quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Adeus, JT




Hoje deixou de circular em São Paulo o emblemático Jornal da Tarde. O diário, vespertino desde sua fundação (em 1966) até 1988, era célebre por haver transposto ao Brasil os eflúvios do New Journalism com as devidas e sábias adaptações. Em especial, quando ainda vespertino, o JT, editado pelo Grupo Estado, mostrou-se um vívido laboratório da relação entre diagramação e texto. Posteriormente, quando a existência dos vespertinos foi inviabilizada por questões técnicas e mercadológicas, o JT começou a concorrer mais cerradamente com outro jornal da casa: o Estado de São Paulo. E, com o progressivo encolhimento e perda de importância dos jornais como veículos impressos, a ser empurrado a escanteio por portais e pela mídia digital. Era tão distinto o estilo de noticiar desse diário, em especial nas duas décadas iniciais e mais gloriosas, que não era raro a compra de exemplares do JT apenas para ver a mesma notícia de modo distinto. Ou seja, mais plasticamente posta no papel. O JT absorveu no caminho opções e lições que vinham desde o concretismo e neo-croncretismo, ao tropicalismo, ao desbunde, à poesia marginal, ao minimalismo e à arte pop. Se houve um jornal de grande tiragem algo próximo ao conceito de meta-jornal - um jornal para jornalistas - o JT foi um dos que estiveram mais próximos desse conceito e dessa(e) meta por aqui. 

Sandy e os haitianos: até quando?


Artesanato haitiano: uma lagartixa de latão

a vergonha maior ao se noticiar algo como a tempestade Sandy, que atingiu o Caribe e alcançou a América do Norte, final de semana passado, está em se mencionar – sim, é apenas uma menção, às vezes nem isso – as mais de oitenta mortes no Haiti contra uma no Canadá e dez nos Estados Unidos 

levando em conta que a população dos Estado Unidos e a do Canadá somadas é trinta e oito vezes maior que a do Haiti, se tem ideia da tragédia no Haiti. Mas, não adianta. Inflexivelmente, como de vezes anteriores e sem conta, os holofotes da mídia, claro, não focam no Haiti. Embora os mortos no Haiti sejam em número oito vezes maior

além disso, noticia-se amplamente as causas das mortes mais ao Norte. Sabe-se que a vítima no Canadá, por exemplo, foi uma senhora que caminhava no centro de uma cidade quando uma placa de loja desprendeu-se e atingiu-a em cheio. E para todo óbito nos Estados Unidos há um acesso da imprensa às causas imediatas. Uma dignidade, assim, é conferida a cada uma das dez mortes. Mas não às mais de oitenta do Haiti

e esse modo de noticiar, de armar uma cobertura supostamente abrangente e internacionalista é feito pela nata da imprensa de maior reputação no Ocidente: os grandes jornais e portais dos Estados Unidos, do Canadá e da Europa. Sim, há uma dignidade para as vítimas mais ao Norte. Ao menos se contrapostas às mais de oitenta vítimas haitianas que - evidente – são transformadas em menos vítimas e em menos humanas pela imprensa, porque jogadas na vala comum da barbárie, da ignorância, do anonimato, do descaso, etc.

como seres de segunda categoria. E se não são: por que são tratados assim?

e até quando?


NOTA POSTERIOR [noite de 31.1o.12] 
já se fala em 61 mortes nos Estados Unidos, o que é uma cifra bem maior que no início da manhã de hoje. E, ainda assim, menor que as ocorridas no Haiti

Em Memória de Márcio Figueiredo (1963-1992)



Outro dia, Márcio, um tema trouxe-me a turma toda de ouvido. Rejuntada de novo, ouvindo Pat Metheney, Weather Report, Egberto Gismonti, Arrigo Barnabé, os mineiros, Nouvelle Cuisine na tua sala depois do ensaio. 
É provável, compadre, conversávamos sobre o acerto dos timbres e de como música do futuro teria por princípio a melodia. E o Moacir diria:
-Mas melodia, Flor: não é isso que a gente faz, meu irmão: melodia? – e ia alegar que Caetano Veloso já sacara isso de melodia no futuro antes da gente. E depois ia solfejar baixinho “Rapte-me, Camaleoa”, e abusando um pouco de vocalizar entre o p e o t, ao que o Ney não tardaria protestar com discrição e ênfase. 
Então, de repente, uma freira já idosa, com um daqueles chapéus à la noviça voadora, surgida não se sabe bem de onde e por qual produção de arte, passaria no corredor, e o Pádua ia dizer que estávamos num filme de Fellini. Não menos. A vida não era uma grande practical joke? A essas alturas, muitos já moravam em Tatuí, embora o Domingos tivesse vindo do Recife, passar uns dias:
-Ei, Seu Zé, me dá mil. Me dá mil aí, mach'.
A verdade, Márcio, é que ainda estamos num filme de Fellini, exatamente como os que passavam nos festivais do Cine Gazeta. Faz tanto tempo. E porque eras quem dizia que eram imperdíveis. E pressentias essa imperdibilidade melhor que nós. Mais: a propagavas.
Outro dia chegando de São Paulo, dei com a Maria, muito elegante, metida num uniforme azul. Bonita como num sonho azul, e o sorriso. Ela trabalha no Aeroporto Pinto Martins, e ainda tem aquele sorriso largo e cheio de luz que aquecia os fins de ensaio, embora os cabelos já misturem pretos e aplatinados. E eu fico imaginando, compadre, como estariam tuas fotos na Internet e por quais câmeras. Ou quais seriam os assuntos delas, agora. Ou ainda como te haverias com essas filigranas digitais. E se tu e a Maria tivessem casado, como seriam os semblantes das crianças, misturando o queixo de um ao erguer as sobrancelhas da outra. 
Como seriam os nomes dos teus filhos, dos teus filmes. Filmes certamente mais corretos, cinemáticos que os nossos. Se terias prosseguido com o Tai-Chi. Se a Rita guardaria um lugar para ti no Teatro São José, antes da função começar. E a gente então encontrasse: a turma toda reunida de novo, na praça, para soltar fogos em plena Epifania. E adentrar o teatro em cortejo, com beatas, padres, anjos, e uma retirante fake, recém-falecida, deitada numa rede. 
Gostávamos de milagres. Ou de entoar benditos com um furor escatológico e buñueleano. Ou, horas depois, na casa do Zé, lá no Sabiaguaba: vinhos e uma roda de violão em torno de um sinal no fogo; depois de escalar na varanda de tua casa da Tubúrcio, e deliberar para que lado a noite soprava.
Havia o café, os bolos, os docinhos da Bahia. Algum trago. Havia Rui, o cachorro. Havia o Rômulo um tanto marcial. Ou à paisana, dizendo alô, no vão da escada. Havia Cida, na flor da idade, que levamos junto com uma amiga para uma sessão de fotos nas Dunas, composta, além da paisagem, por uma porta lá de casa, que estava em reformas. E só a Bahia, gorda e bondosa, salvava a pele do Rui, porque ninguém gostava muito daquele bicho. E pensar que a Bahia e o Rui já estão aí do teu lado. 
Todos vocês seguiram para o Além, sem muita distância uns dos outros. E ainda no tempo em que a única rede de que se falava, além da Globo, era a de varandas e balançar com o pé na parede. E então, vocês se foram, como aquelas azeitonas pretas que não se colhiam, e juncavam o chão do teu quintal. Mas é um bom motivo para se estar feliz, ter uma boleira de mão cheia assim ao alcance de um pedido e na mesma dimensão. E um galgo de afiado faro, para caçar preás, e caminhar contigo pelas Jericoacoaras do além, quando enquadrares tudo mais que for preciso para tirar tuas fotos. 

(Ou revelar como tem sido morrer, como tinha sido viver, quando se tem apenas 27 anos.)

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Pra não assanhar o cabelo


Gabriel Figueroa

eu ando sempre
com o vidro fechado
pra não assanhar o cabelo
nem apagar o baseado 


escrito num vidro de cabine de caminhão estacionado para desembarque de mercadorias junto ao depósito de um movimentado supermercado de Fortaleza

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Bach e os imigrantes

Oscar Niemeyer, Museu de Arte Contemporânea de Niterói (vista(o) do interior)

-é difícil imaginar, mas naquele tempo podia-se contratar Bach para tocar num casamento – diz o narrador do documentário 

o que o narrador do documentário não presume é que fazer um bico tocando em casamentos e batizados é parte integrante da obra, vasta e gloriosa, do autor da Missa em Si Menor. Há demandas práticas. Quase todos os músicos que conheço ainda hoje, tenham empregos fixos em sinfônicas, filarmônicas ou não, fazem bicos tocando "por fora"

num inverno demasiado brando, aliás, Bach escreve a um amigo uma carta lamentando que não haja morrido gente o bastante para que ele pudesse auferir algum estipêndio extra tocando em funerais, como em invernos anteriores. Ao invés de revelar misantropia (modo como o homem contemporâneo inclina-se a ler a situação), o lamento de Bach aponta mais para uma aceitação do ciclo da vida, que inclui seu fim: a morte. E, para outro fato: se é inevitável morrer, que ao menos os mortos deem de comer aos vivos

de alguma forma. Ou pelo menos partam ao som de boa música, encomendados por um Réquiem solene e bem composto

ora, sem essas funções prosaicas, de batizados a funerais, passando por casamentos ou coroações, Bach não haveria sido o grande compositor que foi. E é precisamente isso o que roteiristas, produtores e narradores de documentários não dimensionam em nossos dias. Ou seja, que sem essas vivências aparentemente prosaicas, desimportantes, maçantes mas que demandavam música de encomenda, Bach não teria levado a vida que levou. Nem praticado, composto, repetido, variado, compilado e arranjado tanto. Nem conduzido a música aos limites 

e provavelmente nós não estaríamos aqui, escutando-o. Ou discutindo-o

há uma necessidade de se eliminar o sacrifício. Ou qualquer esforço e empenho em nível prático: o de ganhar a vida, o de dominar de fato uma linguagem. Basta diluí-los na genialidade. E escondê-los ou negá-los nos documentários padrões, junto com os tempos mortos. Pois, verdade, mesmo um virtuoso, como Bach, precisava trabalhar duro, suar para viver ou manter sua reputação de grande organista. Estudar horas extraordinárias sobre o órgão, o violino, a viola, o cravo. Era um esforço sobre-humano, que o fazia estudar à luz de velas quando adolescente, para aprender mais durante a noite. O que teria precipitado seus problemas de visão, que o levaram à cegueira ao fim da vida

ao contrário da Europa de hoje. A que vive do suor que é vertido em outras partes do planeta, para que se possa ir aos centros culturais ouvir Bach

hoje tudo na Europa é outsourcing. E qualquer trabalho braçal, mecânico ou mais pesado e repetitivo, logo rotulado de trabalho escravo. Estigmatizado como embrutecedor. Mas cinicamente reservado aos imigrantes. Ou subcontratado por vias oblíquas no exterior pagando salários que os europeus se recusam a receber. E, no entanto, em cadeia última, é esse trabalhador subcontratado, ganhando um salariozinho ínfimo, lá em Bangladesh a ou na Costa do Marfim, quem verdadeiramente confecciona o smartphone ou o chocolate que será posto em uma vistosa prateleira na Europa. E, pior, sem nenhum crédito a ele - em todos os sentidos que se possa imaginar (e não menos no econômico). E, contudo, não se deve esquecer: música é um "trabalho braçal". Requer um bocado de suor, repetição e, nos melhores casos, também algum cálculo, para se efetivar

hoje Bach, que palmilhou meia Alemanha a pé para encontrar os mestres com quem aprendeu - Buxtehude, Telemann, Schein, et alli - bem poderia ser o compositor desses imigrantes. Porque a alma é imigrante. O imigrante é cabeça-de-vento¹. E o vento sopra onde quer

a música de Bach é o rumor desse vento.



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¹Ou Luftmensch na saborosa inversão proposta por Flusser.

domingo, 28 de outubro de 2012

O relógio bem mais que nos ponteiros



o relógio bem mais que nos ponteiros. Está onde? No pelo escasso do cachorro, que quando veio para a casa, lustroso e farto feito lã. E as meninas brincavam com ele, enamoradas. E em dois pontos do pelo saltavam aqueles raios de olhar que as fascinava, plenos de estrepolia, carreiras

ou no semblante da atriz que não surgia na tela faz novelas, desaparecera da lembrança, mas retorna década depois, assemelhado a charge: açoitado por álcool, rugas, cocaína, câncer; o olhar com o rabo entre as pernas. Mas sobretudo ainda capaz de sorriso amarelo, alguma gabolice na voz fanha

para macaquinhos ensimesmados que somos, os ponteiros não estão mais nesses dois casos?

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Três Retrancas do Desamor




-rapaz, por que tu não interrogou o cara com escalda-gato em vez de ir logo matando ele?
-sei lá. eu fiquei um pouco constrangido, sabe.
*
-ai, meu bem, meu amorzinho. assim você me mata.
-mato mesmo, sua peste.
-ui, que medo do meu tzarzinho subindo as escadarias de odessa depois de desembarcar do potemkin.
-cala a boca, peste.
*
-por que será que platão escrevia diálogos?
-porque não era esperto o suficiente para escrever triálogos. 

Subir por Mérito

R. B. Kitaj, 1980


se você tem mais de vinte e alguma ilusão de que é possível subir na vida por mérito, você precisa crescer. Envelheça

urgentemente

mas antes requisite ao jornaleiro - virtual ou não (de preferência não) - sua última história de trancoso

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Uma Sorte Lascada

Thomas Draschan

-Bu! - disse o fantasma. 
-Eu não acredito em fantasmas - ele disse.
Mas o fantasma não contou até três, e lepo: plantou-lhe a mão no pé do ouvido.
Ele estatelou-se no chão. Mordeu poeira. Um fio negro rubro escorreu do nariz:
-Não adianta – disse apalpando a mandíbula – não acredito. Deve ser uma sugestão psicossomática. Crise de pânico. Um delírio paranóico. Essas coisas. E ponto.
O fantasma, então, puxou um 38 do cós das fraldas de fantasma e descarregou o barril. Os tiros ressoaram bonito que nem em filme de faroeste. E pontos.
Já do lado de lá, no Além, ele próprio um fantasma, admitiu:
-É. Pisei na bola. Não se pode ganhar todas. E, além do mais, tive uma sorte lascada no amor.

Anterioridade e Clareza: de novo Bob Creeley


Retrato de Creeley por Francesco Clemente


os aspectos de Creeley que mais tomei em prioridade: o apontar a dignidade musical da fala corrente, bem estilizá-la, estranhá-la e também fazer largo uso do encadeamento: propondo partículas ao final do verso ou circunstâncias que possam pôr a leitura em dubiedade. Quebrando o verso onde menos de espera para ressaltar a suntuosa regularidade de preposições e conectivos. E arejar a frase. Abri-la a mais de uma sintaxe. Quer dizer a mais de uma possibilidade de sintaxe. E que essas possibilidades sigam em diversas velocidades ou idades
sutilezas acústicas que seguem na fala, como correntes e redemunhos num rio. Às vezes em simultâneo. Mas também de como é possível propô-las em estranhamento ao ressaltar determinada expressão extraída, arrancada de seu contexto usual ou até mesmo modificada pelo emprego de uma outra preposição ou partícula que de costume não vai com ela
quando se lê concordâncias erradas - muitas vezes deliberadamente - pela garotada no Twitter, tais como “bons drink”, não há como não lembrar de Creeley. A ressalva é a de que ele fazia isso há meio-século atrás e como muito mais consciência, contextos e clareza de propósitos. Com muito mais graça, sutileza. Enviando a coisa toda da linguagem - suas cansadas figuras e tropos e literatices inclusive - para algo estranhamente perto da abstração. Da mesma abstração expressionista e gestual, rítmica, que se encontra no jazz ou em Jackson Pollock¹ - mas também na sintaxe física da nossa capoeira, do nosso futebol, das nossas cirandeiras, transes de terreiro, atabaque e santos. Ou nos artistas neo-concretos: é o mesmo impulso em diferentes geografias - uma espécie de Zeitgeist. Quer dizer, uma abstração que é gesto. E cheia de tripas, curvas e sinergia. E em contextos únicos e um bocado perspicazes 

e mesmo e a seu modo, fazendo o errado soar mais que certo, bonito



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¹E pensar que em certa ocasião esses dois gigantes de um modernismo em segundo momento tenham saído no braço. Foi num boteco nas imediações do Black Mountain College, a célebre faculdade de vanguarda pela qual passaram nomes como John Cage, Franz Kline, Willem de Kooning, Denise Levertov ou Stan Brakhage. Creeley relembra o episódio em entrevista à Paris Review. (E dá mesmo coordenadas de que era um rufião bastante short temper quando mais jovem.) Depois desse momento anos 50, parte da energia vanguardista da Faculdade Black Mountain - cujo reitor era o poeta Charles Olson - será transferida para a New York State University at Buffalo, em que Creeley lecionará até o final da vida, consorciando essa tarefa com viagens, residências artísticas e ciclos de leitura e palestra pelos Estados Unidos e mundo afora.

O homem que foi à sua própria hora

Zoe Leonard

a notícia espetacular do momento: 

um lavador de carros na Bahia que foi ao seu próprio funeral, e causou um fuzuê de dizer chega

mas é no mínimo estranho isso de os parentes confundi-lo com outro. E após um estremecimento que ia para só quatro meses sem se ver

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Eu não tô en-ten-deeeein-do (ou Só se for pelo ladrão)


Get Smart (Agente 86), c. 1969

parece haver uma comoção meio mórbida por parte dos jornalista do Uol/Folha quando noticiam algo como a ocorrência de um ciclone no Brasil. Pode-se advinhar um fru-fru nas cadeiras. Um frisson. É como se, por conta disso, ficássemos mais dignos, mais próximos, mais limpos, mais parecidos com o modelo almejado. O modelo sonhado em horas de consumo, inevitabilidade de futuro e espelhos pelos cabeças-ocas: os Estados Unidos
ou então, aquela Europa "véa", a mais estapafúrdia e endividada, mas que parece com Estados Unidos sob tutela teutônica, apesar de não produzir um parafuso mais. Como se o futuro desejável fosse mera cópia do "grande irmão" do norte - ou no caso "das Europa", do lado de lá do Atlântico Norte, para onde a transposição da cultura europeia foi bem menos matizada que aqui. Foi mais direta e sem outros temperos a-ocidentais ou influxos étnicos batidos no liquidificador da miscigenação 
esse fascínio um tanto acrítico estende-se sobretudo aos saxões que ainda sobraram coçando os ovos nas latitudes mais ao norte do Velho Mundo, e revisando o espírito calvinista, enquanto islâmicos, paquistaneses, caribenhos e africanos trabalham para eles. Eles que exaltavam o valor do suor e do trabalho. Hoje em dia,  se ainda exaltam, só se for o dos outros. E para enriquecê-los - portugueses, espanhóis, irlandeses e gregos incluídos no pacote. No pacote da trabalheira, entenda-se bem claro e ainda. Enquanto mais ao Norte, eles vivem do outsourcing e deploram a falta de iniciativa do pessoal do Sul - incapazes de explorar tanto e tão bem os outros e o resto do mundo quanto eles próprios, não é de hoje. E lembrar que Alemanha, que passa esbregues de causar calafrios nos pobres europeus do sul, nunca que reembolsou a Grécia pelos tremendos prejuízos causados e tesouros artísticos afanados à época da Segunda Guerra. Ainda assim, os alemães não cansam de posar, rebenque à mão, de capatazes da Europa 
tornando ao terreiro, esses jornalistas do Uol/Folha entram em polvorosa quando falam da Broadway ou de Gay Talese. Babam quando referem Harvard ou o MIT. Têm delíquios quando citam Pierre Lévy ou um desses Michels Foucaults velhos de guerra quaisquer, do qual ouviram falar num retalho de seminário lá na ECA
ontem noticiaram um ciclone. Porém no Uruguay. E no texto só faltou algo como: “ah, que pena que não foi no Rio Grande do Sul”
é esse bando de alimárias de redação que tem importado acriticamente o politicamente correto. Integralmente. Inclusive em seus excessos mais torpes e foras de hora e lugar. E que contribuem para que aspectos melhor resolvidos na cultura brasileira que na estadunidense sejam postos de lado em nome de uma insidiosa imitação simiesca, burra e irresponsável da cultura norte-americana no que ela tem de mais degradante. E olha que, de outra forma, do melhor que os americanos produzem - que não é pouco - a melhor parte passa batido por eles como uma bela mulher diante de um cego
quase todos esses brothers já leram Gay Talese. Ou Kurt Vonnegut. Ou Jonathan Franzen. Ou Will Self. Alguns, mais sofisticados, conhecem Jorie Graham ou Mark Strand. Praticamente nenhum leu Gilberto Freyre. Ou Zé Lins do Rego. Ou Guimarães Rosa. Ou mesmo Antonio Candido ou Roberto Schwarz
a ver os próximos capítulos que os “mano” vão tramar. E discutir nas TV's por assinatura com aqueles gerúndios escandidos meio debiloidemente:
-o estáfe da cantora não está encampando essa solução, percebe, meu? 
às vezes a gente esquece que boa parte da pior borra impressa e televisiva - independente do brow: seja high, middle ou low - vem mesmo de São Paulo. E não pensem que se resume a Faustos Silvas, Gugus Liberatos ou Lucianos Hucks. Não. Ou àquela horrenda MTV com sotaque de suposto skatista da Mooca, e distribuindo má bobagem em vazão torrencial. Ou a hemorragia de programas feitos em festas, e que pululam na madrugada e tentam roer o osso que caiu da mesa das "celebridades". Não. Estes são apenas a ponta do iceberg. Ainda mais perigosos são esses sofisticados sacripantas de redação
caras, bocas. Nefelibatismos natos
curadorias mil. Vivências. Casas de cultura. Lactências
culturas escorrendo pelo ladrão

só se for pelo ladrão

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Eletrobach, Pretobach



é a linha curva da música de Bach que acha desdobramentos no chorinho e na arquitetura brasileira - e, entenda-se, não só na de Niemeyer. Assim como seu caráter compósito: síntese de diversas culturas, caldos e tendências 

reenxertou-se bem por cá. E por sua materialidade e sensualidade, que nos são caras. E mesmo quando coroas, é bom ouvi-la. A celebração da criação como instância do que está aqui, agora, conosco, sensualmente. Pelo fato de ser única, apesar de dever a tantos. Casa e companhia. Pão e sonho. Um abrigo. Ser e estar no mundo com menos desconforto: toldo e para-chuvas em dias de temporal. E a janela abrindo-se, depois, às ruas lavadas, gotas a pingar de suas folhas.

uma concretude. Um fluxo. As baixarias dos violões de sete ou dos choros de Pixinguinha também são tributárias da densa polifonia bachiana.

tudo isso para não falar em Villa-Lobos, Baden, Vinícius...

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

7 bisnagas de semana


Karen Kilimnik, 1998

com Avenida Brasil, a Globo descobriu a pólvora: a classe C é o grande filão. Esperem coisas mais escatológicas para breve. 
*
Elmano Freitas obteve apenas 4 votos quando foi candidato a vereador em Baturité. Foi em 1996. E não houve candidato menos votado que ele. A assessoria do hoje candidato a prefeito de Fortaleza afirma que ele não fez campanha à época, preferindo estar ao lado de Luizianne Lins, em Fortaleza, quando a petista lançou-se candidata a vereadora pela primeira vez. Parece que a recompensa pelo fiasco veio em muito mais do que oito votos. 
Ou seja, do que o dobro.
**
Uma famosa série de viagens produzida pela BBC e protagonizada por Michael Palin, comediante que participou do Monty Python, estreia quarta que vem no Reino Unido. O foco dos atuais programas da série: o Brasil.
***
Uma amiga de São Paulo, de passagem por aqui, me liga quarta passada. Por ela me inteiro de que Chico Alvim estava no pedaço, auto-grafando seu mais recente livro. E, na mesma noite, show de Lô Borges e Flávio Venturini lá na Concha Acústica.
Por um segundo pensei: será que estamos na década certa?
É. A atmosfera anos 80 não deixou de cobrar pedágio. E passou recibo sobre a idade de quem promovia esses eventos.
****
Santa Catarina comemora a chegada da BMW. Desde 1998, o Paraná tem a Renault em São José dos Pinhais. A Hyundai instalou uma montadora em Anápolis, Goiás. A Ford, em Camaçari, na Bahia. E também em Camaçari, a JAC Motors erguerá seus galpões de montagem. Só a construção da fábrica da Fiat em Goiana, na RM de Recife, empregará mais de 7.000 trabalhadores nos próximos anos. Enquanto isso o Ceará chupa o dedo. Quem mandou votar em Inácio, Eunício, Pimentel e na vasta maioria dos nomes da atual bancada Federal?
*****
Que grande resultado do Atlético Mineiro ontem com um gol no último minuto dos descontos: 3x2 no Fluminense. E é de se torcer para o Fluminense jogando um futebol de retranca e uma a zero, de limão azedo e proteína de soja - resultadista, pragmatista, excessivamente catimbado, que vive de bolas paradas e contrataques - não seja o campeão brasileiro da temporada. E só o Atlético ainda pode chegar lá. E jogando um futebol bem mais ofensivo e digno do nome.
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E qual o nome dela? Vera Brauner. A morte, no sábado em Pelotas, teve este nome, passados 70 anos e um concurso de Miss Brasil. 

domingo, 21 de outubro de 2012

O Sósia



e o sujeito que quer comprar uma casa por ser parecido com Neymar foi notícia recentemente

isso não é a cara da época em que a gente vive?

ser parecido com outra pessoa está longe do esforço que você, o Seu Zé e a Dona Maria, que não são “celebridades” nem querem ser parecidos com elas, longe disso, devem fazer para comprar um imóvel debaixo do sol. Afinal, o que alguém parecido com uma “celebridade” aporta de bom para uma comunidade, um bairro, uma paróquia, vá lá, um associação de pais e mestres?

vejamos, primeiro é preciso preservar o cara. Que é mais que legítimo seu desejo de ter uma casa, não se discute. Que o estado não lhe lhe tenha propiciado meios para tanto é, contudo, o ponto. Se lhe tivesse dado educação, ele possivelmente sequer faria a proposta

teria vergonha dela

sábado, 20 de outubro de 2012

Polifonia



tratar as vozes secundárias como um elemento que tem vida própria - e não apenas ajuda no brilho e na emissão da voz principal - é dos grandes méritos da música de Bach. E o que a faz soar tão extraordinariamente complexa e profunda

como fossem necessários bilros auditivos para tecê-la. Ao modo de rendeira. E que a rendeira faz com a destra simplicidade de quem converteu habilidade em segunda natureza. Uma que, de tão automatizada, aparenta ser da ordem do comezinho

ou seja, que a faz soar simples 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Patrocínio



na Grécia, que atravessa uma pindaíba perto de sem volta e monitorada por alemães, um time semi-amador de divisões inferiores, o Voukefala, da cidade de Larissa, passou esta temporada a ser patrocinado pelos dois bordéis locais. Como se sabe, em tempo de crise só negócios estáveis sobrevivem. A proprietária de um deles, aliás, havia prometido uma noite por conta aos jogadores, caso vencessem na estreia

perderam

deve ter sido uma das derrotas mais doídas da história desde Aquiles, e aquele calcanhar que não tinha a destreza de Sócrates

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

La mort d'Emmanuelle: cherche plus loin

Sylvia Kristel em foto dos anos 70

Morreu de ontem para hoje a atriz holandesa Sylvia Kristel (1952-2012), famosa como a protagonista de Emmanuelle (1974), o soft-porn que foi visto por mais de 300 milhões, e desdobrou-se em continuações. Kristel esteve nas fantasias de toda uma geração mais ou menos ao tempo de Sônia Braga. Mas de um modo mais direto. No Japão, o filme chegou a cunhar uma expressão: "emanieru suru" - literalmente: "fazer uma Emmanuelle". Ou seja, ter um affair extravagante, clandestino e breve. Kristel era também o rosto - e o resto do corpo, claro - a se pensar quando se ouvia os acordes iniciais de "Emmanuelle”, canção de Pierre Bachelet que impregnou o repertório das FM's em meados dos 70. Emmanuelle foi um dos filmes franceses mais vistos. Um retumbante sucesso nos Estados Unidos e na Inglaterra – onde, então, sofreu alguns cortes em cenas consideradas "picantes". Detalhe que poucos sabem: o filme foi proibido em Cuba, mas passou na íntegra por aqui e em tempos de ditadura. E no Brasil fez tanto sucesso que ainda hoje se pode ouvir a canção tema do filme em obscuros botequinhos do interior com a mesma frequência com que se ouve "A Whiter Shade of Pale" ou "Gita". 

Faz ou não: solilóquio

Van Renselar, 2008

-uhm. Como diz o provérbio espanhol: “mais caga um boi que cem andorinhas” 

-parece que esse provérbio atenta um tanto contra outro que diz assim: “uma andorinha só não faz verão”. É, atenta sim, mas em parte – pensou Arthur - Tudo bem, tudo bem, uma andorinha não.  Mas que tal um boi? Um boi, só um: faz ou não verão?

(não faz, não, Arthur - diria o Narrador, se já tivesse voltado das férias em Morro Branco)

((mas, como sabemos, os narradores são sempre voto vencido nessas coisas em que entram sensibilidade e um nadinha de intuição))

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Se houvesse um caminho de coerência nas coisas




trabalhei duro a vida inteira. Criei meus filhos. Perdi as vezes em que fui escolhido o melhor do setor. A turma mais nova vinha pedir dica. Queriam saber do funcionamento da coisa. Verdade, chegavam verdes como abacate no pé. Pouco sabiam de polias. Alguns já ganham o triplo. Eu? não tenho dinheiro pra comprar um smartphone à vista
méritos por si? Não valem um Cibazol nesta vida

esta é minha vida, este é meu mundo

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Cinco Jujubas Midiáticas: a vida copia os documentários?

Eduardo Coutinho, Edifício Master, 2002


Obama segue pressionado para o próximo embate televisivo com Mitt Romney.
*
O Libertad, veleiro da marinha Argentina, encontra-se detido em Ghana por imposição dos credores da dívida daquele país, que levaram cano à época da moratória de 2002. O ministro da marinha foi demitido e trezentos marinheiros que servem na embarcação encontram-se a ver navios na costa da África Ocidental. [BBC] 
**
Novos protestos em Portugal contra mais medidas draconianas na economia. Vitor Gaspar, possivelmente o mais odiado ministro do planeta, anuncia um aumento da taxa geral de impostos de 9.8% este ano para 13.2% em 2013. 2% dos 600.000 funcionários públicos do país perderão o emprego. [Será que essa cifra está correta? Se estiver, 600.000 – sem entrar no mérito das demissões – parece um número excessivo num universo de dez milhões de habitantes].
***
Brigas de galo estão se tornando populares entre profissionais liberais do Reino Unido. Médicos e dentistas bem estabelecidos possuem exemplares de galos de briga e seguem associados a clubes que promovem rinhas na Grã-Bretanha. Defensores dos direitos dos animais já mobilizam-se ante o crescimento do fenômeno. [Daily Mail]
****
My Way”, na interpretação de Frank Sinatra, é a música mais pedida em funerais ao redor do globo, segundo a BBC. Lembram de quando um senhor de idade põe “My Way” em certo momento do “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho? 
Pois é. Crônica antecipada.¹

A vida copia os documentários.

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¹E, lembrando melhor, o sujeito era  já idoso, e havia morado um tempo nos Estados Unidos, etc. E, então, talvez "My Way" seja a música mais pedida em funerais entre gente anglófona. E, porém, a cena, em si, no Master, é constrangedora. Segue no limiar entre o que se deve ou não mostrar. E isso de mostrar ou não fica a cargo de cada um. Aquela cena, no entanto, é apelativa. Talvez Edifício Master passasse melhor sem ela. Há algo nela que atenta contra a dignidade da personagem. Algo que fere uma espécie de decoro. E é de espantar que Coutinho haja decidido mantê-la no corte final.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Turbulência, anti-distônicos e amor como espectro: uma biografia de David Foster Wallace




Every Love Story Is a Ghost Story: A Life of David Foster Wallace, por D.T. Max, Granta, 352 ps. - (lançada em setembro passado)

Toda História de Amor é uma História de Fantasmas é o título da primeira biografia sobre o mais recente herói literário dos Estados Unidos: David Foster Wallace (1962-2008). E Foster Wallace é conhecido sobretudo como o autor de Infinite Jest [Pilhéria Infinita]. O romance é um calhamaço de mais de mil páginas passado em um distópico país norte-americano, que engloba também o Canadá e o México, além dos Estados Unidos, num futuro sombrio e meio pantagruélico. A unidade política leva a sigla galhofeira de O.N.A.N., numa clara referência satírica de endereço certo: a ONU, o Nafta, os projetos pós-modernos de blocos de países, tais como a União Europeia, que ora balança como um castelo de cartas. (E dentro da qual ex-potências coloniais ameaçam liquefazer-se antes mesmo de receberem o resgate econômico e verem sua soberania evaporar em favor de um Banco Central Europeu comandado com mão de ferro e nervos de aço pelos obstinados alemães. E é preciso recordar o quanto a figura de Hitler era uma das obsessões (e dos pavores) do autor da Jest).
Mas a União Europeia não é o alvo direto do veio satírico de Infinite Jest, senão os próprios Estados Unidos, pois se há uma vontade de profecia em David Foster Wallace, ela se cumpre mais do que nunca nesse seu romance épico, extenso, de altíssima voltagem, em que referências eruditas e citações pop, deformadas, amarradas, amalgamadas e comprometidas pelo intenso uso paródico que ele faz das notas de rodapé, pululam por toda parte, debatem-se e chocam-se umas contras as outras. E, assim, sem propriamente filiar-se a um partido de modo ostensivo (havia votado nos republicanos e em Reagan quando jovem para depois tornar-se um simpatizante democrata), Foster Wallace engaja-se numa discussão do projeto de um país cada vez mais encalacrado em suas auto-armadilhas, debilidades, filistinismos e aporias. 
Através de sua prosa se divisa melhor o quanto essas auto-emboscadas estão presentes na vida do estadunidense comum. Este dá de um tudo para entreter-se. Vive mesmo em função disso. Cavando espaços para isso. Entreter-se é sua divisa e ética. E, ao mesmo tempo, qualquer forma de sacrifício em prol de um ideal coletivo é vista como algo a ser evitado ou esquecido. E é comovente como esse sentimento de que a noção de sacrifício foi, digamos, sacrificada em prol de um ética da diversão, aproxima de algum modo Foster Wallace de uma autora tão distante dele, sob vários e densos circunstâncias e prismas, quanto Simone Weil.
O resultado dessa ética do entretenimento para os americanos, no entanto, passava em termos concretos por uma média de seis horas diárias diante da TV - seguindo pesquisas que seguramente devem remontar a antes da internet. A cifra impressionava a Foster Wallace. E o angustiava. Ele próprio um telespectador contumaz, chegou a citá-la e glosá-la em um ensaio sobre a centralidade da televisão no cotidiano dos americanos: E Unibus Pluram
Aliás, a disposição de Foster Wallace para escrever ensaios sobre temas um tanto kitsches ou do momento - como um festival de degustação da lagosta ou um perfil bio-psicológico de John McCainn, herói da guerra da Coréia e candidato republicano à presidência em 2008 – granjearam-lhe larga e justificada popularidade. Mas já antes disso, à época da escolha de sua pós-graduação – os impulsos falavam alto em sua vida – cogitou não só estudar política como entrar para a vida pública. Disso foi dissuadido por um colega de faculdade, que o fez ver: nenhum candidato que houvesse passado por casas de repouso, rehabs ou hospitais psiquiátricos, após crises de pânico e consumo de medicação crônica para surtos paranóicos, seria levado a sério por eleitores ou poupado pelos adversários. Do contrário, alvo fácil, teto de vidro seria, em previsíveis debates.
David Foster Wallace, o garoto brilhante e tímido do Meio-Oeste, nasceu e cresceu nos campi de universidade, das quais a mãe e o pai eram professores. E dos quais nunca que conseguiu sair completamente. Sua vida pareceu mesmo debater-se entre o campus e o mundo lá fora. A solidez intelectual do campus, a generosidade de uma vida contemplativa e analítica, profundamente auto-reflexiva, mas também certa pavorosa falta de vida e ausência de mundo e senso comum, ao fim de tudo; e o mundo lá fora, colorido, vibrante, mas excessivamente votado ao consumo, à praticidade, à sordidez, à venalidade, etc.
O pai, professor de filosofia, costumava ler-lhe o Moby-Dick para fazê-lo dormir, na infância. Algo sugestivo para quem, a exemplo de Melville, lançar-se-ia à escrita de um épico anos depois. A mãe, professora de inglês, propunha constantes desafios e charadas de análise sintática, como forma de brincadeira e treino. Costumava pigarrear quando ele ou a irmã cometia algum deslize de inglês. Dela ele derivou a expressão “gramático militante”, que emprega em mais de uma passagem na sua ficção. E ele próprio dizia cuidar da gramática com um zelo nazista. 
Foster Wallace foi tenista na juventude, por incapacidade de socializar o bastante para compor nos times de futebol americano ou basquete. Mas, de outro modo, era um garoto popular na sala de aula. E é possível que haja sido a solidão do tenista – tão singularmente próxima da do autor na sua escrita – o que tenha conquistado o coração desse escritor. 
E não qualquer escritor, mas um singularmente votado a ser uma espécie de porta-voz geracional. Sua figura, de bandana, jeans e tênis, com uma expressão ao mesmo tempo concentrada e, algo, exaurida e um pouco ausente, ministrando cursos de redação criativa em termos esporádicos, por faculdades em diferentes tempos e pontos do país, como um peregrino, também contaram muito para essa espécie de canonização. E canonização que se tem produzido sobretudo a partir do stablishment de Nova York e da Nova Inglaterra, com suas revistas, suplementos e respeitáveis ciclos de palestra.
Foster Wallace foi um desses raros casos de escritores que lograram a proeza de escrever uma prosa de vanguarda, louvada nos campi universitários, mas ao mesmo tempo aceita pela crítica mais estabelecida e “comercial” de Nova York. Quer dizer, viver no campus e ser sancionado pela mídia. Ou na boa sacada de um crítico: “somehow he managed at the same time to be a nerd and a dude”. Ele foi, por igual, amigo e/ou correspondente de alguns dentre os mais renomados escritores de sua geração. Caso de Jonathan Franzen, que também é do Meio-Oeste, e o incentivou e animou durante uma crise de auto-confiança.
Há um bom sumário do itinerário de Foster Wallace como escritor nesta biografia. Embora útil só para iniciantes. Ele começou adotando um estilo distanciado, paródico, dado à ironia, expressamente decalcado de uma receita pós-modernista. A mesma que havia se estabelecido e estabilizado com razoável respeitabilidade ao fim dos 60. E, no caso, uma que soasse como imitação do romance The Crying of Lot 49, de Thomas Pynchon, livro que representou uma espécie de a.C. e d.C. na prosa de Foster Wallace. Foi também modelo de seu primeiro romance: The Broom of the System [A Vassoura do Sistema, 1987]. 
Porém, aos poucos, à medida em que foi entendendo que a sinceridade cobra um peso decisivo no campo do escrever, Wallace foi também progressivamente distanciando-se dessa literatura paródica, da ironia e do efeito, mais decalcada de outra literatura que da vida - excessivamente ocupada consigo mesma e com metateorias - em prol de algo mais pé-no-chão. Ou seja, mais dude. (Ainda que pé-no-chão ao estilo David Foster Wallace. Isto é, ainda um bocado nerd e com agudas exigências formativas e intelectuais.) E talvez seja precisamente por esse inesperado, sutil e, não raro, angustiado (e deslavadamente bem-humorado) equilíbrio entre nerdice e dudice que ele, então, haja conquistado de vez seu eleitorado. 
Ao mesmo tempo em que era versado em Wittgenstein e Derrida, Foster Wallace nunca deixou de se interessar genuinamente por seriados da TV, soap operas, revistas em quadrinho, desenhos animados, tênis, música pop, blockbusters, talk shows, filmes e livros de ficção científica e toda uma miríade de quinquilharias que conforma um universo menos highbrow, entanto rente à convivialidade de uma vasta maioria que não é propriamente leitora do Tractatus ou da  Gramatologia. E, evidente, seu ponto de convergência é algo eminentemente moral. 
Em Foster Wallace dois aspectos - talvez indissociáveis - ressaltam: i. sua americanidade e ii. seu zelo moral. E ambos aspectos se interlaçam, se aproximarmos sua pulsão moral de algo análogo àquela dos pais fundadores da nação americana, e que seguiu no veio de um Emerson, de um Thoreau, de um Melville, de um Frost, de um Carlos Williams, de uma Gertrude Stein, de um Hemingway. Usualmente sua prosa é rotulada de 'realismo histérico'. Ou ainda de 'metamodernismo'. Mas isso seria apenas conceder aos rótulos.
Ele era, por igual, um sujeito com problemas de várias ordens: sociabilidade, relação com as mulheres, auto-imagem, depressão, adicção a psicotrópicos e drogas, etc. Lia e assistia televisão compulsivamente. E nutria hábitos extravagantes como se alimentar exclusivamente de brownies deschocolatados em certo momento da vida. Atravessava etapas de solidão absoluta. Entregava-se a paixões devastadoras. Conheceu surtos que o levaram a internamentos em solitárias. Abusou da bebida durante certo tempo. E tomou muito a sério o esforço de deixá-la de lado. Num determinado momento, costumava pintar seus quartos de preto e nutrir uma atitude visceralmente agressiva e satírica diante da religião. Ainda que, depois, já na maturidade, tenha tentado a sério uma conversão ao catolicismo, que acabou desencorajada pelo próprio padre com quem dialogava à época, e que era mentor de sua companheira à ocasião. O veredicto do reverendo, aliás, não é dos mais encorajadores: Wallace ainda tinha demasiadas questões para um crente.
As mulheres em sua vida foram axiais e podiam levá-lo a um desespero abissal. Certa vez, tentou comprar uma arma para matar o marido de uma delas. E por quê? Porque era predispostamente monogâmico. E, logo, assumiu o papel do traído na relação, como usa ser em casos e triângulos assim. A monogamia, no entanto, não valeu para certo trecho inicial de sua trajetória de escritor - aliás muito bem sucedida. À época, caiu na buraqueira. E engatou casos em sequência. Especialmente com as acólitas e groupies que iam às suas palestras pelo país afora. Mas não só. Chegou a admitir que no pico da coisa, fazia sexo com desconhecidas que encontrava em festinhas de embalo. E, ao menos em uma ocasião, com uma menor de idade. 
Mais adiante, assumiu relações um pouco menos instáveis, porém não menos turbulentas. Durante uma acalorada discussão com uma namorada, arremessou uma mesa sobre ela. Numa outra, esmurrou uma geladeira e quebrou a própria mão: episódio que transpôs, de modo quase direto para a ficção. 
Somando tudo, não parece lá algo muito heróico ou edificante. Mas a prosa de Foster Wallace talvez seduza justamente por isso: seu heroísmo (aliás, perfeitamente anti-heróico) vem primeiro por não tentar camuflar certos episódios onde a imagem do homem contemporâneo - que não se dissocia por inteiro de uma auto-imagem - não assoma lá muito lisonjeira. Ou seja, por um sinceridade que confunde-se com auto-derrisão, mas que ele não negocia em nome da usual prática de se pôr panos mornos. 
E, na sequência - e talvez ainda mais importante - por tentar não abdicar do pensamento quando há especialistas que são pagos para pensar por nós nas mais diversas áreas da ação e do conhecimento humanos. Pensamentos elevados. Às vezes postos em linguagem sublime. Mas que acabam distanciando-se miseravelmente do pé no chão, do batente, do dia a dia, do senso comum, do terra à terra, da motocicleta, do ônibus, do assovio, do ter de trabalhar oito horas repetindo praticamente o mesmo procedimento, da televisão, etc. E acabam distanciando-se justo por sua especialidade pós-graduada. Por seu grau de descolamento da realidade. (Ou pelo fato de serem produzidos nesse mundo asséptico e especioso do campus universitário, do qual ele nunca conseguiu sair inteiramente). E isso não se dá também no campo da literatura?
E não é fácil escrever uma biografia assim, quando tantos esperam por ela em ansiosa expectativa. E esperam mais ou menos para consagrar o biografado. Há uma inequívoca tendência nesse sentido: a de apontar Foster Wallace como o primeiro grande herói literário da era cibernética. O nerd com um grande coração. Já se fala em uma “geração David Foster Wallace”, como numa recente matéria da Newsweek. A ocasião e o ladrão não perdem tempo neste mundo de marketings.
No plano estritamente biográfico, deram-se tentativas de suicídio e terapias de ordem diversa, ao longo da vida. E que chegaram a incluir eletrochoques, dos quais ele se queixava serem particularmente dolorosos. A suspensão, por iniciativa própria, da medicação crônica contra a depressão e as crises de pânico levou-o, no espaço de um ano, ao suicídio - anunciado e antecipado por um considerável número de vestígios e tentativas anteriores. Tinha 46 anos.
Ao que parece, sua trajetória no meio de tanta turbulência passou de algum cinismo e deboche juvenis para certa atitude de comprometimento e tentativas de atenção e solidariedade na vida adulta. Quando morreu, encontrava-se casado (sua esposa tinha um filho de uma relação anterior), e prosseguia trabalhando como professor, e escrevendo um livro. Sua atitude diante da vida era de uma maior responsabilidade, comprometimento e preocupação com as pessoas em torno. Era notável a atenção que, por exemplo, dispensava a seus alunos. E isso apesar de descrer, en bloc, na perspectiva de ensinar a alguém como escrever criativamente.
O livro em que trabalhava, um romance, deixado inconcluso, veio a ser publicado, ano passado, sob o título de The Pale King. Como soa ser nesses casos, a escritura de The Pale King era assombrada pelo titânico esforço anterior: o empreendido para gestar Infinite Jest. E, evidente, já fazia o autor sofrer exatamente pelo desafio: concluir algo de fôlego depois de Infinite Jest - que veio à tona em 1996. Nesse meio termo, ele havia publicado contos e artigos diversos em jornais e revistas - de resto, muito bem aceitos.
A biografia escrita por D.T. Max, jornalista da New Yorker, não tão exaustiva como usam ser biografias nos diascorrentes, escapa de ir por uma tentativa de hagiografia, como mais de uma resenha decreta. Embora haja um bocado de simpatia do autor por seu assunto.

Verdade, a figura do biografado se presta um tanto à tarefa.


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¹Há um excerto deste ensaio traduzido aqui em Afetivagem. Ou, por favor, clique no título do artigo no corpo do texto.

E não é também para isso?



fiquei pensando em
você até não poder
mais, e então não
pude mais

no jeito que
você se vestia
para eu melhor
lhe despir
e despia

jeito que você
imaginava como
seria o dia
depois do dia
e assim ia

em discreta
sequência
até que você
o vestido, a nudez
o poder e o dia
precipitavam-se de vez
para nunca mais

ou vertiam-se como
argumento sobre 
a sombrinha
gotejante ou 
você a dizer que 
não se importava
nadinha com a 
efemeridade 
do mundo

nadinha depois
você pôs como
nome de sua gata
e ela, esperta 
salta por cima 
de sua vontade
de procriar
nadinha

mulheres e homens 
dizem: não querem 
filhos. depois crescem 
olheiras. e aquela
vontade de criar e 
conversar com 
plantas, bichos 
-e não só assistir
aos bergmans da vida

e tratá-los com um
carinho opressor
requintes ditatoriais
como os demais
pais tratam os 
filhos neste
mundo com matos 
e cachorros

e não é também
para isso que 
servem cães
e gatos? para 
ajudar-nos a nos
suportar sem 
a algazarra das
crianças?