quinta-feira, 12 de abril de 2012

Nota a favor de um aparente mau gosto


Estômago fraco

-sobre o vínculo realizador/assunto & a compreensão do entorno. Ou o porquê dos filmes artesanais feitos em Fortaleza, em sua maioria, se darem quase que só através de uma fala a posteriori sobre o que nem sempre está lá. [Isto é, lhes falta passado e futuro para lastrar um presente (que é por si oco, vazio, mecânico)].


Outro dia uma jovem realizadora local disse na TV:
-Foi muito forte pra mim, cara.

O que terá sido, afinal, assim tão forte?

***

Falava ela de uma circunstância vista e registrada: a de um sujeito no Mercado Central ou no São Sebastião – algo nesse rumo - que misturava no mesmo prato carne seca, baião e sushi.
A realizadora disse que isso lhe embrulhou o estômago.
Ok, mais um caso de estômago fraco.

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Partindo do pressuposto que praticamente toda família do interior, ou mesmo da capital, até alguns anos atrás, misturava invariavelmente massa (pasta, o famoso “macarrão”) à dieta mais diária de feijão, arroz, farofa e um prato de carne ou peixe, além de um bocadinho de verdura; se tem a boa medida da compositividade da culinária no Nordeste. 
De outro modo, é bastante provável que, no futuro, uma fusão assim – sushi, feijão ou baião e carne de sol, nata e macaxeira – desemboque em um novo prato. Algo como a carne de sol ou a paçoca, no recheio do sushi, guarnecidos pela nata - ou pela manteiga-da-terra - e a macaxeira frita. Um prato que ganhe dignidade, cardápios, algumas variantes; depois de universalizado, e após transpor barreiras de classe. Afinal, sushi não é muito mais que bolinhos de arroz e alga, recheados de salmão, moluscos ou vegetais e frutas. Algo de algum modo complementar à carne seca, à paçoca ou mesmo ao feijão. (E, se formos mais além, há o caranguejo e o siri, a carne de cação e de arraia. E a pimenta. Ou um sem número de frutas tropicais).
Até aí nada de asco.

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À sua vez, quase sempre, a dieta do documentarista, do realizador, do ficcionista, do ensaísta da imagem e do som, por aqui, não se nutre de julgar as coisas, as pessoas, os fenômenos de acordo com os padrões de gosto mais ou menos disseminados por certo cosmopolitismo capenga?¹
Mas, em outra direção, mostrar esses fenômenos, coisas e pessoas tal qual são (e não são) e a partir de diferentes ângulos lhes parece árduo. E, em sabedoria, deixar seu trabalho ser e falar mais por si.² Fluir em sua parataxe e contiguidades, mais do que ser quase que só através de uma fala a posteriori sobre o que nem sempre está lá. Pois há um excesso de miopia e na imediatez desse cosmopolitismo. E uma nítida insufuciência nessas "explicações". 
E essa insuficiência inicia-se justo numa busca pelo explicativo tomado como essencial. Nesse ponto de vista cultural decalcado, que é tomado para si como universal – quando, em realidade, está longe de sê-lo. E que, em realidade, resta recalcado. Até por deficiência de história, memória.
Infelizmente é raro ver um ensaio por imagens em Fortaleza que não sucumba a certa intenção, ou a um excesso de tese. Intenções e teses um tanto fáceis, indulgentes, inconsistentes, polarizadas. E então sucumbem a certa pegada que justifica o filme não durante o tempo do filme, mas no após ou no antes dele. É onde quase 'todomundo' peca. No divórcio notável que há entre intenção e filme. Em geral, porque há um excesso de intenção diante da precariedade de meios. Ou então diante da artimanha (que é a subjetividade do realizador + a equipe). No fundo, há sempre mais intenção que filme. O que equivale a dizer: há mais (má) ideia que materialidade.
E, assim, predominantemente em Fortaleza se tem feito pré- e pós- filmes.³ Mas, a rigor, se tem feito bem pouco cinema.
Além do que, um realizador e sua equipe devem medir-se por seu trabalho, por seu assunto, é certo. Mas nem sempre impregná-lo de uma visão de classes, rasa, tão pouco estendida a um verdadeiro senso de diversidade. Um que, historicamente formulado, tramado, vá mais além das pequenas, fáceis ratoeiras do politicamente correto. Ou mesmo do fetiche por procedimentos de vanguarda que já nos chegam carregados de uma sub-orientação impressentida, não nos legando mais qualquer possibilidade de buscar um senso mínimo de autonomia e originalidade nas soluções de som e imagem.


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¹Uma vez que, via de regra, na vasta maioria dos que tem um senso cosmopólito formado, esse senso quando muito vai só até o Sudeste/Sul do Brasil, e no presente. E a nenhuma parte mais - inclusive temporalmente ressalte-se. É adquirido através da televisão, dos grandes portais de notícias e entretenimento e dos cursos presenciais ou virtuais. Em escolas especializadas ou pós-graduações. Não vai sequer até o passado do Nordeste. Ou até mais longe, fora do país. Ou seja, sabe o que é sushi, mas não sabe o que é Lunário Perpétuo. E nutre-se, em predominância, dos aportes culturais dos imigrantes do séc. XX - italianos, alemães, japoneses, libaneses, etc. - combinados a certa ética econômica à paulista e às teorias regurgitadas por eles quase sempre em traduções de quinta ou ensaios explicativos prévios e de má propedêutica, com raras e brilhantes exceções: um Arlindo, um Ismail, um Bernadet, um Paulo Emílio. Mas o Nordeste, como compositividade cultural, é muito anterior a isso. E, ao que tudo indica, está sendo também posterior, apesar de.  E o conhecimento e certa apropriação (indevida) desse passado muito mais explosivos. E, assim, o Nordeste é a região do Brasil que se abre mais facilmente à compositividade – i. e. a uma universalidade densa - desde sua tremenda capacidade de recombinar e rearranjar elementos culturais de matizes distintas. Como  o nori (alga), o arroz, o salmão e os moluscos crus, o ovo, as frutas o wasabi (raiz-forte), a carne seca, o feijão, a nata, a macaxeira, a manteiga da terra, a salsa e a cebolinha. A recombinação desses elementos, antes de ser deplorada em piloto automático, deve, do contrário, ser exaltada quando se pensa duas vezes. 
O que quase ou nunca se faz. [Ou se é educado para fazer.] Pois até um dos dados mais brilhantes de nossa cultura, a mistura de etnias e complexos culturais, estamos sendo educados para deplorá-la. E via teorias importadas de circuitos históricos cujas vivências passadas nada tem a ver com as nossas...

²Uma das feições evidentes dos frutos dessa colmeia de filmes artesanais e/ou experimentais é a de que, em sua quase totalidade, eles não se sustentam por si. Isto é, já nascem tão debilitados que necessitam de um pré- ou pós- discurso que os legitime para além do que é filme. Para além das imagens e sons em si.

³Aqui num sentido restrito, claro, e não no de pré- e pós- cinemas. O sentido de filmes enquanto unidades com certa duração, e confeccionados em determinado suporte: película, vídeo digital, ambas, as cada vez mais diversas técnicas de animação, etc. 

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