quinta-feira, 26 de abril de 2012

Caixa de Pizza sob Saco Azul

Juan Miró

havia aquela caixa de pizza dentro de um saco azul sobre a calçada, e que ele viu após o inesperado temporal que largara da hora do almoço e lavara a sesta profunda. A correnteza esculpira uma linha de detritos em sua calçada. E foi então que reparou: a rua estava mais rasa. No comprido do quarteirão, as calçadas haviam afundado, porque as máquinas tinham passado por ali, ao longo da semana e das insônias, e deitado mais três quartos de palmo de asfalto no leito da rua. E as meninas que porventura cruzassem a rua, em desoras, deviam pisar o trottoir muito atentas para não enganchar o salto na vala, cavada entre o asfalto e o meio-fio. Os carros eram mesmo protagonistas. Outro dia um caminhão podara bruscamente um dos galhos mais densos do fícus. Porém era o saco azul com a embalagem de pizza dentro, sob aquele céu cinza e pesado, só um pouco após sua porta, que o fez contornar minutos para o desvão de um tempo em que comia pizza dia sim, dia sim, vivendo em uma cidade distante e mais temperada. E ela também vinha dia sim, dia sim, esguia e branca e de vez - a flexão das juntas, o queixo duplo, a bunda - sob o blusão de couro, o jeans e um cachecol adoravelmente desalinhado, que iam para as pontas do cabide mais rápido do que fiéis dizem amém. Em pelo. Vinha para ser comida. Dia sim, dia sim. E trazia uma garrafa de vinho romeno comprada na feira dos paquistaneses, em Longsight. E então brincavam um bocado. E ninguém dizia coisa com coisa melhor que eles. Fissura de esquecer partida da Liga. E ela possuía aquele mesmo sestro prolongado das campeãs ao bater na bola. E sobretudo ao sacar. E como o jogo ia invariavelmente pro tie-break do quinto set, os vizinhos de cima começaram a olhá-los com certo ressentimento característico, e um corredor de sorrisos amarelos e cenhos franzidos. Será que é impossível fugir disso na meia idade? E o cachorro dela – modelo de sobriedade, elegância – a ficar com ciúmes. E pior, às vezes até sem jantar, a enterrar as fuças em algum resto de calor nos gomos do sutiã caído no assoalho. Mas à cama e sempre. E esta um pouco esguia, desfeita mesmo restava. Já nem se davam mais ao trabalho. E se a TV proclamava que o frio aumentava lá fora, devia ser ficção. Lenda urbana.

o que uma embalagem de pizza, posta sob um saco azul diante de casa por um acaso de água, não convoca num dia assim

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