segunda-feira, 23 de maio de 2011

E nela, os istmos, onde o sol não vai

Canoas, de estilo camocinense, em Jericoacoara

Que fique bem claro

Estava escuro, um breu, mas foi tão bom. Chovia parco. As palavras que disseste. Foram ditas com tamanha despretensão. Sei que não vou esquecê-las. Pois foram breves e boas. Depois a mecha da lamparina latejando ouro e azul. E uma impressão curva, macia me foi repassada por tua pele e nela os istmos, onde o sol não vai, a luzir na penumbra. Grande sombra semovente à lona. Gravilha e ladrilhos calcários por matriz. Como a estampa que um ex-libris deixa. E porém houve o instante que não tinha mais nome em que não tinhas mais nome. E montantes e refluxos te molhavam na voz. Um sopro moldava vidros. E assim fomos com lagoas, aguapés, samburás e seixos. Ouvíamos a paisagem pulsar. Depois, devagar, o silêncio: rumor do mar tornado incenso. Chovia parco. A mão a separar em ti o que era amêndoa, o que era bago. A medir-te numa prece de cobre. O barro da bilha dando de beber sem lábio. Sutis gradações de branco, de arame. Porcelana em miolo, argila de pote. Uma sílaba. A gota transpirando sobre o mapa. Chovia parco. Sob o beiral, a calha represando as gotas para cisterna a bom caminho de cheia. E a breve intermitência da chuva a deixar estrias na praia. Naquela noite, eu sei, não houve queixas no mundo. Teu corpo chumbado em linfa e quartzos. Chovia parco. E parava. Havia areia e azulejos no dorso de teu pescoço. Era outro tempo. Era o mesmo. O sorvo da saliva fritando no teu lábio a caçarola. E a pedra resvalava quatro ou cinco vezes sobre a face das águas antes de sumir na transparência. O dente sulcando o potássio na fruta do peixe. Chovia parco. Parava. Um branco puxado a ouro acobreado em tua tez. A tessitura dos quadris afora, a dos tornozelos, a lassidão da cintura; tuas pressentidas membranas, os teus pelos, teus espasmos. Chovia parco. O cação perdendo o prumo, à flor d'água: sua compleição esguia. O mangue; e a lavandeira pousada no alto dos líquens e da orquídea. As escamas de tarpão respingando sobre nós, como confetes, à passagem da peixeira. Lá fora, imburanas oscilando ao vento recém-lavado. Chovia parco. Parava. Lembro da chispa negra em teus olhos. E dentro deles havia lagoas e oxalás. Uma felicidade vaga e espontânea, calcada no riso mudo a ferir o escuro. Aquele não ter pressa em erguer acampamento. Chovia parco. Formigas de asas a circundar a candeia. Lembro de beber a chuva por suvenir. De tomar tento. Lembro das dunas à volta, que eram gêmeas das tuas dunas. Do vento, que voltei, depois, para ouvir sozinho, dizer na tua voz, que o fortuito e o encontro, quando lhanos a norte, esclarecem a mais basta noite.


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