terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Alain de Botton e o Templo dos Ateus

Após bombardeio leitores retornam a uma biblioteca em Londres durante a II Guerra

A Catedral de São Judas 

Parece que os últimos filósofos decentes a versar sobre religião foram Pascal, Espinoza, Vico e Kierkegaard. Nietzsche e Schopenhauer são divertidos de ler, mas sabem a certa ressaca romântica, típica do séc. XIX. Ora, nem todo mundo é louco por Wagner; e, afora isso, Søren Kierkegaard bota ambos no bolso do casaco como se fossem lençinhos de rapé. É tão denso o dinamarquês, que o existencialismo já está lá. Mesmo que ao tempo de sua morte Nietzsche não tivesse mais que 11 anos. Simone Weil e Wittgenstein têm considerações para lá de interessantes, mas não muito sistemáticas. E de momento, um suíço radicado em Londres, Alain de Botton, filósofo e apresentador de televisão, lançou um livro paradoxal: Religião para Ateus: Um guia para Não-Crentes sobre as Utilidades da Religião. O livro de de Botton dificilmente acrescerá algo de mais belo, poético ou misterioso à Bíblia ou ao Corão, aos Upanishads ou ao Livro Tibetano dos Mortos do que o futebol de botão acrescenta ao seu correspondente de viva grama. Mas de Botton - ao que parece para confirmar o estereótipo do masoquismo suiço ou ainda legitimar sua estranha dualidade profissional - vai mais adiante e propõe um templo para ateus. Quer dizer, para ateus do bem. Ou seja, aqueles que respeitam as religiões históricas e constituídas. E, sabe-se lá, até emitem para elas energias positivas, sinais laicos de boa vontade ou seja lá o que isso for. Ou ao menos não as hostilizam tão abertamente, como é moda nos países pós-industriais. Ateus “diferentes”, portanto. Da nova era. Da Era de Aquarius? E, não menos importante, ateus sobretudo diferentes dos ímpios Richard Dawkins e Christopher Hitchens, que de Botton afunda no inferno do ateísmo ao acusá-los de serem péssimos ateus, pois cheios de má vontade, intolerância e falta de consideração (laica) para com o próximo ateu e para com o não próximo religioso. E excomunga a ambos das hostes do ateísmo. A espécie de catedral dos ateus - onde se pode adorar quem bem se entenda: Cristo, Buda, Iavé, Maomé, Clark Gable, Iemanjá, Freud, Sophia Loren, Ayrton Senna - já está com metade do investimento captado, segundo de Botton, que deve ter apertado lá seus botõezinhos para tirar tanta grana de ateus beneméritos em tempos de vacas um tanto anêmicas. De outro modo, de Botton descende de judeus sefardí e seu pai trabalhou para os Rothschild na Suíça. Quer dizer, de gerenciamento ele entende. E o templo começará a ser construído no final de 2013. Mesmo que a gente olhe de cá e se indague se não há outras prioridades no âmbito da União Europeia. A edificação será erguida em Londres, naturalmente. Agora, como é uma obra de vulto e ainda não tem nome, vai aqui uma sugestão:


CATEDRAL DE SÃO JUDAS ATEU


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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Venceu o toureiro

John Livery, 1885

Digna de Borgs e McEnroes

Talvez não haja sido o melhor jogo de tênis já disputado como querem alguns, mas foi uma partidaça. Foi de roubar a respiração da gente no sofá a final do Aberto da Austrália. E vazou da manhã para a tarde – o que equivale da noite para a madrugada, na Oceania. Quer dizer, para quem gosta de tênis: prato cheio. A torcida, numa final, é por um jogo demorado, disputado, como o de ontem. Disputadíssimo, aliás. Lances de improviso; longos rallies; alternativas de ritmo; pontos que pareciam não chegar ao fim; saques a 200km; winners profundos, nas linhas; paralelas tiradas na régua; drop-shots mais que inesperados. Djokovic dominando amplamente os primeiros sets, e Nadal os últimos, também por ampla vantagem – embora a contagem seguisse apertada. E, quando tudo psicológica e fisicamente pendia para o lado do espanhol, não mais que inesperadamente Djoko recobra o elã necessário to win the thing. Mas claro, tem sempre um incauto, que não saca do riscado, e sugere que se ache uma fórmula de pôr uma prega, de abreviar a disputa no tênis. De ganhar tempo até por aqui. Ora, camarada, há quase dois séculos que é assim, longo, demorado. E um dos charmes das partidas de Grand Slam – melhor de 3 sets, no masculino – é justo quando elas ganham essas proporções épicas. E ficou nítido que, apesar de ser a sétima derrota consecutiva para o tenista sérvio, o touro miura parece estar bem mais perto de batê-lo outra vez. Uma final de epopeia. Quase seis horas de jogo. É um quarto de dia jogando tênis. Ou uma jornada de trabalho. E uma polémica recai sobre a paridade da premiação do masculino e do feminino, quando se sabe que só nas duas últimas partidas (semi-final e final), Novak Djokovic deve ter corrido mais e despendido mais tempo, suor e energia que Victoria Azarenka, a campeã do feminino, em todo o torneio. E que água esses europeus do leste bebem, hein? Azarenka, à sua vez, não é exatamente uma Sharapova, no quesito glamour. Tem aquele estilo meio boyzinho, um pouco anódino, andrógino (mas andrógino de um jeito neutro, insípido) de vestir e portar-se na quadra. Usa calções ao invés da saia. Mas vá botar uma sainha, soltar os cabelos para as fotos com o troféu, no dia seguinte, e surge o mulherão. E com pernas gloriosas. Vamos ver se ela se firma na liderança do feminino que, não é de hoje, aspira por tenistas consistentes nas cabeças, como já foram as Evert's, Navratilova's e Graf's da vida.  

Para um texto sobre a essência do jogo de tênis em Afetivagem: Aqui.

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domingo, 29 de janeiro de 2012

A psicologia do fã

Martin Scorsese, The King of Comedy, 1983

Se não foi o mordomo, deve ter sido o fã

Fã é alguém cabeça de vento, cego e louco para matar. Que é cabeça de vento, nem é preciso estender-se. Ventilador em inglês se chama fan. É cego porque nunca pensa no grau das dificuldades, só no glamour. Não lhe ocorre, por exemplo, que pode acontecer de seu venerado ídolo estar quase vomitando de tão completamente enojado da canção que ele tem de repetir pela enésima vez, como uma maldição desesperadora, espetáculo após espetáculo. Ou que essa é uma rotina pelo menos tão massacrante quanto os desgastantes e repetitivos procedimentos de trabalho dele próprio, fã. E, fora de dúvida, fã é louco para matar, porque como o filho, o soldado, o subordinado, o paciente, o aluno  – que têm sempre o parricídio ou o motim (ainda que simbólicos) como solução no horizonte – ele próprio se encontra nitidamente numa condição como essa, e que ele julga inferior. Há, portanto, o desejo de ser o ídolo, estar na posição do outro: subverter jogo e balança. Chegar ao poder. Avessar a ordem. Desinverter o espelho. Esse revestrés tem de acontecer mais cedo ou mais tarde, caso contrário ele não estará em paz consigo mesmo. Nesse tipo de relação, como sugeria Hegel em outro contexto, não só o escravo é escravo, mas também o senhor é escravo do escravo. Mais ou menos como a classe-média brasileira tem sido escrava do tráfico e dos despossuídos a ponto de viver atrás de grades no último meio-século. Ou dentro de condomínios monitorados como presídios. E então alguns fãs, mais literais, não contentes com mortes simbólicas, chegam à solução final: o assassinato do ídolo. O de Lennon foi um emblema. Mas Harrison, dentro de casa, escapou de ser morto por um fã pela astúcia da esposa. E ainda assim  os ferimentos resultantes desse episódio precipitaram a fragilização de sua saúde. E vai aí metade dos Beatles dizimida por fãs. De ilustração, há uma comédia negra de Scorsese (The King of Comedy, 1983) em que Jerry Lewis faz um papel um tanto autobiográfico: o de um grande cômico. Ao passo que De Niro, um aspirante a comediante e fã de Lewis, o sequestra e mantém preso numa casa. Além de ter uma arma apontada contra si, Lewis ainda é obrigado a ouvir as gags de De Niro. Ou fingir que as aprecia, fazer cíticas, sugestões, etc. A situação é absurda. Mas o filme é um bom subsídio para a psicologia do fã. Até porque depois de algum tempo não se sabe mais o que é realidade e o que vem da mente em delírio do sequestrador-fã. De resto, todo fã é um potencial sequestrador. [1] Ou no mínimo alguém extremamente violento em potência. Afinal, ele nunca está contente por princípio. Vê o ídolo, mas olhar não arranca pedaço. Colhe o autógrafo. Mas a foto é ainda mais imprescindível: ele e o ídolo, enfim, juntos. Há a foto. Mas que tal uma mecha de cabelo ou a camisa. Colhido o suvenir, há o número de telefone. Agora, nada como um encontro: para jantar? E depois, claro, chega-se à cama. É tão delicada e frágil a ordem entre fã e ídolo, que há entre gente mais velha e/ou de classes populares aquela clássica confusão instantânea que de pronto a subverte: "Fulano é meu fã",  diz a velha senhora crente que está dizendo o contrário. Em verdade, diz inadvertidamente o que todo fã inconscientemente deseja dizer. Ou ouvir. Hoje, com a quantidade de comentários absolutamente maníacos ou esquizóides que se encontra internet a meio, bem se pode perceber que um grupo de fãs está muito mais perto de uma falange de freaks ou de um magote de doidos do que se imaginava só uns quatro sistemas operacionais atrás. Logo, bem se pode suspeitar qual era a ambiência entre as famosas groupies de pop-stars dos 60 e 70. Os macabros assassinatos levados a cabo pelos fanáticos de Charles Manson guardam algo da explosiva violência do fã. E não há dúvida que se o fenômeno do fã já existisse tal como hoje ao fim da época vitoriana, uma famosa catchphrase teria de ser modificada. Ao invés de "the butler did it", seria: "the fan did it". Pois, se não foi o mordomo, deve ter sido o fã. 




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[1] E, aqui, seria importante conhecer o que Mário de Andrade entende por sequestro - uma conotação de sobretons eróticos - em seu conhecido ensaio "Amor e Medo".

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sábado, 28 de janeiro de 2012

Lírico, Lúdico, Lúcido, Louco: Jean Vigo e L'Atalante quase 80 anos depois

Jean Vigo, L'Atalante, 1934

Tudo que corre perigo

Tudo que surge ao lado, em surpresa, e corre perigo faz parte do que eu quero com você. Esse é mais o menos e involuntariamente o lema de qualquer jovem casal. E os dramas e epifanias de qualquer jovem casal estão bem expostos em L'Atalante (1934). A visão lírica, lúdica, lúcida, louca que Jean Vigo lança sobre recém-casados nesse filme, cuja beleza e poesia salpicam para fora de cada fotograma, tem um preço: chegar perto de empatar com vida. O que imprime a L'Atalante o erotismo de que o filme se reveste é a contundência de saber que o afeto entre um jovem casal passa inevitavelmente pelo curto-circuito do corpo. Da carícia. Não há possibilidade para amores imaginados, ideais. Ao centro desses corpos o amor queima. E não como se queima um feed com vírtua distância. O que ocorre entre os jovens recém-casados é uma corrente elétrica que lhes reanima, acende os corpos. E, assim, não é pouca presença de espírito demarcar uma cena de masturbação de ambos no entrecho de uma amarga e inesperada separação. E olha que estamos nos anos 30, não nos 60. Há vários aspectos de um cinema moderno e mesmo procedimentos e dispositivos da nouvelle vague antecipados por L'Atalante. E não à toa Truffaut entrevê em Vigo uma espécie de herói-precursor que é reverenciado e devidamente citado em Le Quatre cents coups. Mas à certa altura, mesmo esse filme perenemente atual, é subitamente assaltado por um instante de modernidade indelével também no emprego preciso e definitivo da música. É quando o Pére Jules (Michel Simon) - que, fora de dúvida é o grande motor da mise-en-scène - sai atrás de achar a jovem esposa (Dita Parlo) do capitão. As digressões desse velho marinheiro pelas eclusas, pontes e passarelas de Paris são secundadas por um tema musical que sequestra tudo para uma ambiência imponderável e onírica. Uma ambiência que antecipa o tanto de mundo que será videoclipado meio-século adiante. Ou nos faz lembrar daqueles vagabundos que se tornam andarilhos por nostalgia. E então, na desoladora ternura e suavidade do tema, desliza algo como se no procedimento houvesse um pressentimento de Beatles, que só viriam trinta anos depois. São momentos fortes assim que nos levam a perspectivar o quanto há de perecível e passado em boa parte inclusive da tecnologia que nos rodeia. Como quando vemos num filme de dez ou doze anos atrás os modelos graúdos dos aparelhos celulares de então nas mãos dos atores. E como parecem desgraciosos esses aparelhos que só servem para telefonar. E, no entanto, se nos determos melhor, mais dos que os aparelhos são os atores, a conversa deles, o próprio filme, o modo como segue gravado e editado, que assomam constrangedoramente datados e descartáveis. Volumosos, desgraciosos, afetados, como se também fossem parte do design dos aparelhos. Como se derivassem desse design. Ou o ressaltassem ainda melhor que os próprios aparelhos. E olha que não são mais que oito ou dez anos passados. E no entanto, para aquele que tem uma ideia mais consolidada, histórica, digna do que é linguagem cinematográfica e por onde se deu a evolução dessa linguagem, filmes como L'Atalante parecem haver sido feitos hoje pela manhã. E, por igual, semelham abrir-se muito mais rente à nossa sensibilidade do que os blockbusters realizados com régua de público, renda e premiações de festival à mão. Ou com a contagem dos mililitros de lágrimas que extrairão por espectador. Filmes como L'Atalante não se enquadram em teorias. Eles as criam. No caso de L'Atalante é paradigmático o tanto que se tentou atrelar o filme a uma canção ("La Chaland qui passe") como forma de torná-lo mais "vendável". E assim, pela mão dos produtores, o filme foi inicialmente lançado com uma montagem diversa da de Vigo, e que buscava ao máximo ressaltar a canção. Nessa versão, levou inclusive o título da canção: La Chaland qui passe. Porém no âmbito do filme em si, durante sua gravação - ou tomado enquanto mera intenção - havia tanta verdade, inquietação, invenção que, algum tempo depois, consideravelmente remontado à proximidade do que Vigo havia assinalado ou  previsto, o filme foi relançado com seu título original. E desde então, atravessa o tempo como um dos mais efetivos esforços de uma era em que fazer filmes falados era ainda um desafio incerto, uma grande aventura diante da sofisticação a que chegara o cinema mudo - basta lembrar que Chaplin irá filmar Tempos Modernos (Modern Times, 1936), o último suspiro do adorável vagabundo e epílogo do cinema mudo, dois anos depois de L'Atalante. A celebrada descontinuidade da sequência inicial do filme de Vigo não é uma ficção, um acaso ou um fetiche nouvelle-vaguista. É, do contrário, algo que está para além até mesmo do conceito de vanguarda. Quer dizer, daquele conceito vulgar de vanguarda como um brinquedinho de quem é do contra ou se acha demasiado na ponta - como se arte e sensibilidade fossem de uma mensurabilidade científica ou quantificação econométrica: "sou mais de vanguarda do que você, viu?" (Mas isso não é o próprio rosto do politicamente correto? Não vive o politicamente correto dessas mensurações torpes? O politicamente correto daria náuseas em Vigo, Bresson, Tarkovski) Para não dizer dos que querem ser vanguardistas por esporte. Talvez para ressaltar que têm margem para ser do contra. Pois, em vez da mesquinha chatice e singlemindness que certos procedimentos vanguardeiros convocam - e isso é ainda mais patente nas instalações que em qualquer outra modalidade de arte - o que se percebe na aridez, na amplidão desconstruída da sequência inicial de L'Atalante, a do casamento, é poesia - o que, convenhamos, é um estágio muito mais difícil de ser atingido do que a vanguardinha de velocípede que qualquer cineasta da província propõe hoje em dia. E é a poesia o que energiza as junções desse filme incomum em que erotismo e esplendorosas locações externas se sucedem um tanto em revezamento. E há uma sucessão de bem tramadas sinestesias. Pelo menos até a gente chegar ao ponto de divisar na paisagem a angústia existencial  e a indomável beleza em jogo a partir dos corpos desejantes. Porque, então, há um sucedâneo concreto, preciso, objectual para cada hesitação, suspiro, delírio, devaneio. Para cada abstração corresponde a concretude de uma imagem. À cada ideia há um objeto equivalente. Por exemplo, um sobrado avulso, aceso, à margem do rio, quando a noite principia, quer dizer desolamento ou medo do futuro. Ou pode ser visto como o reflexo de uma noiva no espelho, se em diálogo com uma outra tomada. Uma correspondência, enfim, só possível nesses filmes em que a própria paisagem, as roupas, os objetos dão testemunho do sentimento geral que povoa os espíritos. 
[A sequência da deambulação do Pére Jules pode ser vista aqui nos dois minutos iniciais deste trecho do filme no Youtube. Ela encerra com uma inusual pan vertical e logo vemos Dita Parlo numa loja de fonógrafos, pagando por uma execução de "Le Chaland qui passe". Mas é a avassaladora ternura desse outro tema, com suas inflexões de realejo de feira e inexcedível nostalgia o que dá o tom da coisa. E pré-propaga o videoclipe. É um tema feito sob medida para os que flanam pela cidade sem um roteiro pré-definido ou um ponto onde chegar].


Ou para mais L'Atalante e Vigo em Afetivagem: Aqui.

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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A Europa é política interior?


Os franceses vistos pelos outros europeus

Estereótipos e o Poderio Germânico

Entre os europeus é mais ou menos como segue abaixo o modo o como o todo vê cada parte. Os tipos foram publicados na edição de ontem do Guardian. É uma brincadeira e o fundo de verdade que há por trás de uma brincadeira. A União Europeia já foi uma ideia mais auspiciosa. Nos últimos tempos, enfrenta consideráveis dificuldades. Ainda assim há o que comemorar: 70 anos sem guerras entre os países mais poderosos da Europa. Parece uma eternidade. E, sem embargo, alguém duvida que o coração do projeto seja a Alemanha? Eles, ao contrário dos franceses, têm feito um esforço danado: a discrição é a chave. O que eles não conseguiram através de duas guerras, estão conseguindo de modo pacífico. Ainda esta semana Angela Merkel, em entrevista concedida a três grandes diários europeus (El País, Süddeutsche Zeitung e Gazeta Wyborcsa) indicou que a saída para uma Europa revigorada é um parlamento europeu forte, e a transferência de poder político do âmbito nacional para o da união continental. Como o sócio-chave da união continental e seu pilar econômico é a Alemanha, isso equivale a dizer: “reununciem à soberania nacional que nós alemães assumimos as rédeas das decisões políticas e econômicas”. E é exatamente esse o projeto dos alemães que, não por caso, nos estereótipos logo abaixo são vistos como ultra-eficientes, disciplinados e os que tomam aos outros os melhores lugares ao sol. Se por tomar lugar ao sol se entende uma imagem para a tomada de decisões, a metáfora clica à perfeição. Os alemães já propuseram, inclusive, que a Grécia ceda o controle decisório sobre impostos e gastos públicos para instituições europeias. Na prática, é o fim da soberania grega. O ponto é que, além de ser a maior potência econômica da Europa, os trabalhadores alemães efetivamente trabalham mais (e produzem mais) que os trabalhadores franceses subsidiados, com jornadas ínfimas e aposentando-se cedo. E ao contrário dos ingleses, que tiveram sua base industrial dizimada pela desmedida importância dada ao setor de serviços, a Alemanha preservou estrategicamente a sua. De outro modo, chega a ser sintomática a sensação do correspondente espanhol Javier Moreno Barber, um dos entrevistadores de Merkel: "Basta atravessar as portas da Chancelaria Federal em Berlim para compreender onde reside de verdade o poder na Europa". 

Os Estereóptipos de The Guardian:

Os Ingleses
Hooligans bêbados e mal-vestidos, ou livre-mercadistas empedernidos e esnobes.

Os Franceses
Covardes, arrogantes, chauvinistas e erotomaníacos.

Os Alemães
Super-eficientes, diligentes, disciplinados e propensos a surrupiar os melhores lugares ao sol no verão.

Os Italianos
Sonegadores de impostos, estilo Berlusconi, amantes latinos e filhinhos da Mama, incapacitados para bravura.

Os Espanhóis
Machos e mulheres fogosos inclinados a fiestas e siestas, assim que nada é realizado.

Os Poloneses
Beberrões ultra-católicos com cheiro de antisemitismo e uma extrema destreza como encanadores.

Fonte: Guardian

P.S. Uma piada diz que na melhor Europa, a comida seria francesa, a música pop inglesa, o design italiano e a polícia alemã. E numa Europa de pesadelo: uma comida inglesa, música pop francesa, design alemão e polícia italiana.


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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

E Newt Gingrich comeu Sarah Palin


Sutilezas linguísticas nem sempre são sutis


Curioso para saber o que foi feito de Sarah Palin? Bem, Newt Gingrich a comeu e absorveu seu ardil.

Esta chamada é o título de um post de Hadley Freeman, colunista do Guardian, em seu blogue, hoje. 
Convenhamos, no Brasil não pegaria nada bem dizer que Newt Gingrich comeu Sarah Palin. Mas em inglês o verbo [to eat] não abre margem para conotações, digamos, mais ambíguas. 

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Hugo, o Big Ben, Scorsese e Harrison



O Primo Caçula da Torre de Pisa

Ontem, a notícia de que o Big Ben pode estar inclinando, querendo ficar parente da Torre de Pisa, foi a mais lida por onde ela saiu. No El País da Espanha ou na BBC Brasil. No El País – quem pode explicar – foi mais popular que uma entrevista com Angela Merkel, em que a líder alemã discorre sobre a crise espanhola. A força dos símbolos. Imagine-se então quantos milhões de dólares a mais não ganharia Scorsese, se ao invés de morar por trás de um relógio anônimo, numa obscura estação de trens fictícia, em Paris, o seu Hugo vivesse por trás do Big Ben. E, note, não de qualquer Big Ben, mas de um que se vai descobrir - em paralelo à exibição de Hugo - estar inclinando: teria sido a glória em terra. E então seria preciso apenas descobrir alguma ligação entre Méliès e Londres para factibilizar um roteiro que pudesse contabilizar ainda mais lucros, como deve ser em casos assim. Mas raios não caem duas vezes no mesmo lugar. E, de resto, quem assistiu o documentário de Scorsese sobre George Harrison (Living in the Material World, 2011), pôde constatar que além de nada trazer de propriamente novo em termos de informação, música ou iconografia, também nada acrescenta à forma documentário. A impressão que se tem - ao contrário de seu celebrado filme sobre Dylan (No Direction Home: Bob Dylan, 2005) - é a de que dessa vez Scorsese parece ter entrado no projeto apenas com a grife do nome. 

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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A devida cidade, as armas, o fogo

Raimundo Cela, Camocim, c.1935

Três braços de rio

a estupidez do tempo em que vivemos confunde coragem com vantagem, empenho com intransigência. mas há o fogo amarelo e azul, capaz de incinerar o que existe de mais sórdido em cada destino, tempo, retina.

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o western fundou o gosto pelo deserto¹. é o mais épico dos gêneros. volto a ter dez anos quando vejo um. 

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e se brincar com armas de fogo de brinquedo desse em assassinos, metade de minha geração teria ido para a pistolagem. e a outra metade? teria sido fulminada.

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¹o apreço pelos westerns jamais seria o mesmo se as praias do ceará não fossem grandes desertos. há uma antiga canção quase esquecida, popular em décadas anteriores, que diz: “não há deserto, não há/ como as praias do ceará”. acho engraçado como nessa canção ufanista surge esse contar vantagem porque os desertos são mais desertos aqui que em qualquer outra parte do planeta. mas esse é o ponto. ou era até a década de 80, quando toda essa bela desertama foi chacoalhada com a chegada de turistas a rodo. e tudo tem um preço, senhorita baraldi.

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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Menos Luiza


/sic/

Luiza Rabello circulou ontem pela Fashion Week. Quer dizer, Luiza não está mais no Canadá. Atropelando o prazo de seu intercâmbio, retornou às pressas para o mais previsível dos empenhos: gravar uma sequência do comercial do condomínio junto com o Pai. A coisa toda cercando seu instant celebrity converteu-se num fait-divers típico da rede, nonsense, bem-humorado. Certamente com outras ressonâncias locais que desconhecemo. Até Lenine, que fazia show em João Pessoa no pico da onda, pegou carona. E para preencher a lacuna de algo que começou num vt bizarro, Luiza é linda. Ontem exibiu a forma de seus 17 anos num vestido colante para os flashes dos fotógrafos de moda. Entre outras coisas o fato a notar é o quanto se tem tornado corriqueiro jovens brasileiros de classe-média fazerem intercâmbio ou passarem temporadas em outros países. Em geral, de língua inglesa. Que certo tom pedante do pai resultasse na fama instantânea de Luiza, não deixa de desfechar para o melhor essa curiosa história de consagração popular via virtual.


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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Os últimos degraus não são nomes do adeus

Jim Dine, 1973

Nada mais em demanda


Olho os desenhos e a palavra no fogo. Fogo amarelo e azul.
O inverno aperta. Nossas provisões a meio. Debaixo das cobertas, a bondade do teu corpo. Dormes. Teus odores no travesseiro. Temos biscoitos, batatas, lentilhas, defumados, beterraba, uma sobra de vinho. Porém nada mais em demanda que lenha. Calculamos mal. Quando nos apartamos do mundo para viver neste sótão, entrevíamos abaixo, no rio, toda a nobreza suando em trajes de caça. Arrastando sua pompa em jogos e faros de galgo. Havia apenas uma escada nos ligando ao mundo. Agora faz muito frio. E há meses que só temos um ao outro. Não imaginávamos mais fácil. E nada há que entregar. Pontos ou rapadura. Sei que gostas de gatos. E que custou ter-te apartado do teu. É a única coisa que falta. O brilho dos olhos de um bichano. Por vezes não aquece menos que lenha.

E então ontem retirei mais dois degraus da escada.

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domingo, 22 de janeiro de 2012

a briga é feia e abriga

Hans Arp,  Soulier bleu renversé à deux talons, sous une voûte noire, 1923

alguém duvida que o judiciário é hoje o poder mais corrupto no brasil? A briga é feia e abriga não pouca controvérsia. O judiciário passou anos à sombra. Sucessivos mandatos, planos econômicos, escândalos trazidos à tona ao sabor das conveniências dos banqueiros e dos tubarões da indústria, da soja. Passou o legislativo e executivo como vidraças da vez. Nesse ínterim, mamava por fora, calma e perfidamente. Não como um morcego ou uma chinchila. Mas como um paquiderme. 

até vir uma mulher de coragem. Mas isso são só começos. Agora, esperar o dinheiro do petróleo azeitar ainda mais esse engenho de desvio e subornação indica Venezuela, Nigéria. Ou algo do gênero.

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sábado, 21 de janeiro de 2012

Sem chamadas, sem chance

Paul Chan, 6th Light, 2007

A Qualidade de Vida

o filho morrera ainda criança. a mulher chispara com um juiz. as veleidades musicais, represadas num álbum lançado ao tempo da graduação. roía-se o cotidiano por crises. longe da zoada dos botecos. os longos percursos não tornavam ao ponto. restou-lhe a amante. 
a espera dela é que era leitmotiv. e por onde iam os filtros. o teste de sua paciência. fosse permitido recall no campo dos sentimentos, aplicaria para a reposição da paciência. e, quem sabe, com um novo kit – pouco importa a  marca – pudesse fazer frente uma vez mais ao mundo.
e não como alguém que se permitiu em vida haver-se passado ao passado. porém como um executivo. ou ao menos um supervisor de trainees. e logo, num desses dias de espera por ela, sem chamadas, sem chance, tramado em sua furiosa oficina de lembranças, seguia trabalhando. inútil o afã de prosseguir o recadastramento. não eram poucos os imóveis que a firma geria no leste da cidade. por que parecia tão sem sentido fazer aquilo? e olha que era algo em demanda antes já das festas.
e assim, nos intervalos, levantava-se, ia até a porta. fumava. entrolhava pelas venezianas: a nesga de rua, carros passando na avenida, galhos de acácia morrendo de calor, calmaria nos vagares do verão. dias a reincidir uma semana vítrea. lisa. sem reentrâncias onde cravar pinos, na escalada para a inexorabilidade de um body-jumping libertador.
retrocedia. sentava diante do monitor. abria planilhas. fechava. nada se resolvia por meio delas. 
no começo da noite, da calçada uma voz escamou a posta de trívias que encrostava o escritório. estremeceu. não era a voz dela. rogou que esperasse. vestiu uma camisa limpa. foi ao banheiro. penteou-se. pôs um pouco de loção após barba. acendeu a luz do vestíbulo que às vezes lhe servia de quarto.
eram duas mulheres na mesma penumbra.
enquanto a que estava diante dele falava, a outra era só mutismo e copas. conversaram breve. a que falava era jovem e bonita:
-então o senhor é corretor?
-sou, mas, vocês me desculpem, é que eu estou no meio de um trabalho, ocupado.
ela, ato contínuo, virou-se sobre a bolsa a tiracolo. de uma espécie de mostruário, sacou um folheto com certo embaraço. repassou a ele. e ele pode notar como os rostos crisparam-se no intervalar da conversa. delas, escoladas, experts nesse afazer de porta em porta, pensou. e voltou à escrivaninha. esfregou os olhos com força. desdobrou o folheto:

o último livro da bíblia indica a qualidade de vida que você terá no paraíso”.

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A alma de muitos negócios

Hans Arp

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uma vez, criei um slogan para a feira da música. 'xá, ver. como era mesmo?

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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

No único ponto em que você daria tudo para segui-lo — Benjamin sobre Chaplin

Charles Chaplin, The Circus, 1928


Suas roupas são impermeáveis aos golpes do destino


Há um inesperado registro de Benjamin em que ele esboça uma breve resenha de The Circus (Charles Chaplin, 1928). Achado entre seus papéis de circunstância, a intersecção entre esses dois emblemas do séc. XX, o clown e o crítico, foi incorporada às Obras Completas (Gesammelte Schriften, VI, p. 137-138) do autor de Rua de Mão Única. A pequena resenha, inédita em português, salvo engano, é como segue: 


Chaplin

Depois de uma exibição de O Circo.
Chaplin nunca concede o sorriso aos espectadores enquanto estes o assistem. A audiência tem de duplicar-se: ou gargalhar ou ficar muito triste.
Chaplin saúda as pessoas erguendo a cartola, e parece a tampa da chaleira decolando quando água ferve.
Suas roupas são impermeáveis a cada golpe do destino. Ele bem parece que não as retira faz um mês. As camas e ele não se entendem; quando deita-se, deita-se em cima de um carrinho-de-mão ou de uma gangorra. Todo encardido, suado, metido em roupas demasiado curtas, Chaplin é a encarnação viva do aperçu de Goethe: o homem não seria a mais nobre criatura sobre a Terra se não fosse nobre o bastante.
Esse filme é o primeiro da maturidade de Chaplin. Ele envelheceu desde o filme anterior, mas também atua como um velho. E a coisa mais tocante desse novo filme é a sensação de que agora ele possui uma clara perspectiva das possibilidades abertas diante de si, e resolveu trabalhar exclusivamente dentro de certos limites a fim de alcançar os propósitos.
Ponto a ponto a variação dos grandes temas de Chaplin é revelada em toda a sua glória. A perseguição se dá num dédalo; sua aparição inesperada assombraria um mágico; a máscara de alheamento o transforma em marionete de feira. A parte mais maravilhosa, entretanto, vem do modo como se organiza o fim do filme. Ele joga confete no jovem e feliz casal, e a gente pensa: pronto, é o fim. E então lá se tem ele, de pé, quando o cortejo do circo toma seu caminho; ele fecha a porta à rabeira de todos e a gente pensa: pronto, é o fim. E então o surpreendemos enfronhado no aro do círculo previamente esboçado pela pobreza, e se pensa: pronto, agora é o fim. E logo surge um close-up de sua figura completamente desconjuntada, sentada sobre uma pedra no picadeiro. E então se pensa: agora o fim é inevitável. Mas daí ele ergue-se e é possível vê-lo de costas, caminhando para mais e mais distante naquele passo característico de Charlie Chaplin, que é sua própria marca registrada ambulante, feito a marca registrada da companhia que a gente vê em outros filmes. E então, no único ponto em que não há cortes e você daria tudo para segui-lo com o olhar para sempre—o filme acaba.

[Walter Benjamin]

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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Paula Ney e o Espírito da Sátira

A Confeitaria Colombo, emblema do Rio Belle-Époque

Quando Morre a Divindade

Francisco de Paula Ney era figura carimbada nos círculos boêmios cariocas ao tempo de João do Rio, Emílio de Menezes, Olavo Bilac, do grande Lima Barreto. Sua presença de espírito era assunto de antologia. Jornalista, também escreveu versos. Mas ninguém lembra dele por isso. Ou talvez, mas sem querer. Indiretamente. É que um vestígio perto de imperceptível de soneto vive muito ao lado da gente. Paula Ney é o autor do mais célebre – e improvável – aposto à Fortaleza: “a loira desposada do sol”. 

Em 2012, Paula Ney acerca a inexistência. Tirante o professor Sânzio de Azevedo, um ou outro erudito por dever de ofício, ninguém mais o lê. Mas há a expressão – que todo mundo adora, e está nos lábios dos fortalezenses. De resto, é tudo que sabemos – quando sabemos – de Paula Ney. E também mal podia antecipar Paula Ney que um século depois de haver escrito mais um soneto aparnasianado, uma prefeita loura – mas não propriamente desposada do sol – iria usar e abusar da expressão em eventos públicos. 

Difícil explicar o porquê dessa loura desposada - e logo de quem - fazer tanto sucesso. Talvez por estar disponível, vá saber. Casar com o sol não requer juiz de paz. Não é casar com o próximo, bem entendido. Ou quem sabe, disponível, mas também bronzeada como manda o figurino. Embora se estivesse casada com o Pedro, o Nogueira, o Luís ou o juiz de paz, não estaria menos. Bronzeada, fique claro. E há por igual o fato de a metáfora para uma cerveja gelada ser uma loura, e vivermos debaixo de um sol de rachar. E não é uma tremenda, deselegante injustiça associar as louras àquele maldoso clichê que envolve testes de QI?


Por outro lado é de admirar que o politicamente correto ainda não haja reivindicado a cabeça do aposto em nome das ruivas, das morenas, das afro-brasileiras, das judias, das teuto-sulamericanas, das ítalo-brasileiras, das albinas, das sírio-libanesas, das descendentes dos povos indígenas, das polacas, das nisseis, das que assoviam mascando chicletes, das que que trazem aquele meio centímetro de queixinho dividido, das que implantaram botox, das que guiam cabriolés... Manuel Bandeira foi mais direto ao ponto quando disse que as "mulheres são lindas, inútil pensar que é do vestido".

Mas, então, contam de Paula Ney que a sua - que não se sabe ao certo se era loura - saiu-lhe ao encalço e antecipando em meio-século a canção de Vanzolini. É Sexta-Feira da Paixão e estamos naquele Rio de Janeiro Belle-Époque. Pode-se ver o filme. A trama é universal, claro. E, aqui, todo homem tem a Penélope que merece. A de Paula Ney, por fim, encontra-o no boteco - que bem podia se chamar Bar da Circe - entre amigos, amigas pandeiros, tangos, fandangos.
Resignado, ele então ergue-se, um pouco trôpego. E ela:
Chico, até no dia em que o Senhor morreu!
E ele:
Querida, veja, quando morre a Divindade, a humanidade cambaleia.

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APPENDIX


O que o fortalezense preza, por vezes sem dar conta, em tipos como Paula Ney é a presença de espírito. Certa saudável molecagem que satiristas como ele e Quintino Cunha abriram por marteladas de humor. Foram eles que cavaram os veios de onde se entrever em certo caráter cearense - aqui, é saudável fintar a palavra identidade - a afinada sintonia com a estação FM do humor e da sátira, depois confirmada na televisão. Logo, não são os arabescos e literatices do texto o que ficou. De um modo misterioso essa presença de espírito, de boêmio profissional, infiltrou-se, deixou algum travo no sensabor desses versos excessivamente estilizados - ou bilaqueanos de um jeito mau. De qualquer modo, segue abaixo o soneto ufanista de onde se extraiu a expressão. O melhor dele, além do consagrado aposto, vem pelo travo incongruente dessas "ondas azuis dos verdes mares" ou desses "matagais" onde paira certo espírito de porco e sátira. O resto está repleto de hóstias de luz, verbenas, pipilos e dormitares, como era praxe à época. Pode-se, de outro modo, ouvir ecos dele em diferentes tempos e letras de música, como na "Praia de Iracema", de Luís Assumpção:



Fortaleza

Ao longe, em brancas praias embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares,
A Fortaleza, a loira desposada
Do sol, dormita à sombra dos palmares.

Loura de sol e branca de luares,
Como uma hóstia de luz cristalizada,
Entre verbenas e jardins pousada
Na brancura de místicos altares.

Lá canta em cada ramo um passarinho,
Há pipilos de amor em cada ninho,
Na solidão dos verdes matagais...

É minha terra! a terra de Iracema,
O decantado e esplêndido poema
De alegria e beleza universais! 



[Estação de Chuvas, 2012]

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Arrumar o cabelo e seguir vinte e cinco anos depois

 Julio Gonzalez, Mulher Penteando o Cabelo, 1936

Vai, passa a mão

Você tem saudade daquele garoto magro, de cabelos longos, caindo nos olhos, que vivia lendo no ônibus? A caminho do campus, todo um enxame de meninas acotovelava-se em torno. E como passavam as mãos nos cabelos. E o garoto, de tão avoado, pensava, ato contínuo, que era porque os cabelos dele estavam desgrenhados. 
Pelo menos até o dia em que uma mais afoita – que nunca é a que gente quis ardentemente – desvelou a razão com a complacência de um hímen.
E agora você sabe, segue pelas ruas de manhã cedo. Comprar pão, azeitar um pouco as juntas. E avulsa, uma menina longilínea, bem aquinhoada, saída de um sonho colateral, surge na esquina. E no tumulto do  coração você grita em pensamento:
Vai, passa a mão no cabelo”!

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

No momento em que o acesso ao conhecimento é ameaçado pelo dinheiro

/sic/

Estava Escrito

o congresso americano ameaça a Wikipedia e muito da melhor fronteira livre e grátis da rede. Esteja contra. Posicione-se. Faça-se ouvir. Passe adiante. 


era só uma questão de tempo. Estava escrito que estes dias viriam. Para um artigo sobre a disciplinarização da internet em Afetivagem, favor clicar aqui.

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As Fatias Sobre o Prato


Marc Chagall, La pluie, 1911

Rendição

Se houver cidade mais bonita que Fortaleza sob chuva, me rendo. Mudo agora. Mas mesmo assim não posso. Essa falsa loura de Paula Ney me pegou pela raiz dos cabelos. Há uma qualidade no ar e nos sons que são pura chuva. E faz a gente sonhar com geografias grandes. Com poemas épicos e feitos na Índia e em Cipango. E são muito mais saborosas e tenras as fatias de manga rosa que se vai fazendo sobre o prato da manhã. 

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O Mais Esperto Comunista

Susan Rothenberg, 1976


Fuga em dó maior para imprensa e cavaquinho

Sem barganha, chantagem, investimento em reportagem investigativa, custosa, de risco. Uma pauta como pede o figurino. E, ao invés disso, jovens e talentosos jornalistas, como Daniel Piza, é que se vão. E o velhinho ali, firme. O sorriso do velhinho rende-lhe centros culturais nas Astúrias e um bocado de dividendos. Outros de esquerda, que passaram terríveis  apertos não  ousariam sonhar com o glamour de sua vida, entre presidentes, politicos influentes, ditadores, ministros, executivos de transnacionais e uma proverbial abundância de mulheres bonitas. Inspirado numa vida assim há certo filme em que Jean Paul Belmondo faz o papel dele: O Homem do Rio. Há anos os necrológios perseguem Niemeyer como galgos. E farejam-no o corpo franzino por todos os poros, resfriados, internações, vesículas, boletins. Eles já estão meio pra fora das gavetas, dos arquivos feito língua de sogra. Que estão prontos há anos faltando só a causa mortis, todo mundo sabe. Mais que prontos. Já passaram um pouquinho do ponto como um abacaxi roído pelo calor de janeiro. E nada. Em 2009, grande esperança, o decano foi hospitalizado às pressas. Desse mato sai cachorro, apostaram as editorias.  Certo amigo me escreveu de São Paulo solicitando um artigo para ontem. Qual o quê, alarme falso. Mais falso que certos implantes de silicone ou o amplo conhecimento náutico do comandante Francesco Schettino. Era apenas um problema de vesícula. O velhinho, por birra decerto, até casou uns cinco anos atrás. Um século e quatro anos. Oscar Ribeiro de Almeida tinha sete anos ao tempo da Primeira Guerra. Quando veio a Semana de Arte, bem podia tê-la assistido, do alto de sua adolescência. Para a imprensa, ah, como seria providencial que o último modernista, o derradeiro daquela estirpe de intelectuais monopolistas e mercuriais, que praticamente reinventaram o país, morresse nesta calmaria pré-carnavalesca. É todo o assunto que os jornais e os portais desejam: luto, revisão da biografia, imensas fotos, longos vídeos com os palácios de Brasília, a Pampulha, o Copan, o prédio do Ministério da Educação e Saúde, O edifício da Onu, a Sede do Libération; e para adiante, mundo afora, muitos croquis depois. Seria uma pauta e tanto. Pauta merca. Comprada a peso de nada. Sonho dourado dos editores da vez. Fora de dúvida e até nisso de morrer, Niemeyer é o comunista mais esperto que já existiu. Carioca, ele tem uma voz dengosa, de mineiro. E uma matreirice mais que mineira, mineral, que dá de dez na malandragem do Rio. Aos 104 anos, dizem que ainda vai trabalhar. Não é certo se chega a debruçar-se sobre a prancheta e extrair esboços como um recém-formado. Mas os amigos dizem que reserva um tempo ao fim da tarde para tomar seu malte, fumar um puro, e contemplar as meninas nas areias de Copacabana. Vai nisso uma receita?


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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Meigura, ternice e corinho

Isamu Noguchi, 2009

Recentemente, tive de retornar ao estrupício do Facebook por uns tempos e razões impublicáveis. (Estou em vias de me mandar de novo). É um verdadeiro thriller macabro o tanto que todos são espirituosos e/ou afetuosos por lá. Asfixia. Escolher entre ser gênio incompreendido ou distribuir amor, flores, tumblr's e simpatia em doses cavalares. Eis o dilema no Livrorosto. E eu estou fora, definitivamente. E, de cara, a mensagem de mais senso que enxerguei por lá, morrendo de medo daquele turbilhão de obviedades e afetos, é a do poeta e tradutor paulista - também ás da publicidade - Luís Roberto Guedes: “Pessoal que vive florindo a minha página com mensagens de meigura, ternice e corinho: dá um tempo”. 

Faz todo o sentido.

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segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Uma imagem arranhada

 
Claes Oldenburg e Cossje van Bruggen, 1995


Desde antes do romantismo nutre-se aquela imagem dos comandantes de navio: bravos, cavalheiros, intrépidos lobos do mar. Eles têm um papel decisivo na história do país. Quando pequenos, ao menos por um minuto sonhamos ser capitães de navio. Aí vem esse tal de Francesco Schettino e estraga tudo.

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domingo, 15 de janeiro de 2012

Para uma dama na ponte-área

Robert Mangold, 1/3 Gray Green Curved Area, 1966

pra já, sua balada sugerida corta a tarde como se passa o fio da faca no limão antes de espremê-lo acima das bordas da caneca. calor. há tanto calor nas bordas da tarde. e esse piano, riscado a lápis, vai a deixar gotas de caixinha de música; e atesta o quanto você pressente bem o que gosta. e há na balada uma atmosfera de inevitabilidade e diminutas de desassossegar coração. e faz a gente olhar pra dentro daquela intermitente despensa, onde se guarda a memória de quem se gostou muito em breve prazo. e eu lembro do que suas mãos são capazes. e por aí a gente segue editando o resto do clip, da epopeia. é. lembro de como você dizia que eu preparava o mate mais gostoso do mundo. tenho me esforçado. já sabia que não era mau. mas agora sei que é especial, porque você é danada de exigente com os outros, mas é principalmente cruel, uma lampiã consigo mesma. e depois desse tempo, fico pensando se ainda segue maquiada pro trabalho. se segue a promover sorteios a partir de blogues. se ainda joga gamão ou tem de vez em quando a vontade louca de que o mundo acabe só para contar depois que presenciou um grande fato histórico, já que você perdeu a queda do muro. e anote, ninguém sussurra “you do something to me” mais bonito. e com certeza, você ainda gasta horas sem conta falando de moda daquele jeito bacana. daquele jeito que até eu, comprador de uma pá de camisas e calças iguais, só pra não ter de pensar muito na hora de calçar meus all-stars, gosto. mas reconheço, desta vez foram eles, os all-stars, que pisaram na bola. e, sei, é tão difícil reconhecer. e a mão segue escrevendo e não digo: “desta vez, pisei na maldita bola". e por outro lado, antes suprimi o pronome. é. você tem toda razão, a gente nunca quer assumir a responsabilidade, ser o sujeito dessas bagaceiras do coração. e o que mais mesmo? espero que você esteja bem. e se o mundo não acabar amanhã, não perca a esperança, algo deu errado. mas saiba, a coisa está por um fio.

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