quarta-feira, 25 de abril de 2012

Re-Flexão sobre Virtualidade, Imagem e Projectos de Arte



Quando a vida não vive
-Divagação inicial sobre virtualidade e imagem (ou Pequena peça de ficção acadêmica)

Entre as muitas formas de pensar a questão do mundo hipermidificado de nosso tempo, a mais ingênua é a de acreditar numa "neutralidade" da tecnologia. Vivemos neste mundo museificado em que todos querem ser obras de arte de si mesmos, e se dar a isso por via do virtual. O modelo de vida mais desejado é o que supostamente dilui arte e vida. E viabiliza a equação, de acordo com a qual, o máximo de prazer é atingido com um mínimo de sacrifício. A isso muitos chamam "qualidade de vida". Se as novas mídias possibilitam um maior acesso à arte, e se esse acesso é celebrado em verso e prosa por governos e grandes conglomerados transnacionais, então é porque essa arte, longe de incomodar esses governos e conglomerados, apenas justifica certo status-quo prevalente. E, logo, compensa ser incentivada. Vivemos expressamente para consumir, ao ponto de quando não consumimos, nossa importância social ser atingida em cheio. Se pensarmos na perspectiva pós-industrial, a palavra consumo é a mais central de todas. E "serviços" são uma nebulosa fórmula através da qual se justifica uma sorte de neo-colonialismo, onde de fato quem mais consome é quem menos pega no pesado. Falamos do setor terciário, apanágio das economias pós-industriais. Nele ninguém sua ou suja as mãos. E nesse neo-colonialismo, ao se abdicar da agricultura e da indústria, garante-se mediante intrincados jogos financeiros a melhor fatia dos lucros. E garante-se, aliás, sem qualquer produtividade, porque também sem qualquer produção. Ou quando muito com uma produção ínfima e fortemente subsidiada. Enquanto isso, a produção propriamente dita é vista como jogo sujo ou ocupação indigna. Por isso é terceirizada, largada aos imigrantes e varrida para a periferia. E é na periferia do planeta que se dá o trabalho duro e de fato, o hardware. Se de alguma forma essa periferia ameça a centralidade econômica, imediatamente é taxada de recrutar trabalho escravo, associada a autoritarismo ou condenada, em bloco, como ecologicamente incorreta. E amesquinhada, de um jeito ou de outro enquanto projeto, instância ética. Ainda que seja ela quem, de fato e concretamente, põe produtos no carrinho de compras dos países que vivem do Outsourcing. A todo esse processo se chama tercerização da economia. E de uma economia radicalmente globalizada. E é o que assegura a países que praticamente nada produzem - pois a maioria deles já devastou todos seus recursos naturais, florestas incluídas - um nível de vida estratosférico, casos da Holanda e dos países nórdicos, por contraposição aos países que eles parasitam sistematicamente. Isso se dá mediante uma intrincada engenharia financeira. A Costa do Marfim produz uma grandiosidade de cacau, mas sua participação nos lucros do negócio do chocolate, embora detenha a própria matéria prima, é irrisória, se comparada à parte do leão que fica com a Holanda, onde não se vai encontrar um só pé de cacau de Groningen à Zelândia. Logo, o correspondente dessa economia, para todos os efeitos virtual, é uma superestrutura cada vez mais virtualizada pelo aporte das novas mídias. Ora, esse modelo, hipermidificado, faz daqueles que têm acesso às chaves das catedrais da arte - curadores, facilitadores, críticos, professores de oficinas criativas, estetas, marqueteiros culturais, webartistas, teóricos da informação e especialistas em mídia - os novos arcanos e sacerdotes, que ditam o discurso, e divisam diante de si o grande futuro. Eles estão para a arte como o financista para a economia de serviços: dominam as regras do jogo. São versados na matéria. À sua vez, se o corpo é o oikos, a casa por excelência da beleza, então vamos retorcê-lo, enxertá-lo, aspirá-lo, espichá-lo, até ficar conforme. O corpo precisa consumir-(se). Ele deve despender energias e suar. Mas não para produzir em benefício de outros. Não para cansar-se sujo de terra, graxa, carvão ou fuligem. Rompido por hérnias, contusões ou insônias. Do contrário, o suor e as horas gastas para esculpi-lo, a fadiga de havê-lo exercitado devem estar a serviço do prazer do próprio dono numa sala asséptica, refrigerada, cheia de espelhos. E, quando muito, gerar endorfinas. Nada mais. Para se exercitar a contento, o corpo não deve produzir nada além de seu próprio bem-estar. E, nada produzindo enquanto trabalho, restar intacto para a esfera do consumo. Essas esferas de consumo incluem não menos toda um perfumaria teórica, uma inflação de discurso que conhece na França seu epicentro. Ora, a novidade da era pós-industrial no campo da estética é esta: a de um artista consumidor vivendo num mundo carregado de imagens e sons técnicos que apontam para consumo - até mesmo quando seu discurso passa por desenvolvimento sustentável ou por qualquer preocupação ambientalista. Não que no passado artista e consumo não se tenham interseccionado. A questão é que agora ser consumidor e propor sua obra, serializada, para ser consumida, em larga escala, são atributos precedentes do artista. Nunca antes, um esteticismo laico - pois no caso dos gregos é bem outra história - esteve tão no centro, não apenas da vida comum (como sua mais tentadora opção existencial), mas do poder enquanto tal. Nunca a política esteve mais estetizada. O controle que o governo, sob a forma de bancos de dados precisos, exerce sobre cada indivíduo é imenso, assim como através dos mecanismo de que já dispõe para o controle da rede. Ou ainda a carga extrema de publicidade institucional a que o indivíduo está sujeito na rede e em torno dela. E a rede será ainda mais severamente monitorada. O que equivale dizer: os mecanismos de controle que o poder político-estético dispõe são de uma sofisticação aterradora. Fazem o Grande Irmão - ou seja, a televisão clássica e monopólica, de antes da web -  parecer um anacronismo da Baixa Idade Média. E, aqui, oscilam entre a esfera da instituição e a esfera da corporação. Ou seja, entre o Estado  e os conglomerados que controlam a esfera do consumo. Passa-se um e-mail falando de sapatos. E, no instante seguinte, tudo são ofertas de calçados a preços módicos. E para onde quer que se vire na rede, há um oceano não pacífico de sapatos, tênis, sandálias. Uma avalanche de botas, galochas, patins, meias e sapatilhas. Um despautério de tamancos, saltos-altos, pantufas, camurças e mocassins alemães. Disso se tem nutrido a moda, a publicidade, o marketing esportivo, o cinema, o jornalismo, a fina arte da esoteria e tudo que pode ou venha a ser virtualizável. Basta entrar no Facebook ou frequentar alguns blogues para constatar o fenômeno. Imolar-se nesse altar, a prazo, como bons meninos - referendados pelos colegas, amigos, alunos ou epígonos, e não menos por gostos próprios e supostamente sofisticados - é mais que projeto nosso, virou a própria convivialidade. Eixo em torno do qual gira o mundo. Uma norma. E norma sem a qual muitos já não conseguem viver. Os que suportam menos uma existência ao largo da conectividade, aliás, esforçam-se mais e mais para auto-espetacularizar a vida íntima. E por qualquer brecha: o que comem, bebem, veem, vestem, leem, usam, ouvem; a quem encontram; como se curam; o que assistem, aonde moram, para onde seguem ou passam férias; como dormem e com quem, etc. Tudo isso é exposto em fotos, filmes e arquivos de texto e som. Agora, o que afere o fascínio da vida comum é o grau de proximidade que essa existência - desimportante, ao fim de tudo, no meio do meganúmero - mantém ou não com um filme. Um grau de proximidade apenas alusivo, em determinadas ocasiões. Em outras, mais explícito. Até chegar a saturações dignas da citação. Ou da literalidade. A busca é coincidir. Quer dizer, quanto mais a vida comum estiver no limiar de impregnar-se dum roteiro mais ou menos padrão de feature, mais ela merece a consideração dos demais. Pois os filmes - ou mais precisamente os derivados da imagem e do som - converteram-se muito obviamente na iconografia religiosa de nosso tempo. Na normativade exemplar. Em nossa hagiografia e livro de horas. E, logo, ao se buscar vestígios de crença no homem pós-contemporâneo, que não se vá atrás de escrituras, livros sagrados ou sapienciais, de orações piedosas, mantras, cosmogonias, formulações teológicas, hermenêuticas, sitemas ou dos grandes poemas iniciais; mas dos filmes sagrados. Ou melhor, das imagens e sons sagrados. [Aqui, imagens e sons técnicos, bem entendido] Um filme clássico de Hollywood? Ou, no mínimo, um blockbuster contemporâneo? Um pré-cinema de Muybridge sonorizado? Ou clipe da Beyoncé? Um VT da Coca-Cola? Em todo caso, um combo som/imagem em que o protagonista, evidente, será sempre o portador de um respectivo IP. Ao menos na imagem mental de cada um. Na imaginação. Faz-se necessário pensar que a música que se ouve nos headphones, ao se caminhar pela manhã nas redondezas de casa, soa da mesma forma que para Bill Murray na trilha sonora de Lost in Translation. Numa espécie de 'in tandem' com a imagem do mundo cotidiano. E a praça que se descortina adiante, com os pombos, e os idosos fazendo tai-chi, foi posta ali como locação matinal, não mais. E existe em função de quem a vê e é conjugada à música que troa nos headphones de quem a vê. A perda de ironia, de separação, de cesura entre ficção e "vida real" - tema já de alguns filmes emblemáticos, a exemplo de Barton Fink, dos Coen; ou do Blowup de Antonioni - é o selo de qualidade, que atesta não só o quanto há de virtuoso e modelar, mas de virtualidade em todo um percurso, uma vida. Ou o quanto nos vemos lançados a uma série de mise-en-abîmes ao longo desse percurso demarcado por fluxos de sons e imagens. E, assim, estar desconectado é morrer, de algum modo.  Se há algo hoje em dia que se aproxima da paixão, do "morrer de amor", ou ainda da renuncia à literatura por uma Abissínia exemplar - como em Rimbaud - é desconectar-se. Rematado exílio. E desconectar-se depois de já haver provado da fruta do virtual. Daí a sensação de agonia e alienação que se prova no exato instante em que se conectar é uma impossibilidade. Aqui, a carga de erotismo que reveste o ato - de " se conectar" / " se desconectar" a esses novos e efêmeros brinquedos - não deve ser minimizada. A adolescente expõem-se no, e expõem seu primeiro MacBook ou iPhone como fosse o príncipe encantado ou a varinha de condão. E esses brinquedinhos devem ser os que portam a imagem da adolescente e seu sonho de conquista do mundo. O garoto faz seu primeiro filminho com a câmera do smartphone dentro do ônibus, e preserva ao alcance de um toque de dedo a mulher madura, de curvas amplas, que ele deseja ardentemente em solitárias sublimações. (E como ele teria de haver-se com isso ao longo da vida, não fosse o fato de em dez anos ser impossível acessar essa imagem na sucata que será um iPhone atual!)  E à essa altura da novidade, somos todos readolescentes. As novas tecnologias que, a cada segundo, são cada vez mais novas, nos legam um estado de perene puerilidade diante delas. Seguimos permanentemente com água na boca. E sensação de querer mais. De omnivaridade. De devorar qual seja a imagem junto com o som da vez e lambuja. Uma compulsão. Indigestos, vivemos de arrotar imagens e sons técnicos. Logo, o que não suportamos é a experiência de, por qualquer falha técnica ou desconexão não programada, nos encontrarmos, súbito, exilados da virtualidade. Ou seja, do grau de banalidade limítrofe com que ela nos lega um mundo através de uma miríade de imagens e sons que são excessivos se postos em analogia com o mundo anterior à rede, o mundo não virtual, no cotidiano de cada um - e, em especial daqueles que ainda viveram, por algum tempo, uma vida "desconectada". Pois a virtualidade virou não só nossa casa ou pátria, mas também nosso código, devir, utopia, País de Cocagne. Se possível, já nos vestiríamos de virtualidade e utilizaríamos embalagens virtuais. Nossos alimentos seriam virtuais. Cultivados e colhidos na rede. Mas, vai chegar o dia. Vai chegar o dia inclusive em que vamos nos apaixonar por imagens. Ou não discernir muito bem o que é da imagem e o que é do mundo real. Situação já prevista em La Invención de Morel. Ainda que, quando Bioy-Casares escreveu essa fábula, na década de 1940, as imagens técnicas de ponta eram as do cinema, e sequer se sonhava com imagens digitais, tridimensionadas ou interativas. E o espaço das imagens sonorizadas ainda era um tanto restrito dentro do mundo. E, no entanto, seu prognóstico quanto a uma possível indivisibilidade entre o mundo real e o virtual cai como uma luva para a era da virtualidade a qualquer preço, em que nos encontramos mergulhados, e de olhos bem abertos. E então, há essa existência nossa, suplementar, em que a virtualidade mais e mais ganha estatuto e verdade sobre tudo que não é ela. Não é mais ou menos como a gente entende pôr um pouco de sensibilidade – e, mais que isso, da nossa sensibilidade - nas redes sociais, nos blogues, nos podcasts, para provar não só que somos sensíveis e bons, mas que existimos?

2 comentários:

  1. Tem ideias demais para um texto só neste post, querido.

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  2. dou o braço, n. você tem razão. falta sistema. há alguma desorganização ou ausência de articulação entre as partes. a coisa segue impaciente. mas, por outro lado, o pensar mais normativo vem sendo excessivamente paciente. e criando muito pouco, em termos de conceitos ou ideias minimamente consentâneas.

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