam até alguns pontos nodais.
A primeira delas, no entanto, fisgava em melhor isca a atenção. Não era a mais longa. Tampouco a mais plena de possibilidades, repercussões. Muito menos tinha mais capa e espada. Não chegava a ser mesmo a mais confiável. Ou, sob outra pele, a mais ficcionável. A que vendesse melhor num livro redigido para ser um sucesso de crítica, de público. Não tendia à auto-ajuda. Não seria a que juntas de psicanalistas iriam consagrar. Enxamear-se em torno dela, como formigas em torno de uma nódoa de vinho à toalha, junto com professores de redação criativa ou curadores de eventos literários. E isso tudo no soporífero daquelas mesas de colóquio que, em geral, conduzem a algures sem nenhum vinco de graça. E cada um interpreta uma realidade tão viva, volátil, vibrante, viscosa – feito uma moreia, recém-pescada, debatendo-se com sua traiçoeira mordida na ponta do corpo oblongo – à luz de uma teoriazinha pessoal e intransferível. Tão rasa quanto os olhos sem piedade. Encurralada para todos os efeitos. Pouco adequada a aclimatar-se ou prosear com a vivacidade salpicada de nexos outros do assunto-moreia. Dos ruídos dos dias. Do emerso escuro, lá fora.
Coisas mortas e vivas quase sempre não se entendem lá muito bem, quando não se deixam imiscuir. E, então, colóquios do gênero terminam num mar-oceano de belas palavras sobre belas letras ou belas formas e nenhum esboço, mesmo que tênue, de algo um pouco mais afirmativo. Algo que conforme uma, mesmo que embaraçada, mesmo que embaçada conclusão -- essa verdadeira palavra-alergia. Porém toda a plateia e os debatedores mais jovens voltam para a casa certos de haver contribuído com algo ou testemunhado um evento que fez do mundo uma casa melhor, mais acolhedora. Algo que, por igual, mudou suas vidas. Ao menos pelas próximas quarenta e oito horas. E depois tudo é esquecido. Pelo menos até que venha o novo ciclo de palestras. E assim sucessivamente. Gira-girando. Um carrossel. E a gente comece a se interessar mais pelo sumplemento de Derrida do que pela iôga de Krishnamurti ou a noosfera de Teilhard de Chardin ou os aparelhos ideológicos de Allthusser ou o cinema expandido de Youngblood. Tudo que um dia seguiu em moda. E depois feneceu, queijosuicizando-se em mil orifícios, que os que escrevem tese fazem pouco, para depois as teorias em que se amparam voltem à tona, devidamente mofadas, como deve ser, pela geração seguinte, com vigor e esterótipos, em papéis que ninguém lê.
Porém, nas palavras do outro, essa primeira versão do reencontro com a mulher era de partir o coração. E podia não ser a mais coerente, entanto fosse a única a pedir releitura, pelo carga de tranco que recheava.
O outro a perdia de vista depois de um breve affair ainda bastante adolescente. E após aqueles meses de desnotícia e secretiva ansiedade, acabava sabendo que ela se envolvera com um engenheiro. Tinham ficado noivos. Moravam em Maceió. Ela dava aulas no Departamento de Psicologia. O tipo a passar parte do mês embarcado em uma plataforma de prospecção de petróleo, ao largo da costa de Sergipe. Depois voltava para o apartamento, em Pajuçara. Daí, sobrevieram outros calendários: nenhuma novidade. Nenhuma. 
E, então, algumas folhinhas após, nem tão por acaso e por um conhecido comum, durante uma partida de bilhar, soubera que o sujeito tinha ficado cego. Uma explosão de pequeno porte, que não chegara ao cabeçalho dos telejornais, dera-se no compartimento anexo à cabine em que dormia, na plataforma. O engenheiro havia sido aposentado. Invalidez. E o casamento, que iria se dar dentro de poucas semanas, fora cancelado, porque ela simplesmente não suportava vê-lo sem ser vista por ele. E não se sabe até que ponto vigia um vice-versa. 
Ela, de fato, não o viu mais o engenheiro. Voltou de Maceió para Fortaleza e fora justo quando o anfitrião e ela se haviam reencontrado de novo, por acaso, certa tarde puída e cheia de chuvas, no pátio da universidade, sob castanholeiras. Buscavam fôlego para discutir com os alunos no segundo horário e lancharam juntos. E aí tudo recomeçara. De início, doucement. Como nesses casos de reencontro. Até se casarem, um tanto pilototautomaticamente.
Ela jamais falava do engenheiro. Eles jamais falavam do engenheiro. Ela não permitia. Cultivava aquela zona de silêncio, como uma zona erógena não permitida. Tabu. Durante muito tempo, o outro esteve a par que ela e o engenheiro nunca trocaram qualquer tipo de correspondência. Erraram-se, como se diz.
Até que, muitos anos depois, já ao tempo dos filhos quase adolescentes, dos amigos virtuais, das redes sociais e có-seguidores em micro-bloggings, houve alguma correspondência. Algo elusivo, distante. Protocolar. Votos de feliz Natal.
O outro contava essa história com particular veemência. Um pouco como se ele próprio e estranhamente estivesse, de alguma forma, na condição do engenheiro. E não por escolha, capricho. E ele, então, quando voltava guiando para casa, no desapego da madrugada, podia sentir a escuridão e a cadeira de rodas do engenheiro, na varanda do condomínio, em Maceió, fixando no oco o Atlântico quebrando sobre as finas areias; e o futuro quebrado pela explosão na plataforma.


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