sábado, 14 de abril de 2012

Em resposta a uma jovem poeta



Em Torno da Efeméride
-A propósito do "Aniversário de Fortaleza".

[…]
É evidente a importância de se estudar a especificidade da cultura indígena. Até porque boa parte da cultura do Nordeste - tanto Talássico quanto Sertanejo - deriva dela, para não falar de nossa composição étnica. Onde a porca torce o rabo, no entanto, é quando se tenta forjar uma cultura indígena onde ela não existe. Ou ao menos não existe daquela forma, por meio de certos ritos, objetos, gestos e posturas que certos antropólogos nos querem impingir como tradicionais quando são constrangedoramente repaginados um tanto às pressas. Eis porque não é nada comovente presenciar os rituais tapebas. Eles parecem portar um selo: Made in China. Ou ainda: Hecho en Paraguay. Para dizer o de menos, e com todas as letras. [...] Mas também não se quer com isso desencorajar ninguém a estudar a questão. Apenas ser sincero. Reafirmar o que se acredita ser como é. O que é diferente de se tentar legitimar uma cultura através de uma espécie de ficção acadêmica. E, claro, isso não se sustenta. [...] E havia então esses dois aldeamentos indígenas ao largo, na franja meridional de Fortaleza: Messejana e Parangaba, que são bem antigos, e vêm do sec. XVII. [...] 
Poder, podia. Mas, lembre-se, o poder é algo vulgar. Mas, e quem acha que poder é tudo? Mas, e essa alergia a datas, eventos e efemérides com selos e ofícios? A coisa fica recendendo a produto e série. E aí a gente prefere o natureba. O feijão com arroz. O pirão. O alho e o tempero verde. A afetivagem nossa de cada dia. 

P.S. - Ainda bem que este ano tiveram bom gosto. E trouxeram Paulinho da Viola. Todos, no entanto, sabem o zero à esquerda que são […]. Ou o quanto secretarias como a da cultura são - salvo as exceções de praxe - cabides de emprego para militantes do PT, da coligação e pontas de estoque do gênero. O próprio aniversário da cidade mudou de dia nos últimos dez anos. Mudará de novo na próxima década? E a data anterior parecia até mais razoável, porque apontava para uma casualidade, um acidente. De qualquer forma, as pessoas têm em mente que uma cidade é algo como seu presente. Ou a semana em que vivem a dorzinha de corno de cada dia. Não lhes passa pela cabeça que ninguém teve intenção de fundar porra nenhuma. Nem mesmo quando Fortaleza ascendeu ao status de vila - ao que parece o motivo da data atual. Ora, Fortaleza era um acampamento português do outro lado do Atlântico. Uma feitoria. Não muito mais que isso. Por outro lado, cem anos antes, Soares Moreno quis explorar os índios, ganhar algum dinheiro - com âmbar, madeiras de tingir, e  algodão bravo - divertir-se com as índias e voltar a Portugal para pôr o boi na sombra. Se lhe dissessem depois, no mas allá, que a região selvagem em que viveu iria se transformar numa grande cidade, ele acharia isso surpreendente. Uma ideia um tanto exótica, extravagante: “caralho, Cidade?” - diria. Podia até espantar-se com a dimensão que as coisas ganharam. Mas, no fim de tudo, estaria mais interessado em Portugal, como continuação; nos sucessos da Restauração, em D. João IV e nas profecias do Quinto Império do que naquela terra remota, de praias desertas e bugres. Agora, naturalmente, como sucede no caso dos pais, 'todomundo' precisa de uma origem. Desesperadamente. E no caso, a mais nobre e bela que se possa forjar. Longe o máximo possível de violência e sexo. A cidade, aliás, não tem nenhuma ligação mais viva com Soares Moreno, cujos mocambos e paliçadas eram na foz do Rio Ceará, na Barra do Ceará. E tudo em taipa. E isso não deu em nada. Era muito precário. E foi completamente arrasado pelos índios em poucos anos, depois que Moreno retornou à Europa. Voltou a ser areia. A mais pura areia de duna. E teria sido apagado da história, não fossem Frei Vicente do Salvador e os jesuítas. E, depois deles, José de Alencar e Capistrano. Porque há esse milagre de a letra sustentar um passado que estava fadado a obliterar-se bem na origem da cidade. Ou seja, não fossem sobretudo os jesuítas, e a própria Relação de Soares Moreno talvez nem houvesse sido copiada e sobrevivido. E, então, logo a seguir de Soares Moreno e dos padres, umas duas ou três décadas, algo foi iniciado, de fato, no local da atual Fortaleza. Só que pelos holandeses. Mas não pegaria bem situar a origem numa feitoria holandesa, com um nome que dá um nó na língua: Schoonenborch. E que alguns até julgam ser o mero sobrenome de um oficial subalterno. Enquanto outros tomam a justaposição da palavra: algo como “Belo Castelo”, ou "Belo Castro", em flamengo. E, estendendo um argumento cheio de risco [e desses riscos também vive a poesia], como todo castelo implicitamente rebocava a ideia de uma elevação, um outeiro, talvez: "Belo Monte". E a ninguém ocorre a presença de espírito, a licença poética de vincular essa Belo Monte, à beira-mar, com outra, em pleno Sertão da Bahia, também decisiva para a consolidação do Nordeste enquanto cultura federada, que transcende a franja dos estados. A data abandonada refere-se a esse primeiro forte, ainda de madeira. E os batavos também montaram aqui apenas uma feitoria avançada, de onde pudessem alcançar o Maranhão. Nada mais. Não havia nenhuma intenção, digamos assim, de cidade. Como de resto houve - e muito - no caso do Recife. Então, é viver a cidade com seu passado e seu futuro no presente, sabendo que ela provavelmente originou-se de uma desatenção, de uma falta de intenção, de uma des-intencionalidade, quanto a isso de "se tornar cidade". De uma espécie de acaso geográfico. Quando se está numa fazenda ou numa feira, se está numa fazenda, numa feira - não se tem noção de que essa fazenda ou feira se converterá em cidade, no futuro. Muito menos numa metrópole. Agora, suspeitando também que espaços, lugares são frágeis. Montam-se e desmontam-se relativamente da noite para o dia. Perdem inteiramente suas significações e intenções no curso de uns poucos anos. Décadas. Seus aspectos. Seus eixos. Suas eiras. Suas beiras. Sua funcionalidade. Há uma mutância que é inexorável. Faz parte. E que infelizmente arrasta consigo alguma coisa boa  - além de muita coisa ruim, em boa hora. Em nome dessa coisa boa, dessa promessa, também se estuda o passado. Pois as coisas ruins, as ligadas ao poder, ao dinheiro, são as que têm a sua memória e sobrevida asseguradas. Automaticamente. Como diz Benjamin: “a civilização é uma barbárie”. ["A civilização é também um documento de barbárie"] Uma barbárie cheia de firulas, maneirismos, mas, no fim de tudo, tão ávida de sangue e destruição, quanto Aquiles e os aqueus no cerco de Tróia ou os bandeirantes - dos quais descendem, aliás, um considerável contingente de nordestinos, embora poucos saibam disso¹ - ou guerreiros tupinambás em pé de guerra. Até o final da década de 1970, havia um imenso descampado entre as imediações do que é hoje o Center Um e a Praia do Futuro. A Praia do Futuro, então, ainda fazia jus ao nome. Ainda se atingia ao longe. Era uma probabilidade. Algo semi-rural. E, mais consistente, é pensar que aquelas campinas, sobre dunas e pequenas lagoas e pântanos, eram de uma beleza maior que os bairros que depois se abateram sobre elas. Que no lugar de delicados aguapés, riachos e lagoas, há esgotos e ruas. Um poeta de verdade pode, em certo sentido, viver nos dois momentos. Ver as garças, os gaviões, as lavandeiras, os bem-te-vis voando pelos manguezais e os descampados da praia ao mesmo tempo em que passa de carro entre condomínios, guaritas, semáforos, buzinas e letreiros em neon. Um poeta de verdade olha com os olhos dessas aves. E vê o tempo dessas aves. O canto. E o mangue em torno. E, ao mesmo tempo, vê ruas e cidade. Ouve buzinas e a tensão da energia passando na fiação. O trânsito congestionado e as pessoas aguardando nos pontos de ônibus. O homem inevitavelmente destrói. Há uma marca de Caim. Sombra de sangue, violência, sevícia, ganância, vaidade. Isso vai deixando uma nódoa após outra. Uma crosta de destruição. Pode ser de outra forma? E só há um futuro para a cidade - assim como para o planeta: menos consumo e mais sustentabilidade. Não é preciso ser nenhum Malthus para chegar à conclusão tão óbvia. E você está certa, porque vai mais além. E se me permito passear um pouco, foi só porque a sua questão chegou posta dessa forma, assim, perspicaz, bonita, que a gente pega boa carona nela. Não para respondê-la. Mas para derivá-la. Recontá-la. Buscar um outro modo de dizê-la. Em sequência. Esse ato mais axerazadeado. Mais feminino?
[…]

[Texto retirado de um imeio endereçado a I.B. de C. em 13.04.12]

¹Na verdade, é bastante provável que haja mais descendentes de bandeirantes nos sertões do Nordeste que em São Paulo. Mas o Monumento às Bandeiras está no Parque do Ibirapuera, e não em Petrolina. E é, digamos assim, uma espécie de símbolo e monopólio dos paulistas. O que pouca gente se dá conta é de que existe uma enorme suplementaridade entre as populações do Sertão do Nordeste e de São Paulo. Quer dizer, de São Paulo anterior à chegada dos imigrantes europeus, no final do sec. XIX e primeiros anos do sec. XX. E isso muito antes de o primeiro migrante nordestino sequer sonhar em pôr os pés em São Paulo. A rigor, a origem é a mesma: de matriz mameluca. E a parte europeia nessa mescla, também a mesma: bandeirantes (descendentes de portugueses) já ligeiramente caldeados com indígenas. E, assim, uma considerável parte dos sertanejos nordestinos descende em linha reta de bandeirantes tanto quanto ou mais que os paulistas - que depois se misturaram com imigrantes europeus bem mais recentes. Pois foram os bandeirantes paulistas que, migrando para os sertões do Nordeste, os ocuparam e colonizaram, via Rio São Francisco e outras trilhas. [Um estado como o Piauí é uma "invenção" histórica quase exclusiva dos bandeirantes paulistas, que o ocuparam do interior para o litoral. Ao contrário do Ceará, onde os pernambucanos vieram pelo litoral; e os baianos e paulistas pelo interior.] Isso tudo - de haver mais descendentes de bandeirantes no Nordeste que em São Paulo - chega ser uma ironia. Mas isso iria ferir de morte uma série de clichês culturais. E outras cositas de que os paulistas se orgulham e batem no peito cheios de preconceito e ignorância. E não interessa a ninguém [em São Paulo] tocar em questões assim, enquanto a política oficial for a de seguirmos copiando teorias e procedimentos norte-americanos e europeus que são perfeitamente inadequados e estranhos aos nossos processos históricos de interação étnica. De resto, bastante diversos dos deles, e muito mais inclusivos, apesar de tudo. Além do que, quando se toca em questões assim deve-se ter um certo senso de humor. Pois só o humor - um humor cultivado, inteligente, astuto - nos compensa do imenso desconhecimento de causa da vasta maioria da população (com seus velhos preconceitos, arraigados) e dos rumos nada auspiciosos com que essas questões são tratadas no âmbito estritamente oficial ou acadêmico. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário