sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Peter Pan da Bárbara de Alencar


Georgia O'Keefe

Estudou no Renato Braga, embora não fosse mudo. Muito menos surdo. Havia uma classe lá para exceções assim. Meninos precoces, de famílias pobres, que pegam no breu e coisas no ar. Que jogam bola no ar. E ouvem falar antes que se abra a boca. Ou o galo cantar ainda no ovo. Que aprendem libras apenas por garantia. Que caem nas graças da primeira-dama, que a vez que ainda passa na rua - se ainda passa - lembra de perguntar por eles. E colhem maduro o jogo verde. E o multiplicam por cem, e cento e cinquenta. E não nasceram ontem, apesar de cheirarem a cueiros. Que parecem estar sempre a andar na tênue corda bamba entre o imponderável e o que pode dar certo. Muito certo. Talentos assim não se permitem ser ignorados.
*
A rua sabia: o menino podia dar muito certo, entanto às vezes tivesse lá seus tiques. Ladino, a ponto de, na contramão dos outros, não passar umas poucas de vezes pela DP depois de maior. O apelido, herdou da personagem mais notável dos Trapalhões. E, não bastasse, era bem apanhado.
Depois, ao que parece, fez boas amizades. E, antes, isso inclui ter tirado casca de todas as meninas num raio de três quadras da casa da mãe, com a possível exceção de uma coxa. E, dizem, de uma epilética – mas aqui não há certeza. E uma fama assim sempre fica, como se diz. Para bem, para mal.
E ficou. E ele não achava ruim. Nem elas.
Eles, às vezes. E isso, evidente, não sai na urina.
Também jamais saiu dessa mesma casa da mãe. Nem quando serviu o exército. “Agora sai”, disseram as vizinhas. Debalde. Não saiu nem quando a polícia andou atrás do irmão, e, comentam, podia ter sobrado feio para ele. Pior, nem depois que casou. Nem que descasou. “Não sai nunca mais”, disseram as vizinhas. Depois casou de novo. E ainda separou mais uma. E foi aí que comprou a velha Belina que todos faziam pouco, mas foi um dos primeiros carros do pessoal da rua. E, então, naquela Copa do Mundo do Japão, veio uma outra – loira tingida – que era menos ciumenta. E foi ela quem ficou com ele. E ele mal havia batido na porta dos trinta.
Emparelhado a isso tudo, a melhora da família veio zunindo. Como carretilha pegada na veia, Praia dos Diários afora. Ele desencavava coisas, mas quem administrava era o irmão: mais velho, dissimulado. Menos sutil nos métodos.
A casa ganhou muro alto, segundo piso. E isso pouco antes de vazar-se para a vizinha. E logo depois dos anos Lula, vieram a ampla churrasqueira, a piscina e o deck no quintal, e até uma dessas pickups com wifi onboard na garagem. Geringonças eletrônicas para todos os gostos, smartphones, e um gosto musical que, além das bandas de forró com nomes culinários, incluía a OfficialAdelle, devidamente adicionada à sua conta no Twitter.
As festas de Carnaval e São João visavam a casa dele, ano após ano, como a mosca marca o mesmo ponto no rosto quando se está refestelado no sofá após a feijoada. Ali, naquela quadra rente ao Ginásio, rumo do Centro, a casa dele era a Terra do Nunca, a capital da folia. E tome a chegar vereador. E, uma vez, até um superintendente de Regional. Verdade que não ficou hora e meia.
Nesse dia, ele fez discurso ao microfone. O desembaraço não é seu fraco. E embora já tenha passado os quarenta, surpreende pela jovialidade da aparência, a profusão dos planos. O tratar bem todo mundo.
Não é preciso muito mais que isso, umas poucas de promessas, e visões não só para si, porém abarcando três quarteirões de gente. Lúcidas? Sobretudo, se ditas com firmeza por planos não tão aéreos. Sim, lúcidas. A dizer chega. Talvez demais. Certezas de que o futuro exatamente daquele jeito vai chegar. Melhor. Mais asfaltado, mobiliado, amplo. Com um puxadinho aqui. Um sotãozinho acolá. O ajeitar a aposentadoria da Maria do Dozim. Providenciar a instalação de TV a Cabo para os meninos da república. Mais outras gambiarras. E sem depender de bingos ou rifas ou quermesses. Nem uma carreira a menos.
Agora os caminhões volta e meia estacionam na porta de casa. E os filhos é que cuidam dos negócios que ele tem, dizem, com gente do Mato Grosso. Mas, então, apesar de já ter netos, Dona Ercília e as outras senhoras ainda chamam ele de “o menino”. E ele lhes toma a benção com a compostura que falta aos outros. E as senhoras, gostosas, gabam-lhe delicadeza e educação.
O embaraço não é seu forte, embora quando fica mais excitado costuma afogar a voz num acesso de pigarros. E, se a situação é mesmo tensa, os pigarros vão-se intercalando por lapsos cada vez mais breves, e serrando-lhe as palavras em meias-palavras. E elas, às vezes, não bastam.
E foram esses pigarros o que se ouviu, um pouco ao largo de onde quer que se ouviu, rapidamente, ontem de manhã –  uma manhã de julho: fresca, desanuviada   – antes que as motos disparassem, no rumo do Centro, após os tiros. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário