terça-feira, 11 de outubro de 2011

There will be a show tonight on trampoline: insanidade e afetos

Kazimir Malewich, 1914



Abruptas mudanças de humor, times pequenos e o sexo dos anjos
-ou Trocas de pele para contar de Fátima Miris numa nota de rodapé


Soube que Lara desceu baixo por ele. E dizem que ela parecia aqueles times pequenos. Aqueles que depois de uma temporada no meio da tabela, caem para a segunda divisão sem olhar para trás e obstinadamente. E seguem tão desaguerridos que parecem cair livre. Como se a queda fosse uma especialidade da casa mais que resultado de uma conjunção familiar confusa ou de uma terrível maldição bíblica: 
“Cairás!” 
Que fazer? Lara tinha a instabilidade de humores desses clubes que marcham para a Segundona com o entusiasmo de uma criança a desfilar ao lado dos coleguinhas no Sete de Setembro. E nesse rápido mudar a personalidade entre divisões (ou talvez divisórias), lembrava um subgênero quase esquecido do Vaudeville: os chamados atores proteicos: Fregoli, Brachetti, Marchetto, Ramsden, Fátima Miris. [¹]
Esses atores, mestres do disfarce, mudavam de roupa, aspecto, tom de voz, personalidade – e até de sexo – tão no estalo dos dedos que despertavam a suspeita de ali haver um caso de gêmeos agindo como um só. Ou algum truque mais elaborado. A exemplo de Lara e dos atores proteicos, adotando involuntariamente essa repentina mudança de humores e aspectos, esses clubes devotados à instabilidade abrigam-se sob camisas leves como hélio. Fáceis de serem trocadas ou perdidas; modificadas, enfim, ao sabor do primeiro patrocínio. E avançam pelas rodadas cambaleando. Cabras cegas. Envoltos numa espessa cortiça de breu. Tentando rasgar o breu com canivetes suiços, mas, a saber, indo mesmo é para a capital do Beleléu. Aqueles times frágeis até no nome: Anapolina, Desportiva, Linense, Fast, Barueri, Londrina e Américas para estados, estádios, cores e gostos sortidos.
Ora, vamos, tornando ao tema de Lara, e tudo não passou de Cataratas do Iguaçu a moverem turbinas numa hidroelétrica binacional do coração. E viver não é consolo quando se tem dezesseis. E, a cada ano, o Brasileirão é de uma dificuldade para lá de bipolar. E mal sabia Lara que seu projeto afetivo longe de ser auto-sustentável provocaria um desmatamento de quase setenta e três por cento da Amazônia de sua auto-estima; além de um apagão de dez horas e três estados na Região Sudeste de sua alma. Algo que nem a comiseração aparentemente desprendida do atual analista, ao modo das Ong's, ao modo dos curadores de conteúdos e bienais, ao modo dos transformistas do Vaudeville podia minorar. No fim, a gente sabe: nem teraepeutas, nem Ong's, nem modos, nem curadores, nem transformistas são tão desprendidos assim quando vistos ao micoscópio. E há nessas lentes de ilusão ótica, potentes feito o fervor de uma menina de catorze pela filosofia de Justin Bieber, muita transparência para se olhar através. Até onde?
Até as grandes paixões. Repletas de zelos, ciúmes doentios, humores involuntários e drágeas de venlafaxina miligramadas em diferentes dosagens. Escândalos. Mesmo que seja impossível, de fato, perceber certos microrganismos, séries de pequenas causas e efeitos, faits divers, enfim, que escapam até ao historiador da pós-contemporaneidade, ainda que adestrado na Paris IV. E a música em difração, a banhar à luz do mistério e do abstrato tudo que vê (e não vê) pela frente. Microentes que, se postos no microondas para derreter, não fariam muita falta à virtual totalidade dos humanos. Mesmo que esteja comprovado cientificamente, deu no Fantástico, que todo mundo precisa de um pouco de gossip para seguir minimamente saudável e estaminado. E, no entanto, é preciso também prosseguir com certas insanidades: a escrita de teses, monografias, TCC's; por mais inócuos, placebos que esses trabalhos surtam. Bem como administrar instintos possessivos feito monopólios do envasamento e distribuição do gás de cozinha ou dos tabletes de banheiro.
Do contrário, à Lara como aos times do Z-4 tem faltado gás e descanso. O time prega no segundo tempo. Lara, ainda no primeiro. Algo nada bom quando se tem dezesseis. E, assim, o modo desanimado com que Lara coa o chá prescrito pela nutricionista dá testemunho do vexaminoso rebaixamento e de o quanto a Bolívia e os gasodutos estão desgraçadamente distantes de sua fortalezense vida, repleta de facilidades e shoppings; de triângulos de chegadinho, clubes precários e caranguejos. Na próxima temporada, se os patrocinadores chegarem a um acordo –  e eles estão quase se divorciando –  quem sabe o time possa se reinventar com uma mesada mais robusta. Contratar muito, bem e de risco. Reforçar-se. Comprar de olhos fechados e fiado. Navalhar com o cartão de crédito. (Quem compra sem poder, vende sem querer -- não é assim que se diz?) E subir de novo para os braços do grande amor.

Para cair uma vez mais. 


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[¹] Fatima Miris (grafa-se sem acento no italiano), cognominada a Fregoli de saias, foi uma personalidade de renome mundial nas três primeiras décadas do séc. XX. Fatima Miris era nome artístico da cantora e atriz Maria Frassinesi. Filha de um oficial do exército e de uma condessa, Miris, que havia sido educada para ser professora de primeiras letras, resolveu optar pelo teatro após assistir, em 1901, uma apresentação de Leopoldo Fregoli. A atriz escrevia alguns de seus próprios sketches, possuía grande habilidade mímica, conhecia música e viajou por meio mundo: Europa, Américas, Austrália, Nova Zelândia, Egito. Miris casou-se em 1921 com o Conde Luigi D'Arco. Tiveram uma filha. A performer fez extraordinário sucesso no Brasil e na Argentina antes de se retirar de cena e retornar para a Itália em 1932. Optou, então, pela vida privada, embora tenha aberto uma única exceção para fazer uma derradeira turnê pela América do Sul, onde o público do teatro de revistas reclamava sua presença. No Rio, por exemplo, chegou a dividir o palco com atrações como Noel Rosa. E é de se supor que os dois se tenham conhecido. Vinícius de Moraes a menciona, de passagem, em uma sua crítica de cinema. Durante alguma temporada, sua irmã Emília Frassinesi, que tocava violino, fez parte da trupe. Em Buenos Aires, aquela mulher europeia, sofisticada -- mas que optara pelas operetas de cabaret -- era recebida como uma diva. De outro modo, chegou a apresentar-se para a Rainha Helena de Savóia, para deleite da monarca. Portanto, Miris não era exatamente “obscura”, como assim a caracterizou o cronista cearense João Nogueira em seu livro Fortaleza Velha. Miris, como rezam as crônicas, inaugurou o Cine Teatro Majestic, na Praça do Ferreira, em 1917, com um espetáculo musical de transformismo cênico e mímica que encantou e inquietou a plateia, confusa e insegura quanto a qual seria, de fato, o sexo da atriz. Fatima Miris morreu em Bolonha, em 1954.


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