sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Apontados no Caderno


Pieter de Hooch, 1663

A internet nos inventa um passado em que vivíamos avulsos, dispersos, ilhados. Pulverizados em pequenas zonas de interação e conhecimento. (Toda cidade, por maior que fosse e já no sec. XX,  era Delft no sec. XVII, um pouco). Mas constrangedoramente dependentes de nossa intuição. E onde era necessário que a intuição estivesse à flor da pele, se quiséssemos nos educar. E descobrir coisas. Já havia televisão. Mas a televisão não concedia buscas ou trocas de mensagens em público a todo instante. E, claro, se essa educação era mais consistente, era porque dependia de uma aplicação mais visceral de intuição. E de uma intuição que necessitava ser densa o suficiente para não quedar descartada pela primeira busca no Google ou na Wikipédia. E, logo, tínhamos de pôr mais energia nas hipóteses.
(Mas também no tempo em que vivemos, as palavras envelhecem rápido. E as próprias palavras internet e Google já parecem um pouco cansadas).
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Ao contrário da harmonia de Vermeer, que não pode se dar sem um mínimo de elegância (embora seja, de fato, um mínimo), as composições de de Hooch revelam uma maior modéstia doméstica. Mas, se um de seus elementos mais óbvios é a luz vazando-se para o interior de edifícios e pátios, a diferença de Vermeer segue pela presença de crianças nesses ambientes sóbrios. Essa presença, aliás, parece ser um motivo chave para de Hooch. E há uma espécie de suplemento secreto entre elas e os adultos. Como a indicar que também precisamos ser irmãos, amigos dos que só instavelmente são nossos contemporâneos. Há um senso de companhia entre crianças e adultos que é um selo de dignidade. Mais do que isso, a criança assoma como advento ou mensageira de algo. É o caso do menino que entrega o pão, e cujo corpo se verga comovedoramente, em (aceitável) esforço, a segurar o cesto diante da porta da senhora que o atende. Ou da menina que brinca com as cascas da maçã que sua mãe descasca a um canto da sala. O impressionante senso de representação e divisão do espaço arquitetônico sob a luz: os pisos, as vidraças, perspectivas, brilhos. As cores e texturas dos ladrilhos. As fissuras e falhas nos batentes e parapeitos. A luz coando-se pelos vidros nos caixilhos e postigos. Há tanta calma e completude que dá vontade de morar nesses quadros. Por muito tempo os especialistas criam que Vermeer havia aprendido com de Hooch. Hoje a crença vai em sentido contrário. E, para além da harmonia, há um tempo da chegada. Da comiseração definitiva. Um tempo da utopia. Do chegar-se a um ideal de vida em comunidade: o dessas pequenas e prósperas cidades holandesas do seiscentos. Há uma atmosfera geral de conclusão, de mundo acabado, que tanto difere do nosso (em tempo e propósito  - e no caso, lugar). E o sentido de ordem que há nessa cidade em escala reduzida, nesse ovo. Delft era um ovo: como pôde propiciar-nos esses pintores?). A pintura flamenga dessa época concebeu uma forma acabada de representação. Semelhante às canções trovadorescas de Provença e da Galícia, aos poemas chineses da Dinastia T'Ang, ao hai-ku japonês, ao Soneto da Renascença na Toscana, em Portugal e Espanha ou nas peças e poemas dos Elizabetanos. 
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bom, ao que parece, o que preza demais a própria conta anda excepcionalmente bem informado sobre a conta dos outros. Ou seja, quem não admite qualquer forma de curiosidade é curioso compulsivo. E, pior, meticuloso, calculista

embora nunca revele o cálculo. E recheie a curiosidade entre uma suposta bondade e o saber de elementos para uma sugestão - mas que na verdade viram trunfo à manga. É como faz seu sanduíche moral. E o cálculo está próximo de uma ética, não propriamente protestante, mas calvinista. (Mas, e então, como esse sentido de completude em Delft? E além disso, Vermeer não era católico para todos os efeitos?)
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o que se lê por aí é uma espécie de mimimiografia. Não se pode pensar que a literatura vai-se reduzir a isso. A essa falta de consistência estética, técnica, teórica. Mas sobretudo moral

a esse mimimi nosso, insosso, de redes sociais, tumblr's, fotos, displays com música, ou ao escrever uma literatura apenas confessional ou "terapêutica": isso não existe. O que os poetas confessionais norte-americanos ou autoras como Alejandra Pizarnik ou Ana Cristina Cesar escreviam não era uma poesia meramente auto-biográfica e ingenuamente "espontânea", mas uma derivação de forma, também coletiva. O que nos prende a eles é a moral que está por trás da beleza que nos transmitem

e, claro, o mimimi também vem pelos blogues. E dá pra pensar no desserviço que um professor pode fazer com isso tudo. Com essa massa amorfa, aparentemente “democrática”, de conhecimento

mas, ainda assim, ele pensa que está educando e que dispõe de "mais" recursos para isso, etc. Ocorre que sem também pensar nos poderes de dispersão desses recursos, que não são fascinantes só ao professor mas também aos pupilos. E pupilos que, na maioria dos casos, já se encontram até mais versados e em casa na arte de mover-se por esses suplementos de memória e conhecimento do que o próprio professor. E, melhor, sem aquele fervor um pouco estúpido, um pouco prosélito, um pouco doutrinador, um pouco iterante de professor. Aquele de onde se deriva o adjetivo professoral. Aquele que sabe que repete, mas força a barra para assomar como quem acabou de descobrir a América. A mesma América que já esta aí há mais ou menos uns quinhentos anos, na forma como a conhecemos após a chegada dos europeus e dos africanos

em nosso tempo o professor não é mais um mestre, senão um repetidor de conteúdos cuja matriz teórica passa longe de ser adequada ao clima, ao passado, à composição histórica, e às realidades locais na maioria dos casos. (É diferente de pensar como Vermeer podia ensinar a de Hooch. Ambos conheciam a luz por dentro. Mas o que conhecia mais ainda ensinava e o que conhecia menos ainda buscava o ensinamento. Sinal dos tempos. E do tempo em que o que ensinava era um mestre de ofício ou de guilda: sabia fazer. Esse era mesmo o primeiro pré-requisito. Mas como pensar que hoje o professor de literatura sabe compor um poema; o de música, um lied ou uma ópera; o de artes plásticas, uma aquarela; o de cinema, ao menos um curta criativo e arejado; e assim em sucesso?  (E que os alunos vão aprender mais com esses exemplos que com qualquer outra coisa? E até mais do que com a convivência com o próprio artista que urdiu, moldou, editou, compôs esses exemplos, mas cuja fala sobre eles será sempre inequivocamente menor, por mais lúcida e eloquente que seja). E, no entanto, quase todos os nossos professores apenas escrevem artigos. É o que sabem fazer: escrever artigos. E  por obrigação. E currículo. E uma espécie de norma assemelhada às das práticas bacharelescas de até meados do séc. XX. Soporíferos artigos em revistas empoladas: um pouco obtusos, redundantes, que corriqueiramente não são lidos sequer por seus colegas de área específica de tão insípidos e implacavelmente chatos e descriativos)

no caso do professor contemporâneo, quase sempre ele apenas revomita teorias que ele próprio não sabe bem para onde vão, (embora as defenda com um fervor de sequaz)

e, elemento decisivo para a situação acima: pouco sabe por onde e como vieram essas teorias dar à sua porta. Ou  pouco é capaz de ajudar os alunos a relacioná-las com outras coisas que não elas. Ou a partir de elementos, combustíveis e materiais insinuados pelos próprios alunos. As tais 'associações inusitadas' ou 'associações impressentidas' [conceitos nossos], que, por sua progressiva rarefação, nos deixam em tamanho prejuízo nos departamentos da universidade, como nos da vida

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