quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A cidade demarca-se por onde nela se é

Juan Miró, Paysage, 1927

Madureza Ginasial

The delight that never fades, the bliss that is eternal, is only yours when what you most desire is just out of reach.
.                                                                                                                                                [C.S. Lewis]

Quando saiu para caminhar depois de algum tempo fora, redescobriu, ao cruzar o estacionamento do supermercado, o quanto a cidade se referencia por onde nela se é feliz. E assim os olhos descansam naquilo que nos acolhe feito casa. Nos dá ou deu abrigo. E até mais bons-dias recolhe no percurso, nas compras, até chegar àquele ponto. (E como ele pôde chegar àquele ponto; àquele nó, tão cedo; se mal havia aprendido, ainda em recentes anos, as coordenadas e Descartes?) E é quando se convoca saudações, porque se segue, protagonista de si. O que, no íntimo, tudo e todos os que conspiram a seu favor querem mesmo é que você seja, a despeito de inseguranças, da idade.

E, assim, ao sair do supermercado os olhos tocaram a pequena cobertura. Em ato reflexo. O terraço incipiente, o aparente passar batido em meio à paisagem, se vista daquele estacionamento onde se erguia, em tempos ainda mais idos, a moradia do interventor. Quem liga para isso. Porém a cobertura minúscula, improvisada, a que se entrou, quase sem querer e crer, quando muito jovem, ainda está lá, escondida como era seu uso, acima da copa dos velhos oitizeiros. A oscilar, minúscula ilha de sanidade, entre duas propostas que não há mais: a escola secundária de um lado e, do outro, a velha casa de cômodos (para moças de família?) – uma convertida em centro comercial; a outra, quem diria, em maternidade. Uma ilha não de todo deserta, mas daquele tipo para onde se levava os dez melhores discos. E eram lados A e B de rascantes quereres, girando na hesitante luz da manhã, como uma rede armada, suspensa, lá, acima, entre dois golpes de vista. Um pouco escondida pela folhagem dos oitis e acácias. Alpendre alçado em segredo sobre a cidade serenada.

Também a mente dava voltas. Ele abria-se à vida quando ela morou ali. Não havia demarcar tempo preciso: horas comuns ou extras, zelos sem razão, fundação de calendários. Tudo precário e bom. Um pouco clandestino como essas coisas de professora e aluno. Já tão próximos e, ainda assim, sem o inoportuno de celulares, notebooks, tablets ou i-alguma coisa. O estorvo megamétrico das redes sociais. O sem-fim de recidivas ao redor de uma máquina e seus monopólios. E, do contrário e em carne osso, pelo e encanto; ela era sua professora na graduação. Embora e sem descoser, não fosse nada professoral em atitude e vocação a maior parte do tempo. E, em seu apego ao fortuito, se entregasse de corpo presente, de corpo inteiro, mas sem esquecer que podiam faltar um ao outro a qualquer momento. Sem deixar de acenar para a planura de fatos contra os quais não se pode ir, para a evidente precariedade do ensejo:

–Veja se agora você descobre outras coisas.

Parecia dizer. Não dizia. Era quando muito o insinuado. (Talvez tenha dito uma única vez).

E, assim, todas as horas vividas no contínuo emaranhado de corpos que se movem. E prosseguem. Sem deixar margem para maiores inquisições. Ficções. Falsos consolos. Quinhões de elaborar. Sem abrir espaço para uma outra manhã metafísica. Posterior. (Solene?). Para outro amanhã, além da contingente bondade material, palpável, longe das palavras – com cheiro de cerveja, café, farelos de pão, sobejo de massas, pratos pingando no escorredor – de suas presenças ao longo de noites que não podem ser vendidas separadamente. Noites não definidas pela manhã. Mil delas e uma. Suores porejando. E ela: branca, nua. Farta em suas linhas. E quando pensa que ela era bem mais jovem do que ele é hoje, um riso calmo percorre lábio. E o passo sofrea-se como num transe.

É como dizer com atenção, prospectividade, do dia que se vai formando. Às primeiras horas. O bem-te-vi ensaiando frases no fio de luz. Os bandos de fogo-pagou temperando de tons – cinzas, castanhos-claros, zincos e águas-fortes – a tropicalidade ao redor. Aquele pio tão rural desabando sobre o asfalto. E logo ela nua, mapa, farta em suas linhas. Copiosa. Longilínea forma de ser vasta. Esquadrinhável por diversos compassos. Lavada em tons castanhos. Profundamente cavada sobre si (e para mais quem). Como o rumor de trovões distantes – amarrado ao cair da chuva encorpando – cerca a existência e o quarto, repleto de distinção, variedades, ritmo.

Como o bom-dia. Ou o bom-dia.


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