quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O George Harrison da Poesia Concreta

Juan Miró, Intérieur hollandais, 1925

A Poesia Concreta e a Voltinha no Quarteirão

Augusto de Campos sempre me pareceu o mais ponderado dos concretistas. Discreto e, ao mesmo tempo, profundo. Décio foi meu professor. E um ótimo professor. E há versos seus que já trazia de cor antes de conhecê-lo e ainda trago até hoje (“Gira, girando meu carrossel” ou “Iroquês, iroquês que fizeste?”). Mas sua prosa experimental é um bocado chata. E seus poemas na fronteira da publicidade, apenas fáceis. Haroldo, o mais incensado quando vivo, lembrado até para um possível Nobel – que ele não ganharia, por mais empenho que botassem nisso – tinha aquele olhar de louco. Quer dizer, de louco que passou o dia todo lendo e não saiu de casa nem para dar uma voltinha no quarteirão. Ou limpar a vista com a passagem das meninas. Ou pelo menos deixar o pobre do au-au fazer cocô em paz.¹
Se bem que Haroldo não tinha cachorro, caçava com gato. Quer dizer, caçava referências e citações com gato. Porque nunca que ele deve ter caçado na vida, a não ser o sentido de um verbo anômalo num dialeto inuíte desses qualquer.
A falta dessa voltinha no quarteirão foi o que matou a poesia concreta. E fez com que ela, dissociada do actual e do cotidiano, vivesse e perecesse sem muita glória. Em Leminski, por exemplo, a voltinha no quarteirão está lá, e muito lá. O mesmo se pode dizer de sua geração: Chico Alvim, Ana Cristina Cesar, Cacaso, Nicholas Behr, Alice Ruiz, Charles et alli.
Todo esse povo que vem sob a hashtag de Mimeógrafo Generation ou poesia marginal² deu boas voltinhas no quarteirão, num quarteirão do tamanho do mundo, ao invés de ficar só lendo e afagando gatos. Aqui a impressão que se tem dos concretistas é que o máximo que eles aprontaram foram meta-travessuras ou, digamos, meta-vexames. Ou seja, pequenos e inocentes escândalos em bienais de arte e salas de concerto.
O resultado disso foi que a minha geração leu um bocado da teoria e das traduções dos concretistas. Mas na hora de ler poesia, a poesia que pulsa, bate viva feito coração, fere e afaga, a que não tem bula nem contra-indicação, a que vai além da citação, do pastiche, dessas literatices, era muito mais divertido – e menos Aranha sem graça – ler Leminski, Torquato, Alvim, Ana Cristina, Cacaso e as letras de Chico e Caetano. (Quem pode negar?) Exatamente os que eles consideram “diluidores”, seguindo, à letra, a sovadíssima classificação de Pound.
Ainda assim, quem desconhece a teoria, as traduções e alguns (poucos) poemas que passaram pelas privilegiadas cacholas desses três senhores, merece mais compaixão que apreço. O Balanço da Bossa, de Augusto, por exemplo, é um livro bastante subestimado. Uma das melhores coisas escritas sobre nossa música popular. É quase tão bom quanto Tinhorão. E vale tanto ler um quanto o outro.
Esta semana, vi Augusto falando numa entrevista. Augusto é uma glória nacional – e não segue aqui um grama de ironia. Visivelmente incomodado por ser interrompido – por essa mania feia que os repórteres têm de cortar a fala do entrevistado quando ele está no melhor, só para confirmar que inspiram e expiram, que “participam”³ – ele falou com enorme propriedade, fluência sobre sua formação e participação no movimento.
E com a calma que faltou a Haroldo. E, às vezes, falta a Décio.
Há duas coisas excelentes no temperamento de Augusto, e que estendem-se obviamente a seu processo de criação. A primeira, é não se tomar tão a sério, embora seja o que mais se manteve fiel à perspectiva concretista – e há muita coerência e idoneidade nisto. É, portanto, o que mais deve a sério ser tomado. A segunda, é revisar épocas e períodos inscrevendo generosamente sua vida num panorama, num circuito bem mais amplo de nomes, ideias e obras.
Além disso ele diz coisas bem urdidas como:

arte longa vida breve
escravo se não escreve
escreve só não descreve
grita grifa grafa grava
uma única palavra
greve greve greve greve


Reparem que isto é bom, não por ser poesia concreta. Ou por estar posto atrás de um papel manteiga e certos tipos gráficos pretensiosos e sem serifa num belo livro chamado Viva a Vaia. Do contrário, é bom porque nos faz lembrar das redondilhas dos finados cantadores do Nordeste. E bom porque possui certo ritmo, certa bossa, certo engenho. Alguma ligação com o mundo exterior para além dos paideumas. Parece até escrito por Leminski!
A falta de sal na poesia concreta não se deve ao seu meio rarefeito. Nem sequer ao programa em si. Ou as características de anti-poesia. A impressão que se tem é a de que eles levaram tanta porrada do status quo, do pessoal de 45 - ainda mais Aranha sem graça que eles - que ficaram muito defensivistas e prescritivos. Há uma rigidez proto-militar na poesia concreta. Um hieratismo intelectual asfixiante, sem porosidade ou transitivos para a vida fora dos livros.
Quando Haroldo, já maduro, tentou algo para fora dos livros, tarde demais. E soou apenas incongruente. Mas Augusto, por uma estranha dialética – e isso foi percebido por João Cabral – ao se manter mais fiel ao programa original, ao plano-piloto, conseguiu também transpor um pouco mais o percurso de ida e volta do livro para a vida.

Por fim mas não menos sublinhável, em provocação, a ilustração é Miró, um surrealista. Mas, de repente, a exemplo de Murilo Mendes, um surrealista bastante admirado por quem os concretistas admiravam: João Cabral. De outro lado, deixamos Mondrian, que eles adorariam ter como ilustração, em postagens mais ou menos próximas por aqui. Alusivas. E, no entanto, apartado deles, como de resto Mondrian – ao menos aquele que se descobriu um amante tardio do bogie-woogie – haveria de se postar, à distância, se soubesse da poesia concreta. Provavelmente, logo intuiria o grau de insípido hieratismo ao qual ela se propôs desde seu bater o centro. De contrariedades, provocações, bons desníveis é também feita a poesia, a crítica. E não só de receitas miméticas, de algo que se viu num livro ou num quadro, de tentar copiar um procedimento apreendido num seminário de pós-graduação ou numa sequência de Antonioni. De citações inócuas, enfim. A boa poesia vem do livro, sem dúvida, mas antes vem do mundo: da infância cheia de temores, incertezas; das intensas cores e falas da cidade; dos sonhos misteriosos, não digeridos pela manhã; dos botecos e cantinas; do receio antes do vestibular; dos pátios de faculdade em meio ao ramerrão da política estudantil; das insônias e outros vícios; do deslumbramento e da paixão; das dores de cotovelo e de corno; das bebedeiras e desesperos de quando se tem vinte anos; dos alugueis atrasados; das viagens com pouco dinheiro; de sentir-se o terceiro excluído; da demissão sem justa causa; das injustiças sofridas e cometidas; do misterioso tempo arrasando formas e criando outras igualmente belas e translúcidas; de concretudes e de abstrações nem tão abstratas assim; e etc. e etc. E, não resta dúvida, até de poesia concreta. Mas não só. E bote não só nisso.

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¹ Em Perdizes, aliás, as calçadas ficavam desoladoramente cagadas na década de 90, porque a moda ainda não era levar também o saco e a pazinha. E, re-aliás, os mais velhos não diziam “em Perdizes”, mas “nas Perdizes”. Era, tri-aliás, como Décio e Haroldo se referiam ao bairro: "nas Perdizes". E era engraçado ver mentes tão universais e ilustradas expressarem-se de um jeito que me lembrava, de alguma forma, o de senhores de idade no interior do Ceará, com esses artigos no plural concordando com o topônimo, e reforçando uma ideia de familiaridade que se perdeu no vão do tempo. Ou na poeira de trilhas e encruzilhadas menos "literáticas" do que se supõe. E eles - ocupados demais com manifestos, bienais, teorias - talvez nem tenham se dado conta. Na verdade, ao flexionarem essas partículas para concordarem com o nome do bairro, eles pareciam Seu Chico Noronha, morador de meu avô, falando das Imburanas. Havia um elo secreto entre Seu Chico Noronha e eles, que apontavam para um Brasil arcaico e pré-industrial, tudo o que eles mais almejavam exorcizar.  Então me ocorreu o quanto o tempo é implacável, mesmo com intelectuais ou artistas de vanguarda. E o quanto o emprego flexionado dessas partículas os punha em paralelo com um arcaico modo de expressão que já não se encontra sequer na capital de um estado do Nordeste, entre os jovens, claro - para não falar de São Paulo. De outro modo, a tarefa civilizadora dos concretistas é de grande fôlego. E não se pode prescindir dela. Embora nela seja necessário, como de resto no mais, separar joio e trigo. Haroldo e Décio foram determinantes para a montagem do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, pioneiro do gênero no país. E uma importante dissidência ao modo mais sociológico – e, claro, bastante substancial também – como a literatura é ensinada até hoje na Usp. Em São Paulo, tanto faz o lado em que você esteja assistindo ou ministrando aulas, é comum se dizer: “do outro lado do Rio Pinheiros, eles diriam que...” A expressão faz referência ao fato de o Rio Pinheiros, que praticamente confina com o Campus da USP, dividir territorialmente os lados. O mais semiótico (PUC) e o mais sociológico (USP). E alguém de mais brio, ao invés de tomar sectariamente o partido, navega no rio, em barquinho de papel.

² Nosso equivalente tardio, e ligeiramente após o grupo de Piva e Willer (mas mais universais, menos restritos a São Paulo que estes), aos beats.

³ Afinal hoje em dia quem não participa de alguma coisa, quem fica apenas em silêncio observando, é visto como um baita de um desgraçado. Um impostor. Um herege. Não é assim? Em arte, todos devem “interagir”, “participar”, receber o santo ou quase isso. Senão vão dizer que você está por fora. Que é um fracassado. Um loser. Um infeliz ao terceiro contato imediato. Alguém que não se comunica.
Como se menospreza silêncio. Ou qualquer modalidade de introspecção para referendar essa sub-arte pseudo-participativa!
Mil vezes, em determinadas circunstâncias contemplar, observa, calar. E há uma forma de calar mesmo com palavras. Mesmo no interior de textos escritos. Mas isto também se está desaprendendo.


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