quarta-feira, 16 de maio de 2012

No Centro de um Império Equivocado: a Centralidade do Inglês, Tradução e Astúcia



Deslocamento e dessincronia. A tradução é o campo em que a linguagem é mais provisória nos domínios da literatura. Na tradução, tudo reflecte desconforto, inadaptação, estranhamento, insatisfação, nostalgia, foras de hora e lugar. Ela é um gênero literário de extrema importância, mas quase nunca é olhada assim.
Na verdade, ela sequer é investigada como gênero. Ou tomada como relevante em estudos especializados, salvo raras excepções. E a tradução pode ser tão transparente que vemos através dela sem nos darmos conta desse através. Ou sem lembrarmos que estamos lendo não apenas Dostoiévski, mas também Paulo Bezerra. Ou não só e.e. cummings, mas Augusto de Campos. Não Homero, mas Odorico Mendes. Algo análogo ocorre com a montagem invisível em filmes clássicos. Assim ela é tomada como um naturalismo que não corresponde ao/ ou estranha o/ grau de artificialidade e convenção necessário à tarefa de produzi-la.
Boa parte da importância da tradução reside em prosseguir a ser um corpo a corpo com a linguagem ainda não exaurido pela diarreia das teorias literárias contemporâneas ou pelo exercício oco da criação, por si, de conceitos, apenas para retroalimentação acadêmica. 
A tradução, enquanto gênero, foi uma dos poucos aposentos na vivenda da literatura a não ser ocupado inteiramente, a escapar de ser colonizado ou parasitado pela teoria acadêmica e, assim, posto a serviço de uma ideia. Ideologizada de algum modo. E ideologizada, a mais das vezes, desviando-se do texto. Ou propondo-o a serviço de algo supostamente “mais estratégico”: seja político, seja ambiental ou comportamental. E, assim, mais urgente, em hipótese. Porém, na verdade, atirando o texto a uma servidão sectária, de algum modo. Pois vivemos num tempo em que os estudos literários são precedentes à literatura. A primazia recai sobre eles, não sobre a letra dos textos. E, no caso, por suas especificidades, a tradução permaneceu uma das poucas formas de literatura imunes a essa hiper-ideologização. [1] E, portanto, apontando para o texto em sua letra mais letra.
É preciso entender que tais causas ou temas - feminismo, opções sexuais, imigrantes, populações em meio pré-industrial, desenvolvimento sustentável, potencialidade dos hipertextos, máquinas de traduzir, acessibilidade ao virtual - são sumamente importantes. E não se deve perdê-los de vista. Mas que nem sempre os melhores textos literários são os que necessariamente os reflectem ou passam por eles. Já que eles são conjunturais. E não há nada que nos assegure que serão prioritários daqui a cinquenta anos. Ou que não se prestem a profundas manipulações e inverdades. Isto é, manipulações e inverdades a serviço de "causas políticas" pontuais e um tanto facciosas ou intransigentes, tal como é possível encontrá-las em algumas aparas dos ditos Estudos Culturais.
A tradução, do contrário, é um derradeiro corpo a corpo com a linguagem, onde se refugiaram aqueles para quem o trato com ela ainda está envolto em certo pudor. Em certas reservas e interditos de se estar tratando com algo às raias do sagrado. Um bom combate. Um embate ao modo de Jacob. E não há forma de humor verdadeira que exclua a dimensão do sagrado. Huizinga, em seu Homo Ludens aponta bastante bem para tal: o atrofiamento da dimensão lúdica na modernidade.
De outro modo, em meio a isso tudo, quando se volta para a arquitetura, a ideia de poder sempre esteve nitidamente vinculada a edifícios grandiosos. Que ameaçam arranhar o céu ou desfazer a linha do horizonte. Daí a tradução - mediante o esfacelamento da língua única em várias línguas - ser apresentada como uma espécie de segunda queda ou segunda expulsão do Éden. Ser proposta como resultado do soerguimento de uma torre, que ameaçava o monopólio das alturas e da sabedoria celestial. É a imagem bíblica e recorrente dessa ambição insatisfeita: a torre. Mas o verdadeiro tradutor também pensa por peças de Lego. Ou muito mais por meio delas que pela opressora totalidade da torre.
O que há de fálico, fáustico e arranha-céu em Babel, há também de saudades da terra, do chão, do ctônico, da água, dos canteiros de flores. Do pisar o chão e ser de manhã. Do mergulhar em fluxo e rio. Do encontrar-se exilado das possibilidade de estrada. E das encruzilhadas e outras ciladas da linguagem. Em particular, daquelas que qualquer imigrante experimenta no exílio. Estar no alto da torre é solitário e insosso.
Mas também tudo mais torna-se provisório ou des-urgente diante dessa instância do exílio. A precariedade vaza por todo lado. Traduzir, então, é esse estar o tempo inteiro consciente dos limites - de nenhum modo apenas metafóricos - dos idiomas. Ou seja, é estar o tempo inteiro indo e vindo através das fronteiras deles. Percebendo não só a suplementaridade dos diversos idiomas, mas, sobretudo, o tanto que essa suplementaridade aponta para uma espécie de idioma ideal, que de nenhum modo pode ser expresso. A não ser imperfeitamente, através dos cacos, dos pedaços de Lego, imperfeitos - e nem sempre amoldáveis entre si - dos idiomas concretos. 
Pelas labilidades, virtudes e falências desses idiomas, quando contrapostos a essa língua total, ideal e perfeita - que só pode ser mobilizada nas junções e articulações das línguas particulares - segue o tradutor. É preciso importar e exportar bastante de um para outro idioma, no plano do sentido e no da forma, para consolidar uma tradução estimável.
O contrabando não é pequeno. Pela astúcia, faz lembrar o de uma contrabandista idosa, em certa crônica de Stanislaw Ponte Preta. A obstinada velhinha cruza diariamente, ida e volta, várias vezes, a fronteira do Rio Grande com o Uruguai, montada numa lambreta com um saco à garupa. Não há nada no saco, a não ser areia, que o guarda aduaneiro já mandou para análise mais de uma vez. É terra mesmo, com esterco, minhocas e tudo de direito. Mas então, pergunta ele: o que contrabandeia?
Fácil, numa segunda leitura, perceber que ela contrabandeia lambretas. E o fato de a velhinha importar e exportar o próprio veículo em que se movimenta nos remete para esses veículos supremos, sem fim, que são os idiomas. 
Mas também para outras questões à beira do tráfego do traduzir. Ou seja, à beira da auto-insuficiência. Ou ainda seja, para o malogro e aparente modéstia exemplar dessa tarefa, se ela não consistisse também numa das mais ambiciosas: levar e trazer, re-levar e re-trazer, os grandes textos de um para outro idioma, e não especificamente apenas em função daqueles que não podem lê-los em fluência no idioma em que foram escritos inicialmente. Mas, sobretudo, pela importância intrínseca desses textos. Daí que o número de versões traduzidas seja proporcional à relevância do texto. Ao modo como o texto, por si, clama para ser posto em outras línguas, porque está prenhe de sentidos e belezas. 
Por que uma canção como "Águas de Março" ainda precisaria ser gravada após a versão de Elis e Jobim? Não está tudo lá? E, contudo, a canção é tão misteriosamente plena, que necessário ressoar sua beleza sob outros prismas e concepções de arranjo, atmosfera, timbre, instrumentação. E pois então, qual a necessidade de se traduzir de novo um texto que já se encontra traduzido, a não ser pela sensação de que a tradução deixou algo de fora, ou não ressonou determinados aspectos da forma ou do fundo? Ou segue muito veloz? Ou por demais lenta? Ou não refrata as mudanças de andamento, apresentando-se em insossa uniformidade? E isso se dá porque o resultado final, flagrante da tradução é visivelmente, em sua imediatez, o retrato do provisório e da incompletude. Ou ainda, deve-se recordar da insatisfação gerada pelos resultados imediatos dessa tarefa: quando todos dirigem sua atenção para um detalhe mais lustroso, e a proeza do tradutor propôs outro, muito mais árduo e sutil – mas, diacho, esse outro passa despercebido.
*
Entre muitas outras coisas, Susan Sontag, a ensaísta norte-americana, também foi tradutora. Mais que isso, ela leu bastante, vorazmente em traduções. (E o que é o tradutor, senão um leitor elevado à máxima potência?) E leu abrindo-se a novos autores, que se encontravam bem ao largo de um cânone sedimentado, onde, aliás, Sontag tinha tudo para ter ficado, numa zona de conforto. Pois o aconchego não era dos menores, e o ar refrigerado amenizava os rigores do verão, assim como a calefação central, os do inverno. Em torno todos falavam inglês: a vida já nascera mais ganha que outras, digamos assim. E, no entanto, ela resolveu seguir para outras latitudes. E até demorou-se, com inusual vagar, nos trópicos. Ela, que nasceu e esteve bem ao centro mesmo desse cânone, e, astuciosamente, percebeu o logro dessa centralidade.
Essas leituras de Sontag pela “periferia” do Ocidente, esses seus passeios pelo “lixo Ocidental” - na expressão pop e precisa que Fernando Brant cunhou em anterioridade e na outra face mesma da moeda - a fizeram amar autores que só muito superficialmente são conhecidos no todo-poderoso universo de língua inglesa. Sontag deleitou-se com a leitura de ensaístas, ficcionistas e poetas do Leste Europeu, ainda pouco conhecidos ou divulgados à época em que escreveu sobre eles. E eles parecem conformar a sua última paixão - ela morreu em 2004.
Mora aqui um paradoxo. Nos seus últimos anos, Sontag propunha um estranho diagrama da Europa enquanto ideia. A de que os países “periféricos” no Velho Continente – os mais pobres, os recém-saídos de ferrenhas ditaduras stalinizantes, alargadas por décadas de estúpida satelização em torno da União Soviética - pareciam, contraditoriamente, mais vivos, decentes, únicos e mesmo diversos, culturalmente falando, que os da propalada União Europeia. 
Estes tinham um quê de novos-ricos, de América má re-transplantada ou regurgitada à Europa. Deleitavam-se em consumir, entregar-se à bandeja dos novos triques e brinquedinhos tecnológicos. Ao mar de consumo: régias consultorias, preguiçosos bem-estares, e aposentadorias que ainda não eram quando Buñuel filmou Las Urdes, na Extremadura espanhola, com europeus morrendo como piolhos de fome e malária, e sequer com um tostão furado para migrar para Luxemburgo, França, Alemanha, Brasil, Canadá ou Austrália. Nesses mesmos tempos, adolescentes transmontanos eram fotografados no estuário do Tejo, sob roupas rotas e semblantes descarnados - embora cheios de esperança - a aguardar a saída do vapor para o Rio ou Durban.
Sontag também manteve um vivo caso de amor com a língua portuguesa, sobretudo via Machado de Assis, a quem ela dedicou um texto, ao final do anos de 1980, e a quem fez questão de nomear em um ensaio tardio e um tanto subestimado: “O Mundo Enquanto Índia – A Conferência São Jerônimo Sobre Tradução Literária” [presente na coletânea publicada três anos após sua morte (Ao Mesmo Tempo: Ensaios e Discursos, p. 167, 2007 - na edição brasileira, Companhia das Letras)].
Nesse sumário de posições sobre a tradução, ou mais especificamente sobre a tradução literária – o que chamamos de “os importados que importam” - Sontag alerta para o que há de nefasto na excessiva centralidade do inglês enquanto idioma da modernidade. Quer dizer, aponta para o que há de injusto no peso desigual das línguas, ainda esteado em pesados preconceitos (aqui, sim, justificáveis serem mencionados como preconceitos, ao contrário de muita coisa no político e no escorreito), que reduzem o cânone e impedem novos alargamentos de fronteiras. E, por que não, da própria inclusão dessas culturas um tanto estigmatizadas, superficializadas, aclichezadas, puerilizadas na categoria de humanidade. Na humanidade densa, para lá de Ocidental.
As preocupações de Sontag são relevantes. O diagrama que traça da modernidade segue esteado em autores imprescindíveis, como Nietzsche, Benjamin, Bazin, Barthes, Ciorán... Mas, como já ressalvado, passando também por escritores do Leste Europeu, obscuros ou relativamente pouco conhecidos. Ou mesmo por ocidentais que não chegaram a um público mais amplo, caso do alemão W. G. Sebald. E, no entanto, tão essenciais quanto os mais famosos. Ou por Machado de Assis, que – para o azar mais deles que nosso - poucos conhecem em Paris.
Ela parece divisar com nitidez um ponto de vista: onde o Ocidente enxergar possibilidades de poder - mínimas que sejam - essa possibilidade será captada e potencializada, de modo a extrair da situação em crivo uma espécie de “vantagem ética”. Coringa a ser mantido na manga e em estratégia. Argumento em proveito próprio. Falácia. E, nítido, é a partir dessa espécie de mais-valia, desse excedente de “ética”, que relatos como os de V. S. Naipaul ou Marjane Satrapi - que não são mencionados por Sontag, mas bem poderiam - prestam-se tanto a serem laureados - sagrados que foram como prepostos da herança do Ocidente em terras outras - pois também calam, miseravelmente, sobre a outra metade da empresa: o grau de barbárie exercido pelo Ocidente para operacionalizar essas outra formas de civilização. 
Quer dizer, autores como Naipaul ou Satrapi são muito eficientes quanto a denunciar a pasmaceira terceiro-mundista - corrupta, ineficiente, retrógrada, autoritária - que grassa nos países ditos “periféricos”. Ou os maus tratos desses países aos recursos naturais, um tanto como se a história nos países ditos “centrais” fosse de todo diferente. Ou ainda o aparente barbarismo que reveste certos hábitos e costumes, mais próximos de uma visada menos laica, ocidentalizante. 
E, no entanto, pontos de vista consagrados como os de Naipaul ou Satrapi, conveniente e rapidamente absorvidos e premiados, são simultaneamente incapazes de vislumbrar que é exatamente esse estado de coisas - esse status quo que os premia - o que sustenta e, em larga medida, legitima o consumismo cínico, deslavado, refrigerado, aquecido e aparentemente auto-suficiente e colarinho-branco dos países ditos pós-industriais. Lá, onde, não é de hoje, o outsoursing empurra aos imigrantes o trabalho de facto. E o trabalho sujo, o de suar e deformar-se, é, por seu turno, cada vez mais transferido para a periferia do mundo, junto com as fábricas e as fazendas. 
Tarefas de se encher de hérnias e acidentes de trabalho na execução das mesmas. A de executar repetições aviltantes à beira da linha de produção, do fone de telemarketing, ou da apuração da informação na internet. O trabalho, enfim, que embrutece. Que lembra o instrumento de tortura que está na raiz latina da palavra. 
Enquanto isso um adolescente em Nova York consome mais os recursos não renováveis do planeta durante um ano que uma família de sete pessoas em Bangladesh durante cinco. E, no entanto, é o adolescente novaiorquino quem está vinculado a uma organização contra o desmatamento da floresta tropical na Indonésia. Ou se indigna e protesta contra isso. 
Será que algo está errado?
A análise de Sontag a respeito de como jovens indianos são educados em call-centers para agirem, portarem-se e até possuírem tiques, emitirem gracejos e dados biográficos de norte-americanos, é impagável. Uma análise muito pouco condescendente, complacente, concessiva, como usam ser investigações do gênero. Ou ainda, muito longe da unilateralidade confortável das soluções de Naipaul ou Satrapi. Nestas, todos os valores “legítimos” e estimáveis são ocidentais. E os “maus” encontram guarida fora deles.
Outrossim, é aqui que Sontag clama para um aspecto pouco evidente: a vontade que todos temos de sermos – o quanto mais possível – de língua inglesa. De uma ou de outra forma. Ou da forma mais disponível. Como no caso desses jovens indianos desdobrando-se em horas extraordinárias nos call-centers e fazendo-se passar por norte-americanos. E não apenas por contexto de trabalho. 
No íntimo, desejando ardentemente um visto de residência e uma vida sob as benesses do idioma inglês, longe de seus cotidianos na Índia. Ou uma biografia menos ficcionada do que as que lhes foram repassadas pelas firmas contratantes, para amenizar, maquiar a terceirização desse trabalho sub-pago desde matrizes no dito Primeiro Mundo. E, então, fazer de conta que os consumidores norte-americanos são, ao fim de tudo, atendidos ao telefone por norte-americanos e não por jovens indianos sub-pagos e treinados às pressas em Mumbai ou Calcutá. E, ainda aqui, o que aguça nos indianos é o real desejo de se converterem em...americanos. Quer dizer, a possibilidade de passar, via língua inglesa, de Bollywood a Hollywood.
De fato, muito pouco restou enquanto pro-jecto a um europeu num país qualquer da União Europeia [à excepção talvez da Alemanha, onde o pro-jecto nitidamente rima com dominação], além de dizer: “pelo menos eu não nasci na Índia”. Atualmente, ser europeu e receber essa chancela, esse prêmio de consolação, já parece ser alguma coisa, junto com haver passado pouco mais de meio-século sem deflagrar guerras de escala continental ou mundial. Por enquanto esse tem sido, aliás, o grande feito da União Europeia enquanto projecto. Vamos até onde vai dar a atual crise com seus componentes crônicos, e é tratar do imponderável.
E há o futuro, sem o qual ninguém vive. E todo ser humano precisa de algum senso de grandeza. E de sentir-se parte da construção dessa grandeza. Uma das poucas casas que um homem tem é a sua geração: o sentir-se um pouco mais ao abrigo entre aqueles que passaram por experiências e eventos mais ou menos comuns. E, se o mundo tem globalizado esses eventos, é de se supor que certo senso de experiências comuns também se tenha internacionalizado. E uma referência a elas pode suscitar empatias e impulsos de companhia.
Ora, o paradoxo, aqui, é que cada vez mais indianos adentram nas classes-médias e perigam, no correr dos anos, levar padrões de vida similares aos europeus em termos de conforto material. E com isso, junto com os chineses e outros emergentes, levar a um paroxismo a exploração dos recursos naturais do planeta. E, convenhamos, eles têm todo o direito de aspirarem um padrão de vida confortável. Quem não o tem?
Muitos – mas ainda uma flagrante minoria -  já vão além: vivem igual ou melhor que a média dos europeus. Mas estes são uma elite de empreendedores, líderes do processo: políticos, empresários de grupos transnacionais, funcionários comissionados, especuladores da bolsa, profissionais liberais bem sucedidos, et alli. Em geral, não são nem mais, nem menos corruptos que seus pares ocidentais. Mas são fortemente taxados como tais. E assim postos na mídia. O homem mais rico do Reino Unido nos diascorrentes é, por sinal, um bilionário indiano. Talvez se comparado à lisura de um Berlusconi ambos não saiam exatamente limpos da revista. E, no entanto, o Ocidente no momento de criticar os desmandos políticos e a corrupção no dito terceiro-mundo, bem que esquece de seus Berlusconis ou de seus banqueiros de Wall Street.
Então, a partir de Sontag, pode-se propor algumas outras questões. E quem sabe a violenta alteridade cultural presente nas instigantes narrativas de V. S. Naipaul deva ser observada como apenas uma das faces da moeda. E que ao calar sobre a hedionda outra face, sobre a coroa dos imperialismos, que trouxe até Trinidad, nas costas da América do Sul, um punhado de indianos para operar melhor, sob gerência britânica, as plantações de cana-de-açúcar, movidas por braços africanos, talvez Naipaul nos indique à imaginação o suplementar as lacunas desses horrores.
Aliás, o trecho em que Sontag menciona Machado de Assis, em “O Mundo Enquanto Índia”, bastante esclarecedor, nos dá mostras da perspicácia, da astúcia de alguém que reconhece-se no especioso centro de um império equivocado:

But, as many have observed, globalization is a process that brings quite uneven benefits to the various peoples that make up the human population, and the globalization of English has not altered the history of prejudices about national identities, one result of which is that some languages – and the literature produced in them – have always been considered more important than others. An example. Surely Machado de Assis’s The Posthumous Memories of Brás Cubas and Dom Casmurro and Aluísio Azevedo’s The Slum, three of the best novels written anywhere in the last part of the nineteenth century, would be as famous as a late-nineteenth-century literary masterpiece can be now had they been written not in Portuguese by Brazilians but in German or French or Russian. Or English. (It is not a question of big versus small languages. Brazil hardly lacks for inhabitants, and Portuguese is the sixth most widely spoken language in the world.) I hasten to add that these wonderful books are translated, excellently, into English. The problem is that they don’t get mentioned. It has not – at least not yet – been deemed necessary for someone cultivated, someone looking for the ecstasy that only fiction can bring, to read them.

[Porém, como muitos observaram, a globalização é um processo que traz resultados um tanto desiguais para os vários povos que compõem a população humana, e a globalização do inglês não alterou a história dos preconceitos sobre identidades nacionais, cujo corolário é o de que algumas línguas – e a literatura produzida nelas – têm sempre sido consideradas mais importantes que outras. Um exemplo. Está claro que Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis, assim como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, três dos melhores romances escritos ao final do sec. XIX, deveriam ser tão famosos quanto qualquer obra-prima desse tempo, não houvessem sido escritos em português por brasileiros, mas em alemão, francês ou russo. Ou inglês. (Aqui, não é uma questão de línguas grandes contra pequenas. O Brasil não tem poucos habitantes, e o português é o sexto idioma mais falado no mundo). Apresso-me a acrescentar que essas obras estão traduzidas, esplendidamente, em inglês. O problema é que elas não são mencionadas. Que elas não foram propostas – pelo menos até o momento – como necessárias para alguém cultivado, alguém em busca do êxtase que só a boa ficção pode ofertar.]

Susan Sontag teve a lucidez e a coragem de nos indicar que quem não domina o inglês em nosso tempo é não só uma sorte de analfabeto, mas também de excluído do mundo digital. E, por outro lado, quem só o domina (ou apenas se obceca por esse domínio) é, possivelmente, um analfabeto ainda mais rematado.

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[1] Entenda-se, aqui, a tradução enquanto tarefa, enquanto prática. O resultado do ato de traduzir. O que lemos, quando tomamos o texto de uma autor escrito inicialmente em outro idioma. Pois é até inferível que o tremendo grau de ideologização movido por uma necessidade de teleologizar tudo em volta como justificação de um sistema de pensamento que não se mantém de pé por mais de uma década, teria que deixar suas marcas também na teoria da tradução como a boca do bebê nos mamilos da mãe.

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