quarta-feira, 18 de maio de 2011

Oração adverbial de ressalva e preenchimento de linguiça

[s/i/c]


Toda uma História

Não contente em cadastrar a vida no Centro Cultural do Infortúnio, ela seguiu em frente. E passou a discutir o caso com a primeira recém-amiga que encontrou no MSN. Como sempre, queixou-se de tudo. Mais um pouco. E mais três poucos --- se fora pouco os outros dois primeiros poucos. E levou a derrama à terceira margem do rio. O pouco maior, vejamos, era a tremenda indiscrição dele. E dizia isso um tanto como se ela fosse uma celebridade e, em consequência, no dia seguinte, a casa de seus pais amanhecesse alvejada pelos flashes dos paparazzi. Fazia parte de uma sua certa ética da infelicidade cultivar para si essas pequenas flores de tensão, e reenviá-las devidamente plissadas, ao modo de origames, aos outros, para joguinhos de bem-me-quer-mal-me-quer.
Primeiro, queixou-se de todas as razões que só havia dentro de seu esguio esqueleto. E isso ela ainda não tinha assimilado. Isso de limites, razões, crânios. Esse dilema hamletiano, quase bipolar. A limitação de seu arrazoado somada a um terrível dom: a total incapacidade de expressar algum sentimento verdadeiro que empatava com a falta de sentir até onde terminava seu corpo e começava o mundo. Aquele terrível, amedrontador mundo dos outros. Era como se ela houvesse nascido e prosseguisse a viver num aquário, sem nunca, por um segundo, haver dado conta da água. Afinal, o ar lá fora não parecia muito mais diáfano. Descobrir a água, seria como descobrir a pólvora. E, contudo, mesmo com toda pirotecnia dos fogos de artifício, nas noites de Ano Novo, quão poucas são as pessoas que, à hora em que eles rebentam --- como uma bolsa no útero --- pensam de onde vem a pólvora, e retraçam seu caminho, por estepes sem fim, até o Império do Meio.
Porém, longe disso e enfim, ela chegara a porto. Podia passear, livre, leve, solta – como se diz – em Carceirópolis. Naquela Carceirópolis virtual que suavizava o sem sentido de copiar e colar informações o dia inteiro com o automatismo de uma atendente de telemarketing. Podia, no corroer da insônia, soltar sob forma de verbo o que a enxaqueca represava:
–Agora, puxa, tinha toda uma história por trás – disse a tal recém-amiga, recrutada às pressas, como confidente, na madrugada não analógica, a expressar-se por uma fórmula um pouco cansada. Sim, esse célebre “tinha toda uma história”. Será que esse conspícuo “tinha toda uma história” referia-se à historiografia francesa dos Annales? A inaugurada por Bloch e Febvre na década de 20? Ah, sim? Não. Até podia ser, se não soasse parte integrante de entrevista de ator ou atriz da Rede Globo. Aquela parte integrante de entrevista que já é quase um termo paliativo da oração. Uma espécie de oração adverbial de ressalva e preenchimento de linguiça. Daquele tipo usado para encher um vácuo entre finíssimas películas, que, uma vez devidamente recheias, se leva às labaredas do churrasco, no próximo final de semana, entre o riso inconsequente, qualquer revisão dos dias, o involuntário salpicar da cerveja – que seja para o santo, então – e a marca de batom que fica sobre o sal cristalizado à superfície da carne crestada, perto do furo do espeto:
Se bem que, algo tão intimo exposto, é estranho – ponderou a recém-amiga, mesmo que também no rumo dos quatro pontos cardeais da net e da arte de encher linguiças tenha saído a expressão. E a expressão era, outrossim, um pouco menos torpe, um pouco menos trivia, que a primeira, posto que a carga silogística do “se bem que” parecia levemente menos clichê e adolescente que o daquele repugnante “tinha toda uma história” – que recendia a um grande espelho de closet e alguém diante dele, comendo-se fixamente com os olhos, no bater das horas, ao largo da madrugada; ou a uma daquelas grelhas de bueiro entupidas no vértice das sarjetas em dia de temporal, onde tudo redemunha, mas os detritos ficam do lado de fora.
Ora vamos, essas coisas de "tinha toda uma história" a gente vê mesmo é em diálogo de telenovela. Mas principalmente em entrevistas de atores e atrizes, onde os pontos altos do "conteúdo" são caras, bocas. E, ainda assim, não recorrem menos – apesar de especularmente insossas, uma vez ditas sem o cenário, a maquiagem, o figurino, a direção de câmeras, os rebatedores, os spots, as luzes de segundo plano – nos MSN's da vida real: 
Dá pena do rapaz! – concluiu a recém-amiga, com vontade de apear do assunto mas simultaneamente movida pelo fascínio incontido de saber se o rapaz leria ou não sua comiserada interjeição.
Dias depois, e ninguém se lembraria mais daquilo. E aquilo tudo não seria mais que cinzas em um acampamento bérbere deixado para trás ao fundo de um vale, no grande deserto do Saara dos signos. Da incompreensão que eles geram? Nem falar. Se havia dado, mesmo, uma conversa? Ali?
E a resposta seria o vento passando nas palmas das tamareiras. As salamandras ao sol. As pegadas e riscos apagados na superfície das dunas. Sem qualquer possibilidade de undo.
Ou então, a resposta seria: pouco provável. Uma conversa se dá quando duas pessoas – adultas ou não – lançam mão de palavras que, de fato, provem de muito longe, nos circuitos do coração. Anos-luz de uma intenção. O que, convenhamos, não é a maioria dos casos, quando, no supermercado dos signos, saímos a campo colhendo, nas prateleiras, todos os itens postos no carrinho de compras com a roda dianteira esquerda emperrada. Aqueles itens necessários para publicizar – e o que é pior, sem criatividade alguma e para o mundo inteiro – a unilateralidade de um gemido bem dentro do crânio, apenas porque se sente um pouco de dor, lá, nos hemisférios dela, por conta de uma combinação de café, Neosaldina, Coca-Cola, e aquele pavoroso ambiente de trabalho, que previamente era sabido: implicaria nisso.
E, porém, no grande aquário de um dia depois do outro, ao falar da água e dizer que se tem consciência dela, prossegue-se nadando, nadando com se fosse possível ignorar o fato de se estar completamente encharcado. 


Para o resto da vida.

* * * 

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