terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Prototipia e Dois

Howard Hawks, The Big Sleep, 1946

Nobody is

δRespectivamente
O duplo noir clássico se dá entre The Big Sleep (1946) e The Maltese Falcon (1941). E em ambos, aliás, há o mesmo ator fazendo os papéis respectivamente de Philip Marlowe e Sam Spade, dois dos detetives mais emblemáticos da literatura transpostos para cinema, criações respectivas de Raymond Chandler e Dashiell Hammett.¹ [E fosse para aludir um terceiro excluído, ficaria com The Asphalt Jungle (1950), que é de alguns anos depois e um tanto mais filme B, porém, da mesma forma, fora de série. E, aqui, especialmente por sua sintaxe visual].

ε. Hawks, Coadjuvantes, Bogart & Bacall
Entretanto, The Big Sleep, dirigido por Howard Hawks, desdobra para ainda mais longe o humor, o innuendo das réplicas e o tratamento de certos temas que a aclamada obra-prima de John Huston.² E não propriamente por creditar Faulkner entre os roteiristas.³ Mas pela destra direção; a filigranada fotografia em branco e preto; a direção de arte; a beleza e o charme das atrizes coadjuvantes; e, não menos, por colher algumas das melhores cenas entre Humphrey Bogart e Lauren Bacall. Aqui, o sonho americano diz: Hello! – e certamente no mesmo tom em que Bogart comemora o fato de certa livreira [Dorothy Malone] aceitar a dose de uísque, fechar a livraria, retirar os óculos e soltar os cabelos. Chove lá fora.

ζ. Exemplos?
Como na cena em que Bacall segue ao encontro de Bogart na agência de detetives, e ele chega atrasado. As linhas são:
(Bogart) Good Morning!
(Bacall) So you do get up! I was beginning to think you worked in bed like Marcel Proust.
(Bogart) Who's he?
(Bacall) You wouldn't know him, a French writer.
(Bogart) Come into my boudoir.
Sempre a chamar as garotas de pal ou angel, Bogart destila tanta assertividade em suas réplicas que – e não por estar no script – Bacall, nessa cena, adentra o escritório num semi-riso de quem não esperava pela corrente magia improvisada. E não é em parte disso que resultam os grandes filmes?
Mas logo em seguida, eles prosseguem a conversa, e ela, suntuosamente sentada sobre a escrivaninha, parece estar incomodada com algo:
Go ahead and scratch! – diz então Bogart de sua cadeira.
Ela rapidamente levanta um pouco a saia e coça-se perto do joelho.
Mas entre essa cena e outras – como com a bela livreira ou uma taxista – Bogart segue em céu de brigadeiro. A exemplo de quando Carmen, a irmã doidivanas da lide, lhe indaga:
Is he as cute as you are?
A resposta de Bogart soaria pretensiosa dita por qualquer outro, e é o sumário perfeito de um ator divertindo-se às raias do impossível:
Nobody is.


___________________

¹Há um filme de Wim Wenders chamado Hammett. A produção, conturbada e polêmica, é de Francis Ford Coppola. Conta possivelmente entre os filmes menos amados e glosados pelos wenderianos. E um projeto que Wenders evita comentar a respeito, talvez por conta de o corte final haver sido feito à sua revelia. Para vender melhor. E não foi o caso. Outrossim, a performance de Bogart em The Maltese Falcon simplesmente estabelece o perfil do detetive – até certo ponto honrado, mas um bocado ganancioso e sem escrúpulos – nos filmes noir.

²Originalmente no roteiro, alusões à pornografia e ao homossexualismo foram limadas pela pesada censura da época. Sem embargo, há vestígios dessas temáticas diluídas na trama. E o que mais comove é constatar o quanto filmes que dão o que pensar, como esses dois, divertem tão amplamente na mesma medida.

³Pouco provável que Faulkner, em meio a um e muitos drinques, tenha contribuído mais do que com umas linhas e a grife do nome para a solução final de roteiro. E roteiros que eram confeccionados em verdadeiras linhas de montagem. E em que é muito difícil separar até onde vai o contributo individual de cada có-roteirista. Ainda assim, uma das virtudes de The Big Sleep é a astúcia vitriólica dos diálogos.


NOTA SOBRE AS NOTAS - certa leitora me perguntou por que minhas notas só vão até ³. A resposta é simples: só sei inserir esses caracteres reduzidos até o algarismo ³. É certo, adoraria pôr mais notas. E, contudo, se vou pelo automático, no editor de textos, os algarismos não saem assim bonitos e reduzidas como devem ser. Não obstante, me agrada que seja o ³. E não o quatro ou o ². ATENÇÃO! A FAPESP, a CAPES, o CNPq gostam que as notas sigam rigorosamente o padrão da ABNT! Em Portugal, no entanto --- que é o país mais bem aqui --- já não há mais ABNT.


NOTA SOBRE AS NOTAS SOBRE AS NOTAS - implicar que o detetive, cínico e longe da família, protagonista do noir, com todo seu anti-heroísmo e dubiedade, gera uma nova forma de cinema. E porque, a exemplo dos desenhos animados e suplementando o cinema mudo, põe a voz ao centro do corpo e do filme de modo mais enfático, uma vez que abre espaço para uma característica chave da voz: sua antinomia. Se isso implica naquilo que Michel Chion chama de 'vococentrismo', são outros quinhentos. Mas que representou um caminho a derivar, quem duvida? Pois é evidente, em ambos as faces do duplo, o modo como a condução da narrativa e traslação da ambiência dimanam da voz de Bogart.


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