segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Bach e os imigrantes

Oscar Niemeyer, Museu de Arte Contemporânea de Niterói (vista(o) do interior)

-é difícil imaginar, mas naquele tempo podia-se contratar Bach para tocar num casamento – diz o narrador do documentário 

o que o narrador do documentário não presume é que fazer um bico tocando em casamentos e batizados é parte integrante da obra, vasta e gloriosa, do autor da Missa em Si Menor. Há demandas práticas. Quase todos os músicos que conheço ainda hoje, tenham empregos fixos em sinfônicas, filarmônicas ou não, fazem bicos tocando "por fora"

num inverno demasiado brando, aliás, Bach escreve a um amigo uma carta lamentando que não haja morrido gente o bastante para que ele pudesse auferir algum estipêndio extra tocando em funerais, como em invernos anteriores. Ao invés de revelar misantropia (modo como o homem contemporâneo inclina-se a ler a situação), o lamento de Bach aponta mais para uma aceitação do ciclo da vida, que inclui seu fim: a morte. E, para outro fato: se é inevitável morrer, que ao menos os mortos deem de comer aos vivos

de alguma forma. Ou pelo menos partam ao som de boa música, encomendados por um Réquiem solene e bem composto

ora, sem essas funções prosaicas, de batizados a funerais, passando por casamentos ou coroações, Bach não haveria sido o grande compositor que foi. E é precisamente isso o que roteiristas, produtores e narradores de documentários não dimensionam em nossos dias. Ou seja, que sem essas vivências aparentemente prosaicas, desimportantes, maçantes mas que demandavam música de encomenda, Bach não teria levado a vida que levou. Nem praticado, composto, repetido, variado, compilado e arranjado tanto. Nem conduzido a música aos limites 

e provavelmente nós não estaríamos aqui, escutando-o. Ou discutindo-o

há uma necessidade de se eliminar o sacrifício. Ou qualquer esforço e empenho em nível prático: o de ganhar a vida, o de dominar de fato uma linguagem. Basta diluí-los na genialidade. E escondê-los ou negá-los nos documentários padrões, junto com os tempos mortos. Pois, verdade, mesmo um virtuoso, como Bach, precisava trabalhar duro, suar para viver ou manter sua reputação de grande organista. Estudar horas extraordinárias sobre o órgão, o violino, a viola, o cravo. Era um esforço sobre-humano, que o fazia estudar à luz de velas quando adolescente, para aprender mais durante a noite. O que teria precipitado seus problemas de visão, que o levaram à cegueira ao fim da vida

ao contrário da Europa de hoje. A que vive do suor que é vertido em outras partes do planeta, para que se possa ir aos centros culturais ouvir Bach

hoje tudo na Europa é outsourcing. E qualquer trabalho braçal, mecânico ou mais pesado e repetitivo, logo rotulado de trabalho escravo. Estigmatizado como embrutecedor. Mas cinicamente reservado aos imigrantes. Ou subcontratado por vias oblíquas no exterior pagando salários que os europeus se recusam a receber. E, no entanto, em cadeia última, é esse trabalhador subcontratado, ganhando um salariozinho ínfimo, lá em Bangladesh a ou na Costa do Marfim, quem verdadeiramente confecciona o smartphone ou o chocolate que será posto em uma vistosa prateleira na Europa. E, pior, sem nenhum crédito a ele - em todos os sentidos que se possa imaginar (e não menos no econômico). E, contudo, não se deve esquecer: música é um "trabalho braçal". Requer um bocado de suor, repetição e, nos melhores casos, também algum cálculo, para se efetivar

hoje Bach, que palmilhou meia Alemanha a pé para encontrar os mestres com quem aprendeu - Buxtehude, Telemann, Schein, et alli - bem poderia ser o compositor desses imigrantes. Porque a alma é imigrante. O imigrante é cabeça-de-vento¹. E o vento sopra onde quer

a música de Bach é o rumor desse vento.



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¹Ou Luftmensch na saborosa inversão proposta por Flusser.

2 comentários:

  1. Escrevi um longo comentário que, acho, se perdeu, no post Subir por mérito, mas acho que o blogger, faminto, devorou.

    Não o repito, não saberia, mas reforço o de sempre: é um prazer lê-lo e se não o digo sempre, é pelo temor da monotonia dos adjetivos repetidos.

    Gostei imensamente da materialidade, do cotidiano, do cheiro de pão no post.

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  2. querida luciana, muita gente diz que passa por aqui quase todo dia. você eu sei que passa
    e lhe sou muito grato. assim como pelas atuais e vibrantes impressões de portugal. e - especialmente quando não concordo com alguns de seus pontos de vista - acho muito enriquecedora a leitura dos seus textos

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