terça-feira, 29 de novembro de 2011

Entre a fonte do estrondo e seus olhos

Gentil Barreira, 2010


Todo Sentido


Minha caçula tem olhos de matiz inusual. Sua mãe diz que são olhos de jabuticaba. Mas não são – apesar da sonoridade da palavra reter algo deles. Estão mais para olhos claro-acastanhados que se graduam quando postos à luz. São olhos de mel. Olhos de âmbar.
O que de mais próximo tive da cor de seus olhos, em termos de objeto, foi o breu. Quer dizer, aquela resina cristalizada, semi-transparente, odorífera, que dá vontade de morder, mas que na verdade se passa nas cerdas do arco do violino.
Outro dia levei-a a passear até a Pracinha do Artesanato.
Pressinto que é sua praça preferida, embora a primeira vez que ela mencionou ter ido à Pracinha da Dois Mil, com a Comadre Dinda, foi de mover o coração o modo como pronunciou o nome. E eu não sabia que se chamava assim aquela praça, que, de resto, não fica na Dois Mil – e o que convenhamos é muito mais saudável a uma praça do que, digamos, se chamar General Tibúrcio.
Uma vez na Praça do Artesanato, se faz manhã, ela gosta de correr atrás das lavandeiras, aos gritos de: “Lavandeira, Lavandeira!”. Ou, se é noite, molhar o pé na pequena fonte luminosa. Qualquer seja o relógio, gosta de apostar corrida com o pai para ver quem chega primeiro ao vagão de trem que há por lá, galgando por uma passarela cujas placas de metal vibram inteiras sob nossas passadas, risos e certa narração nem tão fastidiosa quanto as da Fórmula-1 .
Verdade que, no início, deixava descaradamente que ela ganhasse. E pressinto que, hoje, nem tanto.
Burlas minhas à parte, ela sabe criar seu riso. Belisca pipocas, empadinhas. Gosta de cajuína e de água de coco. E de brincar com outras crianças, desde que isso siga uma espécie de rito-piloto-automático. Agora, se um adulto lhe dirige a palavra, ela logo detecta o cara-pálida, refugia-se num amuamento  de  indígena língua-travada.
Dia desses, admirou-se bastante de ver duas crianças idênticas. Mas não da atenção que os pais dos gêmeos lhe dedicaram. 
Brinca nos aparelhos de fisioterapia, desce no escorrega, que é íngreme além da conta, e mede um pouco os cachorros e gatos por Faísca e Valencinha – o dachshund que foi de casa, mas acabou indo parar na casa da cozinheira; e a branca, fellin(i)amente gorda e ronronante gata da avó, que tem os dois olhos de diferentes cores.
Entre nossa casa e a praça há quatro quarteirões que ela já reclamou menos de ter de caminhar, apesar de menor.
Hoje protesta um pouco, se não vamos de carro. E isso apenas indica o quanto, desde a barriga da mãe, acostumamos nossas crianças a só andar de carro para cima e baixo.
Mas, então, àquela manhã e perfazendo o penúltimo quarteirão antes de chegar à praça, fomos colhidos por um grande estrondo à nossa direita. Passávamos bem defronte ao casarão de certa família que deu as cartas por décadas na política de Camocim, mais a oeste e norte, no litoral. Eu podia ver o que acontecia. Ela, não. Um muro e tapumes havia entre a fonte do estrondo e seus olhos.
E o que acontecia era uma retroescavadeira golpeando com fúria as paredes do que costumava ser, aí nos idos dos 70 e 80, o Centro de Fisioterapia . A máquina agia com presteza. E a cada golpe uma vasta porção de parede vinha abaixo: concreto, ferro retorcido, muita poeira.
Ergui minha filha, que pôs seus olhos castanhos claros, fixos e arregalados, acima do muro, na inusitada cena - para ela, então e totalmente inédita.
Na cabine fosca, o vulto do operador da máquina, um ás da demolição. Deixava o bulldozer em só uma das esteiras, apoiando-se no guindaste contra paredes, e depois tombar  sobre os tijolos partidos e  caliça acumulada: a máquina a dançar em suas mãos com desenvoltura. Espécie de Mozart da arte de demolir.
Mas ela não achou muita graça dessas destrezas. Ficou olhando. Sondando a cena. Admirada, de início. Mas depois, amedrontada pela violência, a fealdade da coisa. E exigiu que eu a levasse para longe. E acabou associando a “grande máquina destruidora” – como a chamei – ao Lobo Mau e ao Bicho Papão.
Faz todo sentido.


* * *

Nenhum comentário:

Postar um comentário